23 Outubro 2019
Eu seu último livro, Jesus antes de Cristo, Armand Abécassis, grande intelectual judeu, lança um novo olhar sobre Jesus. Uma leitura estimulante dos Evangelhos.
“Por que Deus escolheu um judeu circuncidado, religioso, tradicional, crente, para salvar a humanidade? A universalidade teria sido melhor testemunhada se ele tivesse escolhido um egípcio, um fenício, um grego ou um romano ou qualquer outro... Por que ele escolheu um judeu, um judeu circuncidado em seu corpo, um judeu ortodoxo que usava as franjas (tzitzit) em todas as suas roupas, um hasid?” Alguns argumentarão dizendo que só Deus poderia responder. Mas a pergunta não tem nada de anedótico. Ela ainda é bem atual e profunda para um grande especialista no pensamento judaico, Armand Abécassis, e consagra a ela um novo livro, Jésus avant le Christ (Jesus antes de Cristo, Presses de la Renaissance).
A reportagem é de Marie-Lucile Kubacki, publicada por La Vie, 17-10-2019. A tradução é de André Langer.
“Esta questão se coloca para as duas religiões. Para que o diálogo entre elas seja fundamentado, o cristão deve entender que Deus precisa do judeu. Este também deve entender que Deus precisa do cristão, porque nenhum deles pode assumir a função do outro. Da mesma maneira que Deus selou uma aliança com Israel para uma função que a Igreja não pode assumir, Ele selou uma aliança com a Igreja para uma função que o povo judeu não pode assumir”.
Grande defensor do diálogo entre as duas religiões – ele recebeu o Prêmio da Amizade Judeu-cristã da França em 2009 –, Abécassis quer pintar Jesus assim como ele se encarnou ao nascer judeu, em um país, em uma cultura e em um povo. Ou seja, como um rabino que frequentava as sinagogas, conhecia o hebraico e o aramaico, citava a Lei e os Profetas, comia com os fariseus, ensinava a Torá, mas que discutia e criticava as concepções religiosas de seu tempo. Um tempo marcado por brechas entre diferentes correntes do judaísmo: saduceus, fariseus, essênios, zelotes, batistas – discípulos de João Batista – e alguns outros.
“Este livro, escreve ainda, é uma tentativa de encontrar o Jesus judeu que viveu nesta efervescência cultural marcada pela literatura rabínica antes que a teologia da Igreja o tornasse filho de Deus, o Ungido, o Messias portador da salvação universal”. Certamente, Armand Abécassis não é nem o primeiro nem o último a descrever o “Jesus judeu”, isto é, a inserir Jesus no seu contexto e na sua cultura. Mas seu objetivo é mostrar que, além da identidade divina de Jesus – fundamento da fé cristã que ele respeita, embora não compartilhe – “seu ensinamento e sua conduta permaneceram fiéis à tradição judaica”, ao contrário de uma leitura que busca ampliar sua diferença com seu povo e que culminou na muito condenável teologia da substituição.
Os Evangelhos podem ser lidos como midrashim, palavra hebraica que designa as interpretações dos textos bíblicos, orientadas em função do seu público. Mateus falou às “comunidades judaico-cristãs”, que permaneceram “apegadas à Torá e aos ritos judaicos”. Ele procurou “abri-los à mensagem cristã, que ele considerava messiânica”, recordando-lhes sua tradição e os escritos de seus profetas. Marcos, que escreveu nos anos 70, fez a síntese das diferentes tradições, “claramente inspirada nas ideias de Paulo”. Lucas, que se dirigiu aos “cristãos de cultura grega da mesma origem que ele”, procurou “mostrar que, por decisão divina, os não-judeus tinham sido associados a Israel para receber a Boa Nova e para estendê-la a toda a humanidade”. Quanto ao Evangelho de João, dominado pela “espiritualidade helenística”, ele guarda “o testemunho da ruptura definitiva entre a Igreja e a Sinagoga, operada tanto pelos notáveis judeus como pelos cristãos”, a tal ponto que a palavra “judeus” acabou tomando “o sentido de adversários, de oponentes e de inimigos de Jesus”.
A narração, apaixonada, contextualiza as palavras de Jesus nos debates de seu tempo. Isso pode incomodar o leitor cristão quando quer mostrar que “a religião cristã reinterpretou e enriqueceu o ensino judaico de Jesus com concepções cristãs respeitáveis, mas alheias ao espírito da tradição que recebeu e que testemunhou no dia a dia”. Ou quando diz que “Jesus nunca se sentiu como os dogmas da cristologia o apresentam e nunca o disse”.
No entanto, é uma leitura necessária em vários sentidos, para livrar-se de possíveis clichês, como o que tende a reservar o universalismo ao cristianismo, em oposição ao particularismo judaico. “Não é preciso ser judeu para merecer respeito, o mundo por vir e o ‘Reino dos Céus’”, demonstra, por exemplo, Armand Abécassis.
Salutar também é a defesa que este especialista em filosofia faz de uma escola de interpretação contrária a qualquer tentação fundamentalista. Jesus antes de Cristo é um livro “endereçado”, aberto a um diálogo franco e que termina em forma de oração: “Eu gostaria de pedir ao cristão para não ver mais no judeu um potencial cristão. Eu gostaria de convidar os cristãos para pararem de ler a Torá à luz do Evangelho, em vez de ler o Evangelho à luz da Torá. Eu gostaria que eles descobrissem o midrash, para aplicá-lo ao Evangelho e para encontrar os judeus no respeito e na fraternidade, mas também na solidariedade e na corresponsabilidade”. Para bom entendedor...
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Olhar judaico sobre Jesus, o judeu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU