A aventura de um pobre cavaleiro de Cristo. Francisco, Dante, Senhora Pobreza

São Francisco de Assis | Reprodução da obra de Portinari na Pampulha

29 Outubro 2021

 

"O cavaleiro Francisco sobe facilmente a montanha, a Cruz, porque se despojou de tudo e chega até a sua Dama que por sua vez nua se agarra ao Cristo crucificado. Para Francisco, a pobreza perfeita permite libertar-se dos grilhões da posse, de todos os obstáculos externos que impedem a liberdade total de amar o próximo, aquele amor que o santo declara no Testamento que alcançou quando o Senhor o conduziu entre os leprosos", escreve Chiara Frugoni, historiadora italiana, em artigo publicado no caderno Alias Domenica, do jornal Il Manifesto, 24-10-2020. A tradução é de Luísa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

As fontes medievais sobre São Francisco - em grande contradição entre si - falam bem pouco sobre a situação antes de sua conversão definitiva. Sua mãe o batizou com o nome de João, mas seu pai, o rico comerciante de tecidos Pietro de Bernardone, voltando de uma de suas viagens à França em que costumava levar o filho consigo, passou a chamá-lo de Francisco, como para dizer "o francês": esse apelido também agradou a quem o usava, ciente de estar destinado a se destacar e a se distinguir de seus pares. O apelido também pareceu bastante apropriado ao povo de Assis pelo uso frequente do futuro santo da língua francesa e pela admiração que professava ao ler nessa língua as aventuras dos bravos e requintados cavaleiros, exaltados nas canções dos feitos e nos romances do Rei Arthur e dos Paladinos da Távola Redonda. Nesses textos se desdobravam as virtudes que idealmente lhes pertenciam: a destreza na luta, a generosidade, a cortesia nas maneiras, o amor, mesmo ao custo de enormes sacrifícios, por uma bela dama.

 

Sempre que Francisco recorre ao francês, é porque se encontra num momento de desconforto psicológico, tem que se colocar à prova, humilhar-se diante de seus antigos companheiros, se deixar insultar.

 

Reprodução da capa de L’avventura di un povero cavaliere del Cristo Frate Francesco, Dante, Madonna Povertà

 

Francisco, creio eu, recorre então à língua pela qual aprendera as virtudes da coragem, tomando como modelo as virtudes heroicas de cavaleiros e paladinos: Franco Cardini enumera e comenta com elegância os vários episódios de sua L’avventura di un povero cavaliere del Cristo Frate Francesco, Dante, Madonna Povertà (A aventura de um pobre cavaleiro do Cristo Frei Francisco, Dante, Nossa Senhora Pobreza, em tradução livre, Laterza “i Robinson / Letture”, pp. X-407, euro 24,00).

 

Já adulto, Francisco, apesar de ser muito hábil na sua profissão, não quis continuar e passar a vida num armazém rodeado de tecidos e empréstimos usurários, como o seu pai, na pequena Assis. Ele queria subir na escala social: ser condecorado cavalheiro pelos méritos adquiridos na guerra e se casar com uma bela e nobre dama. Quando as fontes nos levam ao seu conhecimento ele está totalmente dedicado a perseguir o seu sonho e por isso destaca-se por generosidade organizando banquetes e festas, líder de uma brigada de amigos, vestindo-se da maneira mais ostensiva e suntuosa possível, comportando-se e conversando sempre de maneira gentil, de acordo com os cânones da ideologia cavalheiresca. Ele está prestes a partir com um nobre de Assis que por sua vez estava para ir para a Puglia lutar ao lado de Inocêncio III, na esperança, Francisco, de ser declarado cavaleiro pelos méritos adquiridos na guerra. Cardini enumera as muitas circunstâncias em que as ações e decisões de Francesco têm sua contrapartida em situações que ocorreram a seus "heróis de romances"; deixo a quem vier a ler o livro o prazer de descobri-las, guiado pela cultura prodigiosa do autor.

 

Antes de sua partida, Francisco também sonha com um belo castelo habitado por sua esposa e aprende por uma voz arcana que é tudo seu e de seus cavaleiros. Os eventos se desenrolarão de outra forma porque Francisco entenderá que ele não deve seguir um senhor terreno, mas o Senhor celestial, e após uma lenta conversão de muitos anos - era difícil para um homem adulto mudar radicalmente sua vida - ele decidirá finalmente se despedir de seu programa, para se tornar, em suma, o Francisco que conhecemos.

 

O código de valores dos bravos e corteses cavaleiros que em sua juventude havia se tornado seu ideal modelo de comportamento, no entanto, deixou uma profunda impressão no futuro santo. Cardini o demonstra de forma muito convincente: Francisco permaneceu em seu coração um cavaleiro dedicado a um imenso projeto heroico, embora de sinal mudado, certo de estar a serviço do Altíssimo e de ter sido, com seus companheiros, expressamente escolhido, como disse ao cardeal Ugolino, que queria impedi-lo de deixar a Itália: "O senhor crê, que Deus enviou os frades apenas para o bem dessas regiões? Em verdade vos digo que Deus escolheu e enviou os frades para o proveito espiritual e a salvação das almas dos homens do mundo inteiro”.

 

São Francisco de Assis (Foto: Reprodução | Facebook)

 

Tendo se tornado frade, diante daqueles coirmãos que consideravam o estudo mais importante deixando de lado o estilo de vida a que haviam se devotado, de pregação, é claro, mas também de meditação e de penitência, tomou partido em favor de seus frades, chamando-os de "cavaleiros da Távola Redonda que se isolam em lugares desabitados e remotos para se abandonarem com mais amor à oração e à meditação, chorando pelos seus próprios pecados e pelos alheios", justamente como em tantos romances de Chretien de Troyes os cavaleiros enfrentaram um vida difícil vagando entre perigos e aventuras na floresta. Diante de seus companheiros que glorificaram o martírio de cinco de seus irmãos como se eles próprios o tivessem sofrido, Francisco adverte asperamente que devemos nos orgulhar não da glória alheia, mas do que realmente foi realizado, como "Carlo o Imperador, Orlando e Oliviero, que com suas ações corajosas, oferecendo-se até a morte, deram o exemplo aos cristãos.

 

Francisco que se deixa arrastar seminu e tremendo de frio com a corda em volta do pescoço até a pedra do pelourinho de Assis porque declara ao público atônito e comovido, que ele comeu um pouco de frango durante a Quaresma enquanto estava extremamente doente, está muito perto, nota Cardini, de Lancelot que, no Chevalier de la charrette de Chrétien de Troyes, por amor à sua dama, se submente à desonra de um passeio na carroça dos condenados ao pelourinho. O santo, que era um grande comunicador, concebeu este coup de théatre. Porém, como há muitos episódios identificados por Cardini na vida do santo que têm como modelo de inspiração situações de romances, deve-se ressaltar, me parece, que o cavaleiro com o hábito não é apenas Francisco, mas os companheiros quem transmitiram tais episódios; e não me parece um acaso que os primeiros companheiros do santo pertencessem todos a uma classe social muito elevada: nobre era Bernardo de Quintavalle, Pietro Cattani era jurista irmão de Tebaldo, cavaleiros eram Masseo, Angelo e Tancredo (Rufino talvez não fosse um cavaleiro, mas ele era primo da nobre Chiara que em sua família contava com sete cavaleiros "todos nobres e poderosos").

 

Pelo menos nos primeiros tempos, portanto, Francisco podia contar com uma nostalgia compartilhada pelo cavalheirismo, embora sublimada. Francisco e os frades que como cavaleiros vão em busca de sua senhora, Domina Paupertas no poema, talvez escrito pelo próprio Rufino, Sacrum commercium beati Francisci cum Domina Paupertate, movem-se perfeitamente segundo o código do amor cortês, origem do nosso modo de amar, mas que decorre de uma situação de adultério como Georges Duby explica há tempo (um jovem solteiro a serviço de seu senhor tentava conquistar sua esposa, uma mulher casada, portanto inacessível, com um assedio extremamente perigoso se descoberto, mas muito mais eficaz no processo formativo do aspirante cavaleiro).

 

Francisco, nota Franco Cardini, que dedica páginas muito originais ao Sacrum Commercium (103-110), “ama uma senhora de nível superior ao seu; na verdade, a Senhora de seu Senhor...

Paupertas é, portanto, dominada por Francisco e os seus como consorte do Dominus. Essa relação fortalece a lealdade profunda dos fideles, e o mesmo amor de cada um deles ou de todos por ela reafirma em vez de comprometer seu vínculo com o Senhor. A linha é tênue, o equilíbrio perigoso: mas esse é precisamente o dado qualificador" (pp. 104-105). Conceito retomado por Dante (e o autor dedica muitas observações interessantes ao retrato de Francisco feito por São Domingos no canto XI do Paraíso) quando exclama: “Riqueza inota! Ó Bem só verdadeiro! Descalço vai Egídio, vai Silvestre, Porque amam-na, do esposo no carreiro”.

 

São Francisco de Assis (Foto: Reprodução)

 

 

O cavaleiro Francisco sobe facilmente a montanha, a Cruz, porque se despojou de tudo e chega até a sua Senhora que por sua vez nua se agarra ao Cristo crucificado. Para Francisco, a pobreza perfeita permite libertar-se dos grilhões da posse, de todos os obstáculos externos que impedem a liberdade total de amar o próximo, aquele amor que o santo declara no Testamento que alcançou quando o Senhor o conduziu entre os leprosos. Embora antes lhe parecesse muito amargo vê-los, ele escreve: “Tive misericórdia deles. E, afastando-me deles, o que me parecia amargo transformou-se em doçura de alma e de corpo”.

 

Razões de espaço não me permitem apresentar os tantos outros argumentos de grande interesse tratados pelo autor, portanto, só me resta recomendar a sua leitura completa e imediata.

 

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