30 Junho 2021
Quais instrumentos analíticos permitem compreender melhor o presente histórico? A indagação é de Bernardo Ricupero, professor no departamento de ciência política da USP, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 29-06-2021.
A história da Ciência Política no Brasil é uma história extremamente curta. Como é amplamente sabido, a disciplina da maneira que a conhecemos é um produto do golpe de 1964. A relação da ciência política com o autoritarismo não deixa, porém, de ser ambígua, já que deseja explicá-lo e é, ao mesmo tempo, beneficiária do sistema de pós-graduação produzido pela modernização autoritária brasileira.
Exemplo da preocupação com o golpe é a afirmação que abre a tese de Wanderley Guilherme dos Santos, The calculus of conflict: impasse in Brazilian politics and the crisis of 1964, defendida na Universidade de Stanford: “a tomada de poder militar em 1964 foi uma surpresa para muitos, um choque para outros e um alívio para aqueles que acreditavam que o presidente João Goulart havia comprometido seriamente seu governo em uma aventura populista de tipo radical”. Nessa referência, o autor de Quem dará o golpe no Brasil? convida “aqueles que estão insatisfeitos com suas avaliações anteriores a repensarem a política do período e a buscar uma explicação mais aprofundada para este evento decisivo” (SANTOS, 1979: V).[1]
Pouco antes, Bolívar Lamounier, também na sua tese de doutorado, Ideology and authoritarian regimes: theoretical perspectives and a study of the Brazilian case, defendida na Universidade da Califórnia/Los Angeles, argumentara, em sentido semelhante, que o golpe evidenciara que “nossas referências teóricas fornecem pouca orientação em situações concretas” (LAMOUNIER, 1974: 13).[2]
Por outro lado e de maneira complementar, o autoritarismo brasileiro também foi modernizador, promovendo o estabelecimento de um sistema de pós-graduação, cujo marco é a Reforma Universitária, de 1968. Assim, os primeiros mestrados em ciência política foram criados na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1965, e no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), em 1969, experiência da disciplina que, em boa medida, contrasta com a anterior como se teve, por exemplo, na cadeira de Política da USP. Concomitantemente, a afirmação da ciência política como disciplina se beneficia de uma atuação agressiva da Fundação Ford que, desde a Revolução Cubana, se envolveu numa disputa pela hegemonia cultural na América Latina, promovendo a vinda de professores norte-americanos e concedendo bolsas para que estudantes brasileiros realizassem pós-graduação nos EUA.
É verdade que a preocupação com o autoritarismo está presente no conjunto das ciências sociais produzidas no Brasil depois de 1964. Não por acaso, como indicou Luiz Werneck Vianna (1997), as ciências sociais do período voltaram-se prioritariamente para interpretar o que foi caracterizado como modernização conservadora brasileira, como se percebe em A economia brasileira: crítica da razão dualista (1972), de Francisco de Oliveira; São Paulo e o Estado nacional (1973), de Simon Schwartzman; Politique et dévéloppement économique:strutcturs de pouvoir et systéme de décision au Brésil (1973), de Luciano Martins; A revolução burguesa no Brasil (1975), de Florestan Fernandes; Elite and state-building in imperial Brazil (1975), de José Murilo de Carvalho; Capitalismo autoritário e campesinato (1976), de Otávio Velho; Liberalismo e sindicato no Brasil (1976), do próprio Werneck Vianna; The agrarian roots of modernization in Brazi : 1880 – 1930 (1979), de Elisa Reis.
No entanto, o desafio foi especialmente relevante para a ciência política até em razão de tradicionalmente seu objeto privilegiado ser o Estado. Talvez ainda mais importante, o golpe acaba representando uma oportunidade para se afirmar a autonomia da política diante de outras esferas, como a social e a econômica. Na afirmação da especificidade da política e, junto com ela, da ciência política, os praticantes da disciplina voltam-se especialmente contra a sociologia e o marxismo, que tinham uma posição de destaque nas ciências sociais brasileiras antes do golpe.
Em termos contrastantes com a orientação até então dominante, valorizam a pesquisa empírica diante da preocupação conceitual. Nessa orientação, é possível tanto destacar o peso dos processos políticos como variáveis independentes para a quebra da democracia, como faz Santos (1979), como indicar que desafios políticos poderiam atrapalhar a consolidação do arranjo autoritário, como faz Lamounier (1974). Em termos mais amplos, depois de 1964 o Estado assume uma importância ainda maior no desenvolvimento do país, que estimula o estudo dos processos a ele associados.
Num certo contraste com a agenda de “aggionarmento”, tanto Santos (1978) como Lamounier (1982), ao pensarem a ciência política brasileira, valorizam a anterior tradição ensaística como elemento próprio e distintivo da disciplina no país. O pensamento produzido no Brasil sobre questões políticas antes da institucionalização da disciplina funcionaria mesmo, segundo Lamounier (1982), como uma espécie de “estoque” de temas e problemas disponível para os posteriores cientistas políticos. Nessa referência, o pensamento político seria constitutivo da própria ciência política tal como entendida no Brasil.
Por outro lado, apesar do notável crescimento nos últimos anos do que passou a ser uma subárea, é questionável que o conjunto da comunidade de cientistas políticos brasileiros compartilhe da crença na importância do pensamento político. Mesmo assim, por vezes inconscientemente, continua-se a fazer uso do “estoque” fornecido por essa tradição. Cria-se, assim, uma situação curiosa; em que o pensamento político é parte constitutiva, mas desprezada da ciência política brasileira.
Voltando à breve reconstituição histórica, é possível assinalar que se a ciência política brasileira se ocupa privilegiadamente, nos anos 1960 e 1970, do autoritarismo, a disciplina passa a tratar, na década de 1980 e 1990, sobretudo da transição, consolidação e qualidade da democracia. Como na primeira situação, a orientação teórica não deixa de estar relacionada com desenvolvimentos políticos mais amplos, em especial, a progressiva retirada dos militares do poder. Concomitantemente, o interesse pelo Estado vai cedendo espaço para a sociedade civil, categoria que, durante a transição, assume um significado bastante específico.
Particularmente influentes no período é a literatura que passou a ser conhecida como “transitologia”. Na defesa da democracia, estes trabalhos assumem claramente uma posição normativa. Ao mesmo tempo, se mostram bastante pessimistas em relação ao funcionamento das “novas” democracias. Guillermo O´Donnell – importante cientista político argentino que morou diversos anos no Brasil – considerou, por exemplo, que estas democracias não seriam consolidadas ou institucionalizadas, mesmo que passassem a ser duradouras. Nessa referência, chegou a defender que a melhor caracterização para elas não seria como democracias representativas, mas como “democracias delegativas”, em que quem “ganha uma eleição presidencial é autorizado a governar o país como lhe parece conveniente” (O´Donnell 1991: 30).
Em sentido oposto, desde meados dos anos 1990, a ciência política brasileira passa a tratar não mais da consolidação da democracia, mas de como nossa democracia funcionaria. O motivo mais profundo para que se assumisse tal perspectiva seria a crença de que o Brasil seria uma democracia estável, o que poderia ser averiguado usando os mais diferentes critérios. Junto com a mudança de avaliação sobre o desempenho da democracia no Brasil, há também um certo deslocamento analítico: de um enfoque mais global, preocupado com questões mais amplas, como o Estado e regimes políticos, passa-se para abordagens mais específicas, que lidam com Estudos Legislativos, Políticas Públicas, Controles Democráticos e mesmo com Pensamento Político.
Nos últimos anos, ou melhor, desde pelo menos desde o golpe parlamentar de 2016, certezas recentes foram ou, ao menos, deveriam ter sido abaladas. Antes de mais nada, o pressuposto de que o Brasil seria uma democracia consolidada já não se sustenta. A posterior eleição de um presidente de extrema-direita que cotidianamente desafia as bases da nossa democracia sem que haja maior reação aos seus atos mostra como é urgente repensar a ciência política brasileira.
Para tanto, o pensamento político brasileiro pode ter um papel importante, até porque, diferente de boa parte da disciplina no país, nunca teve uma visão naturalizada do que é a democracia brasileira. Isso talvez até ocorra, em parte, devido à sua origem ser, de certa forma, prévia à institucionalização das ciências sociais. Além do mais, o fato de seu material ser basicamente a história faz com que desconfie das certezas da época, espero, que qualquer que ela seja. Essas condições também facilitam que transite mais livremente entre as diferentes áreas da ciência política e das ciências sociais em geral. Em suma, tem uma maior predisposição para uma perspectiva crítica, que transcenda as condições de um momento ou outro.
De maneira sugestiva, se a reação ao golpe de Estado de 1964 foi de surpresa e de inquietação, tais sentimentos voltam a aparecer hoje. Os jovens cientistas sociais de um passado já aparentemente longínquo perceberam que não possuíam instrumentos analíticos para entender a situação que o país vivia depois do golpe militar. As ciências sociais brasileiras, e mais especificamente, a ciência política, tais como a conhecemos, são, em grande medida, o resultado da busca de respostas a essa apreensão. Mesmo que a atual crise política seja muito diferente de 1964, até porque vivemos num contexto posterior à guerra fria, em que a corrosão da democracia ocorre por dentro dela, também não dispomos de ferramentas conceituais para compreendermos o que ocorre nesses dias no Brasil. Até porque, de um momento para outro, se desfizeram boa parte das crenças que se formaram nas últimas décadas sobre a democracia brasileira, para as quais a contribuição da ciência política não foi desprezível.
Em suma, se coloca hoje um desafio cuja resposta determinará a própria relevância da ciência política brasileira. Para enfrentá-lo, o Pensamento Político pode desempenhar um papel importante.[3]
Referências
LAMOUNIER, B. 1974. Ideology and authoritarian regimes: theoretical perspectives and a study of the Brazilian case. PhD Thesis. University of California/Los Angeles, 1974.
O’DONNELL, G. 1991. “Democracia delegativa?” Novos Estudos CEPRAP. n. 31, pp. 25-40.
SANTOS, W. G. 1979. The calculus of conflict: impasse in Brazilian politics and the crisis of 1964, PhD Thesis, Stanford.
VIANNA, L. W. 1997. A revolução passiva no Brasil: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan.
Notas
[1] Santos procura demonstrar que a crise que produziu 1964 seria uma crise de paralisia decisória, gerada no contexto de um sistema partidário caracterizado pelo que o cientista político italiano Giovanni Sartori chamou de pluralismo polarizado.
[2] Lamounier, defende que uma ideologia autoritária, criada na década de 1920 e 1930, funcionaria como uma verdadeira tecnologia política para os estratos superiores da burocracia militar e civil, preparando 1964.
[3] Texto baseado em apresentação nas IV Jornadas de Pensamento Político.
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Desafios atuais do pensamento político brasileiro. Artigo de Bernardo Ricupero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU