16 Agosto 2021
É muito comum que golpes de Estado sejam precedidos de ensaios que testam as verdadeiras forças em presença, a higidez das instituições, o ânimo da opinião pública, o estado de espírito das tropas que se deseja mobilizar etc. São “quase-golpes” que preparam a ação definitiva em um momento posterior.
Há informações de que assistiremos a um ensaio, ou a um “quase-golpe”, em torno do próximo dia 7 de setembro. Incluirá bloqueio de estradas, cerco a Brasília, mobilização de paramilitares e uma grande escalada retórica. O pedido de impedimento de ministros do STF, que Bolsonaro anunciou, é o elemento mobilizador da trama.
A maneira como os acontecimentos vão se desenrolar, a reação da sociedade, a postura das instituições e os desdobramentos serão decisivos para o que ocorrerá no período seguinte.
Os bolsonaristas sabem que perderão as eleições de 2022 e não querem deixar o poder. É preciso deixar claro, para eles, que o caminho do golpe está fechado. Ou eles avançarão.
Bolsonaro sabe que perdeu. Por isso, prepara uma grande crise institucional para a primeira quinzena de setembro, acompanhada por mobilizações e confrontos. Será o ensaio de um golpe de Estado. Precisaremos derrotar o golpe e, em seguida, desbaratar completamente os esquemas golpistas. O alerta de Ciro Gomes está correto.
CHEGA! IMPEACHMENT JÁ!
Bolsonaro quer produzir a mais grave crise institucional desses tempos sombrios com o anúncio de que vai pedir o impeachment de dois ministros do STF. Logo ele, o presidente mais passível de crimes de responsabilidade da nossa história. Chega! Já deu! O impeachment de Bolsonaro é pra já.
O governo federal incluiu numa Medida Provisória o uso de vouchers na educação infantil. É uma velha aspiração dos setores mais corruptos e mais reacionários, também neste caso baseada na experiência fracassada da ditadura do general Augusto Pinochet, no Chile, que Paulo Guedes assessorou. Neste momento, o povo chileno está jogando no lixo esse modelo.
Pelo projeto, o governo se desobriga de manter uma rede pública de educação infantil e entrega vouchers a famílias cadastradas, que os repassarão a escolas privadas. Formar-se-á assim um mercado de vouchers, sujeito a todo tipo de especulação e manipulação. Os poderes paralelos de cada área, incluindo o tráfico, a milícia e os políticos – que, frequentemente, são uma coisa só –, terão mais uma atividade muito lucrativa na intermediação desses vouchers.
As igrejas evangélicas também serão beneficiadas. Quando eu era secretário no Rio de Janeiro, Marcelo Crivella insistia para diminuirmos as exigências físicas e pedagógicas para o credenciamento de creches conveniadas, que recebem recursos públicos. É uma área em que, por motivos históricos, é forte a presença de entidades ligadas à Igreja Católica. A ideia era abrir esse espaço para igrejas evangélicas, que não tinham nem experiência nem capacidade para trabalhar com educação infantil. Sempre me recusei a aceitar que nossas creches se transformassem em depósitos de crianças. A medida foi adotada na gestão de Talma Suane, depois da minha exoneração.
O fim da rede pública de educação infantil e a adoção do sistema de vouchers consagram todas essas deformações.
Preparando golpe? Precisa ser preso
Queridos irmãos e irmãs, o antigo Mestre da Ordem, Timóteo Radcliffe, passará por uma operação séria na segunda-feira dia 16, como ele disse aos seus amigos num e-mail recente:
"Eu tenho cancro da mandíbula. Isto... vai necessitar da remoção de vários centímetros do meu osso maxilar. Então eles devem tirar o mesmo comprimento de osso e tecido de uma das minhas pernas para reconstruir o meu maxilar. O risco é que isso vá prejudicar minha capacidade de falar, comer ou engolir. Não tenho medo de morrer, pois confio que cairei nos braços do nosso Senhor misericordioso. Mas eu tenho medo da possibilidade de ser deficiente dessa forma. O cirurgião disse-me que levará cerca de dezoito meses para recuperar o máximo que eu puder."
Por favor rezem por Timóteo, e pelos médicos que estão a cuidar dele. Vamos mantê-lo informado sobre o progresso dele.
• 16/08/2005 – memória do brutal assassinato do irmão Roger Schutz, da comunidade de Taizé, na França. Roger Schütz, conhecido como Irmão Roger ou Roger de Taizé ou Frei Roger (Provence, Vaud, Suiça, nascido em 12 de maio de 1915 — Taizé, França, 16 de agosto de 2005) foi um frade e líder cristão suíço. Em 1940 fundou a Comunidade de Taizé, uma comunidade ecuménica de irmãos, da qual foi prior até à data do seu assassinato em 2005, esfaqueado por uma jovem romena chamada Luminița Ruxandra Solcan, que mais tarde foi diagnosticada como doente mental.
O funeral foi inesperadamente presidido por um sacerdote católico, Walter Kasper, então presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que celebrou a Missa juntamente com quatro Irmãos-sacerdotes de Taizé em concelebração. Na homilia, o cardeal Kasper expressou a memorável frase: "Sim, a primavera do ecumenismo floresceu na colina de Taizé."
"Rien n´est grave, sauf perdre l´amour".
"Nada é grave, exceto perder o amor".
"The more a believer wishes to live the absolute call of God, the more essential it is to do so in the heart of human distress.“
Fonte aqui.
• 16/08/1869 – Memória da batalha de Acosta Ñu quando um exército paraguaio com 3.500 crianças de seis aos doze anos foi massacrado pelas forças militares da triplice aliança. A Batalha de Campo Grande (chamada Batalha de Los Niños ou Acosta Ñu pelos paraguaios) foi um conflito que aconteceu durante a Guerra do Paraguai, quando 20.000 homens da tríplice aliança massacraram as frágeis forças paraguaias constituídas por 500 veteranos e 3.500 crianças. Crime de lesa humanidade até hoje sem julgamento e reparação histórica. Vergonha mundial.
A classe média levando o que pediu na eleição de 2018.
Matéria na Folha de S. Paulo de hoje.
Frei Betto
Gustavo Gutiérrez completou 90 anos no último dia 8 de junho. Nos cinco continentes proliferam livros, teses, artigos e críticas sobre a obra dele, bem como de outros teólogos como Leonardo Boff, Hugo Assmann, João Batista Libânio, Juan Luis Segundo, José Míguez Bonino, Elsa Támez e inúmeros outros, identificados com os princípios e a metodologia da teologia da libertação.
A teologia da libertação ocupa uma posição de prima-dona na teologia atual. Graças às "Instruções" (1984) do Cardeal Ratzinger, tornou-se assunto de interesse até para, nada menos, que a Academia de Ciências da União Soviética, como verifiquei ao visitar o país integrando um grupo de teólogos brasileiros, em junho de 1987.
As duas "Instruções" emitidas pela Congregação para a Doutrina da Fé, e os procedimentos contra o livro Igreja, Carisma e Poder e seu autor, Leonardo Boff, levaram o debate teológico para dentro dos muros sagrados das instituições eclesiásticas, e deram a ele amplo espaço na mídia, nas universidades e nos movimentos políticos.
As obras dos teólogos provocam mais interesse que as personalidades de seus autores. Este viés epistemológico tem suas vantagens: desde que o trabalho seja rigoroso, segundo os critérios de seu campo específico, não há necessidade de perturbar o autor, seguro em sua privacidade conquistada. Entretanto, o divórcio entre autor e obra não tem sido sempre um mero capricho da razão moderna. Algumas vezes tem servido como instrumento ideológico – no sentido primitivo em que Marx usou a expressão “ideologia” - precisamente para encobrir a contradição entre autor e obra. Basta recordar o recente impacto das revelações de que Heidegger colaborou com o regime nazista.
No caso de autores mortos, as biografias são sempre de grande interesse para aqueles que buscam um melhor entendimento do texto, dentro do contexto. Quem hoje lê Althusser com a mesma atenção que suas obras provocaram antes de 15 de novembro de 1980, quando o filósofo marxista estrangulou sua esposa? Em contraste, a morte de Dietrich Bonhoeffer, num campo de concentração nazista, deu às suas obras um novo caráter, assim como o assassinato do arcebispo Oscar Romero garantiu ampla distribuição de seus sermões.
Embora o alvo principal sejam sempre as obras que produzem, a pessoa dos teólogos da libertação tem sempre suscitado uma polêmica considerável. De qualquer modo, estamos acostumados a viver em situações de conflito – seja a ocupação de terras que levou os irmãos Leonardo e Clodovis Boff à prisão, em Petrópolis, em 4 de março de 1988, sejam as censuras e os castigos impostos pelos que governam nossas Igrejas.
Certo desconforto é criado em alguns setores teológicos do Primeiro Mundo exatamente por esse critério, que confere à teologia da libertação um novo caráter: nela, o discurso teológico não pode ser separado do compromisso pastoral. O teólogo da libertação não é um intelectual de poltrona, confinado em bibliotecas e salas de leitura, dedicado a um rigor acadêmico, protegido de conflitos atuais.
E não se escreve teologia da libertação sem se inserir profundamente, porque o ponto de partida do teólogo da libertação não é sua mente supostamente iluminada, mas a prática pastoral de comunidades cristãs pobres, comprometidas com a causa da libertação popular.
Por essa razão, a teologia da libertação não existe sem vínculo com sua fonte, a prática libertadora de comunidades cristãs oprimidas do Terceiro Mundo. Gramsci nos ajuda a compreender esse novo status da teologia com seu conceito de “intelectual orgânico”, que define a relação do teólogo com o movimento popular. Isso explica por que a teologia da libertação é representativa de grupos populares, através do apoio que recebe de uma imensa rede de Comunidades Eclesiais de Base e um número incontável de mártires e confessores, cuja vida eclesial e profecia são fontes para o pensamento e a produção dos teólogos.
Na América Latina, o fato de ser "filho ilegítimo" não afeta necessariamente a imagem social de alguém. Somos todos filhos e filhas de relacionamentos entre espanhóis e ameríndios, portugueses e caboclos, brancos e negros, mestiços e mulatos. Nosso racismo é só para efeito social: ele se dilui no calor dos trópicos, em que sexualidade é poder e festa, barganha e submissão, fantasia e transgressão. Nesta parte do mundo, a família é um conceito tão recente quanto a sua constituição. Para parafrasear Santo Tomás de Aquino, aqui a vida extrapola o pensamento. Nem mesmo a teologia escapa da árvore genealógica de raízes incertas e galhos torcidos. Interrogar a teologia da libertação sobre seus ancestrais legítimos é como perguntar a um indígena mexicano ou a um plantador de café colombiano sobre a verdade histórica por detrás de sua tradição familiar.
Gustavo Gutiérrez pode, com razão, ser considerado o pai da teologia da libertação, pois foi o primeiro a publicar um livro com esse título, em 1971, pela espanhola Ediciones Sígueme. Mas ele mesmo não nega a importância, para seu trabalho, da visita que fez ao Brasil em 1969, quando teve contato com nossas Comunidades Eclesiais de Base e experimentou, de perto, o drama do assassinato – ainda hoje impune – do assessor da juventude de dom Helder Camara, o padre Henrique Pereira Neto, estrangulado e baleado pela ditadura militar brasileira em Recife, em 26 de maio de 1969. Gutiérrez dedicou sua "Teologia da libertação" a ele e ao romancista peruano José María Arguedas. Apesar disso, não é possível negar as raízes europeias provenientes do humanismo integral de Jacques Maritain, do personalismo engajado de Mounier, do evolucionismo progressivo de Teilhard de Chardin, da dogmática social de De Lubac, da teologia do laicado de Congar, da teologia do desenvolvimento de Lebret, da teologia da revolução de Comblin, ou da teologia política de Metz.
O Concílio Vaticano II incentivou as condições para que fosse cortado o cordão umbilical que mantinha a teologia da América Latina dependente do útero da mãe Europa. Ao se iniciar a década de 1960, a revolução cubana, o fracasso da Aliança para o Progresso, a crise do modelo desenvolvimentista e o crescimento de movimentos de esquerda não ligados aos partidos comunistas tradicionais, foram alguns dos fatores que levaram os teólogos latino-americanos a enraizar o pensamento no solo que pisavam. Não que fosse uma questão de procurar por categorias que permitissem uma reinterpretação de fatos sociais e políticos. O motor da teoria era a prática das comunidades populares cristãs, enraizada na luta; conforme transformavam o mundo, também alteravam o modelo da Igreja. Mudança social e eclesiogênesis estão, em última instância, ligadas.
A construção de um projeto político alternativo não deixa a Igreja intocada, como se fosse uma comunidade de anjos pairando acima das contradições que atravessam a trama da sociedade. O elemento novo era a consciência, alcançada na vida em comum das Comunidades Eclesiais de Base, de que a Igreja não é apenas o papa ou os bispos, mas o povo de Deus em marcha na história. E a presença deste povo crente e oprimido nos movimentos sociais da América Latina marcou a fé com um caráter crítico que fez nascer a teologia da libertação.
Na sétima conferência internacional da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), em Oaxtepec, México, em dezembro de 1986, o teólogo negro norte-americano James Cone se queixou que a teologia da libertação latino-americana era demasiado branca. O estranho é que a seu lado estava Gustavo Gutiérrez, de aparência tipicamente indígena: pele marrom, rosto redondo, baixo e atarracado, com olhos ligeiramente amendoados, revelando sua ascendência quéchua. Em casa, seu pai falava esse idioma do antigo império inca. Porém, mais que a língua e a aparência, Gutiérrez herdou o estilo dos ameríndios andinos. E é isso que surpreende qualquer pessoa que o conheça: ele combina – não sem alguns conflitos – a mente dotada de inteligência rápida e racional, magisterial, que se expressa em uma linguagem construída como as partes de um instrumento de precisão, e uma sensibilidade que desarma todos os modelos da moderna racionalidade.
Nele coexistem o intelectual treinado em Louvain – onde foi colega de Camilo Torres e defendeu uma tese baseada em Freud – e o ameríndio do altiplano peruano. É isto que lhe permite entrar numa sala de aula sem ser notado – como que deslizando sobre seus próprios pés – ou visitar seu amigo Miguel d’Escoto sem que ninguém mais perceba sua presença em Manágua. É como se ele pudesse viajar, não apenas nas estradas acessíveis a viajantes urbanizados, mas também nas trilhas e picadas que só os habitantes da selva conhecem. Esse dom ancestral lhe permite dominar uma nova língua, um novo campo de conhecimento, ou passar através de Nova York, Paris ou Bonn, como um ameríndio se esgueirando entre árvores e folhas, observando sem ser observado, rápido como u m pássaro e discreto como uma lhama.
Esta característica permitiu que ele trabalhasse no rascunho do famoso Documento de Medellín, aprovado pela Conferência Episcopal Latino-americana, em 1968 – um texto que se tornaria fundamental à prática e teoria da Igreja dos pobres na América Latina.
Certa ocasião, Gutiérrez chegou a Roma exatamente quando os bispos peruanos estavam discutindo os trabalhos dele com os mais altos dignitários da Cúria. Quem pode jurar que o texto final, mais favorável a ele que o rascunho original, não tenha sido redigido pela própria pena de Gutiérrez?
Discreto como um capuchinho, ele se movimenta no domínio político dos conflitos teológicos com toda a sutileza de um jesuíta. Embora sua expressão às vezes revele aquela angústia metafísica característica das pessoas para quem a linha estreita que separa a morte da vida é familiar, nunca entra em pânico, e sua aguda intuição é capaz de apresentar soluções imediatas a problemas complicados, como se tivesse meditado durante anos sobre uma questão que acabou de surgir. Consegue ficar sentado durante horas num banco de aeroporto, escrevendo um artigo ou escutando alguém, mordendo nervosamente o tempo todo um palito com seus dentes fortes, ligeiramente separados. Suas respostas são quase sempre ironicamente divertidas, como se estivesse armando uma adivinhação.
Ao ministrar aulas e conferências, segue um padrão rígido tão cuidadosamente montado que dá a impressão de ter ornamentado seu texto. Suas piadas conferem às palavras um sabor todo seu, porque é sempre capaz de manifestar aquela rara virtude que tanto o encanta: o humor. Seu senso de humor lhe permite manter certa distância crítica de qualquer fato. Não se permite ser traído pela emoção, porque sabe que nada de humano merece ser levado demasiado a sério.
Convivi com Gustavo Gutiérrez em Puebla, em janeiro e fevereiro de 1979, durante a Terceira Conferência Episcopal Latino-americana. Naquela ocasião, o nome dele, do mesmo modo que o de outros teólogos da libertação, havia sido excluído da lista de assessores oficiais. Não tinha acesso direto ao local de encontro dos bispos, mas muitos prelados vinham até ele em busca de ajuda, o que o obrigava a passar noites inteiras elaborando rascunhos e propostas.
Estávamos todos alojados precariamente em dois apartamentos sem mobília, que raramente tinham água e em cujos banheiros faltava luz. Sobrevivíamos com algum maná caído do céu, porque não tínhamos cozinha, e nos restaurantes da cidade seríamos presas fáceis da imprensa internacional, sempre em busca de um teólogo para decifrar a linguagem eclesiástica dos textos, ou para dar uma entrevista exclusiva que confirmasse a natureza rebelde ou herética da teologia da libertação...
Depois de driblar todos os correspondentes estrangeiros durante dias, na tarde do domingo, 4 de fevereiro de 1979, Gutiérrez aceitou a sugestão do Centro Mexicano de Comunicación Social (Cencos) de realizar uma coletiva de imprensa no hotel El Portal. Em seus comentários, ele enfatizou que a teologia da libertação não tinha planejado começar por uma reflexão sobre os pobres. Os próprios pobres, agentes da transformação histórica, iniciaram essa reflexão teológica. O objetivo da teologia da libertação é dar aos pobres o direito de pensar e se expressar teologicamente. Quanto mais os jornalistas o pressionavam para deixar escapar algo que pudesse soar como heresia, tanto mais Gutiérrez se mostrava fiel aos pobres e à Igreja. Ele é mestre em reconciliar (conciliando) pólos aparentemente opostos, apresentando sínteses que nos incentivam a reinterpretar a tradição e o mundo à nossa volta.
Encontrei-me com ele em diferentes ocasiões em seu escritório – a “torre” de Rimac, bairro pobre de Lima. Decididamente era um dos escritórios mais desordenados que jamais vi. Espalhados e misturados no chão havia latas de Coca-Cola e livros do cardeal Ratzinger. Também garrafas em cima de documentos papais, fios elétricos desgarrados perambulavam entre papéis empoeirados. Não havia o menor indício de que um espanador tivesse estado lá desde a chegada de Francisco Pizarro ao Peru.
Apesar disso, aquela confusão tinha lógica para ele. Sabia exatamente onde encontrar cada coisa. E em meio àquele monte de papéis ele devorava os livros que recebia. Quando sentia fome, comia alguma refeição comum indefinida, junto com desempregados e subempregados.
Gutiérrez sempre preferiu ler a escrever. Tem seu próprio método de leitura dinâmica, como se uma antena lhe indicasse a qualidade do conteúdo de uma obra. Escrever, para ele, é um ato doloroso. E quando escreve, admitir que alcançou a versão final é um sacrifício. Sempre considera um texto provisório, a ser revisto e melhorado. Por isso, quase todas as suas obras começaram como palestras mimeografadas. É muito provável que seja o autor de mais obras não publicadas, conhecidas só por um pequeno círculo de leitores, do que publicadas. Em geral, sequer assina os textos mimeografados, que incluem uma excelente introdução às ideias de Marx e Engels e de seu relacionamento com o cristianismo.
Em janeiro de 1985, na véspera da visita do Papa João Paulo II a Lima, eu o encontrei na “torre” de Rimac, escrevendo uma série de artigos ligados a esse importante evento eclesial. Enquanto conversávamos, Gutiérrez tentava desembaraçar um longo fio de telefone, que mais parecia uma bola de lã na boca de um gato brincalhão. Ele sempre mantém as mãos ocupadas quando está nervoso, seja torcendo um elástico ou brincando com uma caneta esferográfica. E naquele momento tinha razões mais que suficientes para estar tenso, pois o cardeal Ratzinger anunciara, para setembro, uma resposta à defesa que Leonardo Boff havia feito de seu livro Igreja, Carisma e Poder, contra as críticas de Roma. O Natal tinha passado e a Cúria ainda permanecia em silêncio. A segunda "Instrução" sobre a teologia da libertação, baseada numa consulta aos bispos da América Latina, prometida para novembro ou dezembro, também não tinha aparecido.
Talvez tivesse sido decidido que o papa deveria fazer uma declaração mais oficial sobre a teologia da libertação no local. Nada poderia ser mais oportuno que um pronunciamento durante uma visita à terra natal do pai da teologia da libertação. Gutiérrez temia que o papa dissesse algo que pudesse ser interpretado como uma condenação à sua teologia. Seria desastroso. Apesar disso, estava pronto a deixar a “torre” que o protegia do assédio da imprensa e aparecer no encontro do papa com sacerdotes e leigos na praça. Mais uma vez parecia certo de que, devido às suas raízes indígenas, como pessoa capaz de caminhar à noite na floresta sem despertar a natureza de seu sono, sua presença seria discreta como a garoa que cobre os telhados de Lima antes do amanhecer.
A caminho de Cuba, os irmãos Leonardo e Clodovis Boff e eu passamos por Lima, no fim da tarde de 4 de setembro de 1985. Encontramos Gutiérrez na paróquia operária onde, junto com o padre Jorge, diretor da Pastoral Operária de Lima, o teólogo exercia seu ministério sacerdotal. Insistimos que fosse conosco para Havana, porque Fidel Castro tinha demonstrado grande desejo de encontrá-lo. Gutiérrez foi evasivo, objetando que, naquele mesmo momento, um grupo de bispos peruanos, liderados por dom Durán Enriquez, estava preparando um livro didático criticando seus escritos, o que significava que teria de se concentrar em produzir uma espécie de defesa antecipada.
Algum tempo depois, Gutiérrez confirmou que não tinha ido a Cuba em atenção a um pedido do padre Carlos Manuel de Céspedes, então secretário geral da Conferência Episcopal Cubana, que fora seu colega em Roma. O sacerdote cubano tinha medo que a presença do teólogo peruano em Cuba fosse explorada politicamente.
Na noite seguinte ao nosso encontro em Lima, os irmãos Leonardo e Clodovis Boff, e eu, nos encontramos com Fidel Castro em Havana. Entregamos a ele a carta que o teólogo lhe mandara. Ao terminar, Fidel comentou que acabara de ler “Teologia da Libertação” e se disse impressionado com sua base científica e seu impacto ético. Mencionou especialmente a honestidade com que Gutiérrez trata a questão da luta de classes e a dimensão da pobreza. E acrescentou, com ênfase: “Precisamos distribuir livros como este ao movimento comunista. Nosso povo não sabe nada sobre isso. Para vocês é mais difícil escrever um livro como este, do que para nós produzir um texto sobre marxismo." Alguns dias depois, Fidel declarou, na presença de dom Pedro Casaldáliga, do Brasil, de visita a Cuba, que “a teologia da libertação é mais importante que o marxismo para a revolução na América Latina”.
Mas quem pensa que a política fala mais alto no coração de Gustavo Gutiérrez está enganado. Ele é acima de tudo um místico. Seus livros mais conhecidos, O Deus da Vida, Sobre Jó: Falar de Deus, O Sofrimento do Inocente e Beber de nosso próprio poço, são fundamentalmente espirituais, visando a alimentar a vida de fé e oração de cristãos comprometidos com a luta popular.
Para Gutiérrez, a teologia é secundária. O essencial é fazer a vontade de Deus na ação libertadora. E sua aguda visão teológica capta a presença do Senhor, solidário lá onde Ele parece estar mais ausente, no sofrimento dos pobres. Esse sofrimento permeia a vida do próprio Gustavo Gutiérrez, pois sua saúde delicada exige cuidados constantes. Mas ele não se queixa. Prefere gritar pelos pobres.
Certa ocasião, passei um dia inteiro com ele no Curso de Verão, em Lima, ao qual acorriam milhares de militantes de comunidades cristãs de base em busca de fundamentação teológica. Percebi que ele estava triste, embora tivesse apresentado seu curso com a habitual vivacidade. Havia uma sombra naquele rosto que se ilumina, feliz, quando rodeado de pessoas simples, pobres, dedicadas à utopia do Reino. Conversamos, e nem uma palavra de autopiedade saiu de seus lábios. Só mais tarde fiquei sabendo que sua mãe havia morrido naquele dia.
O livro sobre Jó é uma autobiografia disfarçada de Gustavo Gutiérrez. De suas páginas surge a profunda convicção de que toda a teologia da libertação deriva do esforço de dar sentido ao sofrimento humano. Na busca desse sentido, o teólogo sabe que, como diz Clodovis Boff, tudo é política, mas a política não é tudo. A solidariedade com o pobre não se esgota na causa da justiça; ela nos conduz à esfera da gratuidade, onde o despojamento espiritual abre o caminho para a comunhão com Deus.
Assim como na América Latina a vida de fé não pode ser separada das exigências da política, também o projeto revolucionário deveria encontrar na mística cristã o modelo para a formação de novos homens e mulheres. Consequentemente, a teologia da libertação só pode ser acusada de desprezar a dimensão espiritual por alguém que não conheça a longa lista de obras que nasceram da contemplação e das mãos de Segundo Galilea, João Batista Libanio, Elsa Támez, Carlos Mesters, Arturo Paoli, Raúl Vidales, Pablo Richard ou Leonardo Boff.
Os estigmas divinos queimam as entranhas de Gustavo Gutiérrez. É impossível apreender a profundidade total de sua inspiração intelectual, seu papel profético e sua alma mística sem conhecer aqueles três peruanos que estão na raiz de sua genialidade: José Carlos Mariátegui, César Vallejo e, acima de tudo, José María Arguedas.
Do comunista Mariátegui, autor do clássico Siete Ensayos Peruanos, Gutiérrez aprendeu a técnica de canibalismo cultural necessária para latino-americanizar toda a bagagem teórica de seus anos de estudos em Roma, Bélgica, França e Alemanha. Do poeta César Vallejo, autor de Trilce, poesia tão importante para a literatura moderna quanto Ulisses, herdou o lamento nostálgico da criatura sofredora diante do silêncio do Criador: “Meu Deus, se Você tivesse sido humano hoje, Você seria capaz de ser Deus” (Los dados eternos). “Nasci num dia em que Deus estava doente” (Espergesia).
No entanto, a influência maior foi do novelista José María Arguedas, de quem Gutiérrez era amigo, e a quem rende tributo em muitas de suas palestras e escritos. É interessante que ele tenha escolhido, como epígrafe de sua obra Teologia da Libertação, uma página do livro Todas las Sangres deste autor quéchua, especificamente aquela em que o sacristão indígena de Lahuaymarca diz ao sacerdote: "Seu Deus não é o mesmo. Ele faz com que pessoas sofram sem consolo..."
“Será que Deus poderia estar no coração daqueles que dilaceraram o corpo do inocente Mestre Bellido? Será que Deus poderia estar no corpo dos engenheiros que estão matando La Esmeralda? No coração das autoridades que tiraram de seus donos aquele campo de milho onde, em cada colheita, uma virgem costumava brincar com seu filhinho pequeno?”
Em novembro de 1981, encontrei Gustavo Gutiérrez em Manágua. Lá, entre discussões teológicas com os dirigentes sandinistas, numa tentativa de ajudá-los a entender as diferentes posições dos cristãos quanto à revolução, nasceu aquilo que mais tarde se tornaria seu livro sobre Jó. Nele levanta a questão fundamental e pergunta a si mesmo: Como podemos falar sobre Deus no meio de tanta opressão? Se queremos fazer teologia, falar sobre Deus, disse ele, precisamos primeiro ficar em silêncio diante de Deus. Desse silêncio, que envolve os corações dos pobres, nasce a sabedoria. E precisamos repetir com Jó, em meio a tantas cruzes latino-americanas e profunda sede de amor: “Antes eu te conhecia só por ouvir dizer; mas, agora, meus olhos te viram." Tudo em Gustavo Gutiérrez, sua obra e sua vida, converge para essa visão.
Hoje, Gutiérrez é meu confrade na Ordem Dominicana
Frei Betto é assessor de movimentos pastorais e sociais, autor de “Fidel e a Religião” (Companhia das Letras), entre outros livros.
É louvável a iniciativa de republicação da obra de Carolina Maria de Jesus pela Companhia das Letras. É importante reconhecê-la pelo que ela foi: uma grande escritora, entre as maiores do Brasil.
Mas discordo completamente da decisão de manter a gramática original de Carolina, com todos os seus muitos desvios da norma padrão da língua, sobretudo na ortografia.
Afirma-se que é para "resguardar a integridade da voz e da escrita" da autora.
Quando se trata de um escritor da elite, porém, o texto sempre passa por uma cuidadosa revisão. Ninguém acha que a "integridade" de sua voz literária está ligada a seus "erros de português".
Ao se reeditar a obra de um escritor do passado, a ortografia também é atualizada. O fato de que a edição grafa "fósforo" em vez de "phosphoro" não é considerado um atentado à dicção literária de Machado de Assis.
Parece que os escritores da elite devem ser lidos pelo que estão nos dizendo. Já Carolina deveria ser lida por sua inadequação – é isso?
A manutenção dos desvios gramaticais de Carolina se presta apenas ao intuito de exotizar sua escrita. Como se sua obra só pudesse ter valor quando a autora é singularizada como a avis rara: a favelada escritora.
A despeito de toda a retórica, a edição da Companhia das Letras aposta em manter Carolina Maria de Jesus nas margens da literatura brasileira, vista como uma curiosidade. Não foi capaz de confiar na força e na beleza de sua prosa.
De minha parte, continuarei a revisar os trechos de sua obra sempre que for citá-los.
O governo colocou à venda o prédio mais bonito do Rio de Janeiro, um marco da arquitetura modernista, construído sobre pilotis, projetado por Le Coubusier, com painéis de Portinari e jardins de Burle Marx. Foi inaugurado por Getúlio Vargas em 1945 para ser sede do MEC, num tempo em que o Brasil pensava grande. Muitas vezes desviei meu caminho para passar ali. O dinheiro arrecadado servirá para pagar por alguns minutos os juros da dívida pública.
ÍNDICE DE IMORTALIDADE INFANTIL
(Por: Eduardo Galeano)
Quando Manuel tinha um ano e meio, quis saber por que não conseguia agarrar a água com a mão. E aos cinco anos, quis saber por que as pessoas morrem:
- E morrer é o quê?
- Minha avó morreu porque estava velhinha? E por que morreu um bebê menor que eu, que eu vi ontem na televisão?
- Os doentes morrem? E por que morrem os que não estão doentes?
- Os mortos morrem um pouquinho ou morrem de vez?
Pelo menos, Manuel tinha resposta para a pergunta que mais o atormentava:
- Meu irmão Felipe não vai morrer nunca, porque ele sempre quer brincar.
(EDUARDO GALEANO - In: "Bocas do Tempo")
Blog: Sociologia & Análise
"...non si può mai essere consapevoli a sufficienza della nostra responsabilità nei confronti del prossimo che ci interroga, che chiede il nostro aiuto; dobbiamo tendere l'orecchio a ciò che ci dice il nostro cuore con sempre maggiore devozione e coscienziosità..."
"... nunca se pode estar consciente o suficiente da nossa responsabilidade com o próximo que nos interroga, que pede a nossa ajuda; devemos ter o ouvido para o que nosso coração nos diz com cada vez mais devoção e consciência..."
José Luis Fevereiro, com um comentário sobre o Afeganistão, vindo do Brasil - curto, simples, claro, no ponto. Quais são as lições para as nossas guerras em Moçambique?
Há uma linha de argumentação que identifica Joe Biden como traidor dos afegãos, pois, segue o argumento, a precipitada retirada das tropas dos EUA permitiu a rápida ofensiva, para já triunfante, dos Talibans.
Este argumento está errado em quatro pontos. Primeiro, como diz o José Luís Fevereiro, ninguém pode substituir um povo quando se trata da resolução dos seus próprios problemas. Solidariedade é distinta de ocupação e semi colonização. Etapas não podem ser cortadas. Segundo, a traição aos afegãos não foi feita agora, mas quando os USA criaram e financiaram os Mujahideen. Em 1982, Ronald Reagan declarou, num encontro com as lideranças dos Mujahideen, que eles eram o equivalente moral dos pais fundadores dos EUA. Terceiro, para que serviram 20 anos de ocupação e de reorganização militar do Afeganistão se os Mujahideen ocuparam Kabul em duas semanas depois de saírem as tropas ocupacionistas? O que estiveram lá a fazer durante 20 anos? O que pensam que conseguiriam atingir se ficassem mais 20 anos? Quarto, a estratégia imperialista dos EUA, neste caso, foi particularmente escandalosa não apenas porque foram os EUA a criar o monstro e a alimentá-lo, mas porque deliberadamente escolheram transformar toda aquela região num viveiro de terrorismo fundamentalista - protegeram e fortaleceram as incubadoras do terrorismo islâmico, a Arábia Saudita, o Paquistão e o regime fascista de Israel, atacaram e destruíram os países que serviam de barreira à incubação e expansão do terrorismo com argumentos sobre direitos humanos que se aplicam igualmente aos seus aliados sauditas e paquistaneses - Iraque, Síria, Yemen, Afeganistão - e, enquanto o faziam, enriqueceram corporações financeiras, de construção civil, de energia, infiltraram e, aproveitando as suas fraquezas organizativas e ideológicas, destruíram as primaveras árabes, como movimentos sociais, e trouxeram de volta ditaduras militares, regimes fundamentalistas (semelhantes ao que os seus evangelistas querem no ocidente) ou caos.
A lição principal do Afeganistão é que cada povo tem de tomar o seu destino nas suas mãos; solidariedade internacionalista não é o mesmo que ocupação e semi colonização, e estas só exacerbam e, às vezes adiam, mas não resolvem as grandes contradições da sociedade.
Fazer os EUA e as suas forças recuarem para dentro de si e para fora do resto do mundo pode ser o primeiro passo para a construção de um mundo melhor, mesmo que, a curto prazo, a paz podre que a ocupação imperialista criou, seja destruída.
Em total solidariedade com o povo do Afeganistão na sua luta contra o imperialismo e contra o fundamentalismo como ideologia, como cultura e como forma de governação política.
SOBRE A VOLTA DO TALIBÃ
20 anos depois o Afeganistão volta exatamente ao mesmo ponto. Talibã no poder e agora legitimado pela derrota da intervenção estrangeira.
Qualquer analista internacional sério prévia isto em 2001.
Desde o século 19 todas as intervenções estrangeiras fracassaram no Afeganistão.
Ingleses, Soviéticos, Norte-Americanos, todos fracassaram .
Lamentavelmente não há atalhos. A tarefa de superar o Talibã cabe aos afegãos e á sua experiência com este governo pelos próximos anos .
Autodeterminação dos povos não é apenas uma frase bonita. É um imperativo histórico.
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