22 Outubro 2021
"No entanto, estas e outras 're-Escrituras', à primeira vista blasfemas aos olhos do cristão, confirmam a extraordinária e até provocativa fecundidade da Bíblia, da qual, porém, é difícil prescindir, mesmo em plena secularização. A nossa foi apenas uma pinçada nos ensaios de Boitani, que incluem muitos outros sujeitos. Transformam-se não apenas em uma aula de literatura, mas também em um exercício criativo de exegese, capaz de confirmar a tese da qual partimos sobre o Autor e o Leitor", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 17-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
As fontes da literatura. O estudo de Piero Boitani destaca a incidência secular de páginas bíblicas nas grandes obras literárias de Dante a Shakespeare, de Tournier a Saramago.
Piero Boitani,
Rifare la Bibbia. Ri-Scritture letterarie,
il Mulino, pp. 341, € 28
"Escreve-se apenas uma metade do livro, a outra metade cabe ao leitor". Esta consideração de Joseph Conrad se ajusta também às Sagradas Escrituras, tanto que se tornou um ditado comum a afirmação de São Gregório Magno de que a Bíblia cum legente crescit. E é assim que na teologia, ao lado do primado da Escritura, foi se colocando a presença sempre viva da Tradição. Essa é também a perspectiva constante adotada em muitos escritos de Piero Boitani, um verdadeiro magister para literatos, mas também para exegetas e teólogos, em seu exercício de Re-Escrituras literárias, como reza o subtítulo de sua última coletânea de ensaios, onde é fundamental a letra maiúscula em "Escrituras".
Foi ele - como já assinalamos nestas páginas - quem repropôs a obra capital de Northrop Frye, já emblemática em seu título O grande código: a Bíblia, de fato, foi durante séculos o léxico básico da arte, da literatura, da música, do pensamento ocidental que em suas páginas se buscaram inspiração para figuras, eventos, símbolos, cenas, narrativas, teses, modelos éticos. A exegese bíblica mais completa não pode se esgotar na busca histórico-crítica primária na "letra" e "espírito" daquelas Escrituras, mas deve também buscar sua existência subsequente e vitalidade secular. A própria Bíblia já estava convencida disso, que, sob o próprio patrocínio de Salomão, rei e sábio, incluía obras posteriores de séculos e diferentes em gêneros e tonalidades como Qoheleth, o Cântico dos Cânticos e o Livro da Sabedoria. Ou reescrevia incessantemente a história do êxodo do Egito, do livro homônomo até a palinódia escatológica do Apocalipse.
Sempre no limiar metodológico do volume de Boitani, aquele seu "refazer a Bíblia" é, na verdade, um paralelo do que se realiza na música: a obra não está apenas na partitura, mas também em sua execução viva e sonora. Como Luigi Pareyson observou no seu ensaio Verdade e Interpretação, a multiplicidade das execuções “não prejudica de forma alguma a singularidade da obra musical porque a performance não é uma cópia nem um reflexo, mas sim a vida e a posse da obra”. Nesse ponto, resta sentar-se na plateia e acompanhar a regência de Boitani que, como "maestro", executa aquela partitura suprema para uma orquestra extraordinária de intérpretes.
Como se sabe, dando continuidade à metáfora musical, o maestro lê a partitura verticalmente de acordo com todas as partes dos instrumentos ou do coro, enquanto cada orquestral ou corista lê sua parte horizontalmente. No esplêndido concerto dirigido por Boitani, as onze partituras baseadas em figuras ou temas e eventos bíblicos são interpretadas de acordo com um autor principal, que é a voz ou instrumento dominante, mas toda a execução é confiada a um coral sonoro impressionante e variegado.
À parte da metáfora, em cada página dos vários ensaios emergem atores principais, que podem ser Dante ou Shakespeare, Milton ou Thomas Mann, mas também Saramago ou Joseph Roth, uma miríade de testemunhos literários que Boitani evangelicamente extrai de seus exterminados “tesouros de coisas novas e velhas” (Mateus 13,52), compondo-as em uma espécie de coro a capela.
Diante de tal arquitetura, somos acometidos por uma sensação de vertigem. Por exemplo, veja-se o capítulo sobre Dante que se dirigiu à Bíblia como uma constelação guia ou, para ficar no simbolismo musical, uma "teodia" executada por ele de acordo com as quatro chaves musicais da hermenêutica tradicional: literal, alegórica, moral e anagógica. Sugestiva é a proposta final dirigida por Boitani aos leitores: "Que tomem ao acaso um canto da Comédia e encontrem ecos, alusões, retomadas das Escrituras", apenas para "constatar como Dante não reescreve, mas compõe a sua Bíblia". Entre outras coisas, há quem tenha contado 588 citações bíblicas que se encastoam nos 14.223 hendecasílabos.
Outro horizonte fascinante é aquele reservado a Shakespeare: desde sempre o estudioso percorreu aquela espécie de jardim de símbolos, histórias, personagens e temas que o Bardo de Avon cultivou, sempre inserindo a flor das Escrituras nos momentos cruciais. Mas ele também está pronto para enfrentar os espinhos que se alinham e se ramificam ao longo dos árduos traçados da ética da misericórdia e da justiça (como não evocar o Mercador de Veneza?). Se quisermos, então, podemos nos aproximar do século XX, e eis que o Moisés de Faulkner vem ao nosso encontro, convidado - na famosa coletânea de contos, intitulada Desça, Moisés - a voltar para propor novamente o apelo ao "velho faraó para deixar seu povo ir", como lemos no refrão do "spiritual" afro-americano Go down, Moses, alimentado pelo Salmo In exitu Israel de Aegypto, também caro a Dante (Purgatório II, 46).
E é novamente Moisés quem volta à cena com um autor que sempre teve a Bíblia como estrela polar de suas narrativas. É Michel Tournier de Eleazar, ou A nascente e a sarça: tive a sorte em 1996, ano de sua tradução italiana, de conversar com o escritor em Milão, tanto em público quanto em particular, e hoje encontro nas páginas de Boitani precisamente o mapa que sustentou o enredo bíblico ideal de seu criador. Original é, além disso, a abordagem de um escritor desconcertante em sua referência a Cristo, o ateu José Saramago, especialmente com seu Evangelho segundo Jesus, uma "re-Escritura" do Evangelho de Lucas pela mão de Pilatos, um romance de "estrutura espiral, como aquela do Inferno de Dante”. A parábola do texto do autor português, no entanto, dilacera aquelas páginas sagradas, até a inversão das últimas palavras de Jesus: "Homens, perdoai-lhe, porque não sabe o que fez".
No entanto, estas e outras "re-Escrituras", à primeira vista blasfemas aos olhos do cristão, confirmam a extraordinária e até provocativa fecundidade da Bíblia, da qual, porém, é difícil prescindir, mesmo em plena secularização. A nossa foi apenas uma pinçada nos ensaios de Boitani, que incluem muitos outros sujeitos. Transformam-se não apenas em uma aula de literatura, mas também em um exercício criativo de exegese, capaz de confirmar a tese da qual partimos sobre o Autor e o Leitor. Até porque, como lemos no Doutor Živago (também examinado aqui), “a Bíblia não é um livro com um texto rígido, mas sim o diário da humanidade e assim é tudo o que é eterno”.
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O bom escritor mantém a bíblia aberta. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU