13 Julho 2016
"William Shakespeare nos deixou uma espécie de oceano textual, onde se agitam as ondas do bem e do mal, do cômico e do trágico, do amor e do ódio, do esplendor e das trevas, do riso e das lágrimas. Por isso, é difícil tentar definir o seu rosto espiritual, porque sempre se corre o risco de balbuciar diante de tamanha vastidão de pensamentos, emoções, ações, símbolos."
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 10-07-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Alguns me perguntaram por que eu não me pronunciei neste ano shakespeariano sobre o "grande que faz com que cada homem se sinta grande", como Chesterton o definia. A pergunta faz sentido, porque não há dúvida de que, no coração das suas obras, pulsa também uma alma religiosa, para além da sua pertença ou não ao catolicismo, de acordo com alguns atestada pelo fato de ele ter sido enterrado em um cemitério católico e validado, de maneira mais sutil, pelo recurso – nas suas composições mais tardias – talvez à versão inglesa de uma Bíblia católica, a de Douai-Rheims, ao menos de acordo com a hipótese daquele extraordinário anglicista, filólogo e intérprete que é Piero Boitani.
É justamente a esse mestre que devemos um esplêndido livro como Il Vangelo secondo Shakespeare [O Evangelho segundo Shakespeare] (Ed. Il Mulino, 2009), ao qual eu seria capaz apenas de tocar, e certamente não de acrescentar algo mais.
Porém, pensei em aproveitar assim mesmo a solicitação, até porque, no passado, eu fiz uma pequena incursão no Rei Lear para uma comparação dele com outra obra-prima, o livro bíblico de Jó. No entanto, estou consciente da imensidão de tal autor, diante do qual até o teólogo se perde.
De fato, ele nos deixou uma espécie de oceano textual, onde se agitam as ondas do bem e do mal, do cômico e do trágico, do amor e do ódio, do esplendor e das trevas, do riso e das lágrimas. Por isso, é difícil tentar definir o rosto espiritual de Shakespeare, mesmo que descrevendo um único lineamento, porque sempre se corre o risco de balbuciar diante de tamanha vastidão de pensamentos, emoções, ações, símbolos.
Ele está consciente – como confessa o seu Hamlet – que o homem é "uma obra de arte": "Quão nobre pela razão! Quão infinito pelas faculdades! Como é significativo e admirável na forma e nos movimentos! Nos atos quão semelhante aos anjos! Na apreensão, como se aproxima aos deuses, adorno do mundo, modelo das criaturas! No entanto, que é para mim essa quintessência de pó? Os homens não me proporcionam prazer."
Das alturas da exaltação, desliza-se, assim, no ventre obscuro do absurdo. É o que é asperamente declarado por Macbeth em uma das representações mais poderosas e dramáticas da existência humana: "A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco; faz isso por uma hora e depois já não se ouve mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado".
Porém, a pessoa humana tem uma extraordinária capacidade de transcender o seu limite através do amor, como proclama Julieta ao seu Romeu: "O meu coração (...) o meu amor (...) Quanto mais te dou, mais tenho, pois ambos são infinitos".
Assim, pensei em evocar, neste centenário shakespeariano que cai no Ano Jubilar da Misericórdia, justamente essa virtude, que, aos olhos do poeta de Stratford-upon-Avon, tem um perfil até mesmo heroico, embora na sua silenciosa manifestação: quem não recorda o testemunho escondido e sóbrio de amor de Cordélia, de Rei Lear, ou a discreta e incompreendida ternura de Desdemona, de Otelo? É claro, o olhar de Shakespeare penetra especialmente no emaranhado venenoso das serpentes do ódio, porque, como afirma o Duque Próspero, de A Tempestade, "mais raramente nos resolvemos ao perdão do que à vingança". E terrível é o diálogo em Ricardo III entre o protagonista e a rainha Anne. Esta implora: "Por Deus, até mesmo as feras sabem, em certos momentos, sentir piedade". E Ricardo: "Mas, justamente porque eu não sou uma fera, esse sentimento não me toca".
Porém, o homem, como ensinam muitos personagens que povoam as cenas criadas por Shakespeare, pode ser capaz de doação e de amor, apesar da forte ênfase que o poeta sempre reserva à miséria humana, à angústia, ao vício, à solidão. Por outro lado, a história nos ensina que "as más ações dos homens vivem no bronze; as virtuosas, nós as escrevemos sobre a água" (como diz Henrique VIII), mas elas são muitas mais, embora escondida e esquecidas. É por isso que a justiça divina muitas vezes irrompe na história, como atestam muitas tramas dos dramas shakespearianos.
Essa justiça, no entanto, tem uma última instância de apelo. É o que é proclamado principalmente no ato IV do Mercador de Veneza: "A misericórdia está acima de qualquer movimento do cetro. Ela tem seu trono no coração dos reis, é um atributo de Deus e um tributo a Deus, é um poder mundano que se mostra divino quando a misericórdia vem temperar a justiça".
Por um lado, de fato, o judeu Shylock, implacável ao exigir a libra de carne do inimigo Antônio, encarna a norma ético-legal do talião, lapidar na sua própria formulação bíblica: "Vida por vida, olho por olho, dente por dente, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe" (Ex 21, 23-25). Uma norma "justa", independentemente do que se diga e apesar do seu ditado brutal, porque se baseia na justiça retributiva.
Mas, por outro lado, Shakespeare está ciente de que existe um primado moral e religioso que transcende a própria justiça e a lei. É o que afirma Pórcia, travestida de advogado de defesa com o nome de Bassânio, dirigindo-se justamente a Shylock: "Embora o cumprimento da justiça seja a tua argumentação, considere o seguinte: no cumprimento da justiça, nenhum de nós vai encontrar a salvação. Nós lhe suplicamos por misericórdia, e essa mesma súplica ensina-nos a todos que devemos praticar a misericórdia".
Eis, portanto, a quality of mercy, aquele perdão que é a alma da misericórdia e que Shakespeare celebra sempre pondo na boca de Pórcia/Bassânio esta espécie de canto: "A qualidade da misericórdia não é forçada. Ela cai do céu como uma chuva suave sobre o chão. É duas vezes bendita: abençoa quem a dá e aquele que a recebe; é mais poderosa do que os poderosos e se adapta ao rei no trono mais do que a sua coroa".
Se Deus tivesse que adotar o critério exclusivo da justiça, nós seríamos aniquilados. É o que o grande dramaturgo professa em uma passagem de uma obra menos conhecida, Medida por Medida, mais ou menos contemporânea da suprema trilogia Otelo – Rei Lear – Macbeth (1604-1606): "O que vocês seriam se Deus, no auge da justiça, tivesse que lhes julgar como vocês são? Pensem nisso, e a misericórdia respirará dos seus lábios como o homem recém-criado".
Essa arquitetura grandiosa narrativa e temática que é A Tempestade – quase certamente entre as últimas obras de Shakespeare –, no fim, se resolve um ato de conversão e de perdão, porque o prevaricador Antônio se arrepende, e o irmão Próspero o perdoa, de modo a impedir que a vingança leve ao desespero e à morte.
É interessante notar que um dos mais originais diretores do teatro inglês, em particular shakespeariano (como não lembrar a sua anticonvencional encenação do Sonho de uma noite de verão, de 1968?), Peter Brook, intitulou um livro seu com aquela quality of mercy que vimos ser o fio dourado que desenrola o drama veneziano e a sua dialética entre justiça e misericórdia.
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Shakespeare, o misericordioso. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU