08 Junho 2021
Francisco e a reforma da Igreja: o pedido de renúncia do cardeal Reinhard Marx ao cargo de arcebispo de Munique é um apoio ou um golpe violento?
O comentário é de Riccardo Cristiano, jornalista e escritor italiano, em artigo publicado em Reset, 07-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Foram muitas e diversas as leituras do “caso Marx”, um dos mais próximos colaboradores de Francisco, coordenador do Conselho Vaticano para a Economia desde 2014 e membro do Conselho dos Cardeais que está definindo a reforma da Cúria Romana.
O “fidelíssimo” Reinhard Marx não renunciou a esses cargos. Ele pediu para deixar a diocese mais importante da Igreja alemã em um momento muito delicado, de fermentação.
Muitos se detiveram em uma frase: “A Igreja está em um ponto morto”. A frase completa é esta: “A minha impressão é de que estamos em um ‘ponto morto’, que – e esta é a minha esperança pascal – também pode se tornar um ‘ponto de virada’. A ‘fé pascal’ também se aplica a nós, bispos, na nossa pastoral: ‘Pois quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; mas quem perder a sua vida vai salvá-la!’”.
Como está o impulso propulsor do pontificado? Esta é uma oportunidade ou um golpe violento? Talvez, para se ter uma ideia do espírito com que foi escrita a carta do cardeal a Francisco, é oportuno ressaltar, como muitas vezes acontece, também as palavras conclusivas da missiva: “Continuo feliz por ser padre e bispo desta Igreja e continuarei a me envolver nas questões pastorais, sempre que o senhor considerar útil e bom. Nos próximos anos do meu serviço, desejo me dedicar cada vez mais à pastoral e a trabalhar por uma renovação espiritual da Igreja, como o senhor incansavelmente nos exorta a fazer”.
A renúncia do cardeal Reinhard Marx tem certamente três níveis de leitura: o pessoal, o alemão e o universal. O purpurado dirige a sua diocese desde 2007, não é uma “cara nova”. A situação alemã, além disso, é muito delicada, e há novos capítulos, especialmente em Colônia. A dimensão global é dada pela relevância do problema e pela relação de confiança que liga o purpurado ao papa.
Em nível pessoal, Marx despendeu muito esforço para lançar luz. Portanto, o seu sofrimento pessoal toca o nível alemão do problema: lá estão no meio de um caminho sinodal muito difícil e importante, do qual se falou pouco e mal, segundo alguns adeptos aos trabalhos.
No entanto, Marx falou do possível “lugar teológico da crise alemã”, se assim posso dizer: a conduta da Igreja da qual ele é um expoente autorizado e líder diante dos abusos sexuais. Ele disse que percebeu uma crise que não está apenas nos comportamentos de alguns – muitos, ao que parece – mas no fracasso de todos: “Para mim, trata-se de compartilhar a responsabilidade pela catástrofe dos abusos sexuais por parte das autoridades da Igreja nas últimas décadas. As investigações e relatórios dos últimos 10 anos têm mostrado consistentemente que houve muitas falhas pessoais e erros administrativos, mas também falhas institucionais e ‘sistêmicas’. As discussões recentes mostraram que alguns membros da Igreja se recusam a admitir esse elemento de corresponsabilidade e, portanto, a cumplicidade da Igreja como instituição, opondo-se a qualquer diálogo sobre reformas e renovação em relação à crise dos abusos sexuais. Eu vejo isso de um modo diferente”.
O ponto morto é a não aceitação da culpa compartilhada da instituição? É em nome da sua “glória” que foi provocado o fracasso de que ele fala?
Na sua carta, também lemos: “Também não é aceitável simplesmente relegar essas denúncias, em grande parte, ao passado e às autoridades eclesiásticas da época, ‘enterrando-as’ dessa forma. Eu sinto a minha culpa e responsabilidade pessoais também pelo silêncio, pelas omissões e pelo foco excessivo na reputação da Igreja como instituição. [...] Negligenciar e desconsiderar as vítimas certamente foram a nossa maior falta do passado. Depois do estudo MHG sobre o abuso sexual de menores encomendado pela Conferência dos Bispos da Alemanha, eu afirmei na catedral de Munique que nós havíamos fracassado. Mas quem é esse ‘nós’? Eu também pertenço a ele. E isso significa que eu também tenho que tirar consequências pessoais disso”.
Para continuar, porém, é preciso enquadrar historicamente esse problema crucial levantado pelo purpurado. E, para fazer isso, é preciso voltar para 1989 e 2001. O primeiro não foi o ano do triunfo? Não achávamos que a história havia acabado? E como acabaria? Com a afirmação de um modelo único, liberalista, individualista, especulativo. O fim da era da contraposição deixou em campo apenas a cultura do eu soberano?
Sobre aqueles anos, é iluminadora a primeira parte do novo livro do professor Massimo Borghesi, “Francesco. La Chiesa tra ideologia teocon e ospedale da campo" [Francisco. A Igreja entre ideologia teoconservadora e hospital de campanha]. Nessa primeira parte, ele se concentra na encíclica Centesimus annus, de João Paulo II.
Esse texto posiciona a Igreja após o colapso soviético nos antípodas do neoliberalismo, da desregulamentação e assim por diante. Mas essa encíclica foi subvertida, com uma operação que Borghesi ilustra com textos e citações muito acuradas: nasceu o “catocapitalismo”, capaz de compatibilizar o catolicismo com a ideia de uma concorrência humana natural.
Em pouco tempo, esse catocapitalismo se aliou ao intervencionismo estadunidense, à exportação armada da democracia. A “guerra ao terror” era a resposta à loucura de 2001, quando Bin Laden disse: “Seremos nós que iremos pôr fim à história”! O imperialismo binladenista era totalmente mimético em relação àquilo que condenava, também a guerra contra o Japão, onde não havia nenhum muçulmano.
Quem escreveu isso também foi o grande René Girard, que ressaltou que os aviões com os quais Bin Laden derrubou as Torres Gêmeas eram aviões do império a serem abatidos. A “concorrência natural” para ele leva ao mimetismo e, portanto, à violência mimética.
Precisamente então, graças a João Paulo II, a Igreja voltou a Assis. Mas o valor da fraternidade, única resposta “religiosa” – isto é, obediente a Deus – tanto ao terrorismo quanto à sociedade liberal, individualista e especulativa, não chegou aos corações. A alma do Ocidente não acreditou nela.
É como se a nova hegemonia cultural estivesse neste resumo do mundo: “A derrota do comunismo foi a derrota da solidariedade e da fraternidade. Derrotamos o Islã, e a história realmente acabou na globalização do consumismo, único desejo, concorrencial, de todos”.
A Igreja Católica, com os seus papas, entendeu que esse terreno faria com que ela desabasse na sua própria casa? Eu acho que sim. Assim, realmente desapareciam os fundamentos católicos na terra na qual a Igreja se erguia. E ela tentou responder, a partir de Assis, onde João Paulo II voltou a reunir os líderes de todas as religiões em 2002, portanto antes do desastroso 2003.
O escândalo dos abusos sexuais, que surgiu precisamente naqueles anos, a desafiou frontalmente, radicalmente. “Olha para a trave no teu olho antes do cisco no meu”, respondeu-lhe o Ocidente armado. Pode-se pregar bem e agir mal?
Quando o arquivo passou para as mãos de Bento XVI, a linha dura foi anunciada com base em dois pressupostos, e nós os encontramos na carta aos irlandeses. Embora aqui também Ratzinger critique o pós-Concílio devido a uma orientação generalizada a “adotar formas de pensamento e de juízo das realidades seculares sem referência suficiente ao Evangelho”, o ponto forte é este: “Somente examinando com atenção os muitos elementos que deram origem à presente crise é possível empreender um claro diagnóstico das suas causas e encontrar remédios eficazes. Certamente, entre os fatores que contribuíram com ela podemos enumerar: procedimentos inadequados para determinar a idoneidade dos candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa; insuficiente formação humana, moral, intelectual e espiritual nos seminários e nos noviciados; uma tendência da sociedade a favorecer o clero e outras figuras de autoridade e uma preocupação fora de lugar com o bom nome da Igreja e para evitar os escândalos, que resultaram na não aplicação das penas canônicas em vigor e na não proteção da dignidade de cada pessoa”.
Corria o ano de 2010, e este segundo ponto ainda vale claramente hoje e impõe uma pergunta: Bento XVI foi ouvido sobre isso?
Se é verdade que a Igreja foi a única instituição a discutir a si mesma, também é verdade que ela não discutiu o suficiente. As crianças que vão a uma escola católica são enviadas a ela por causa dessa palavra, “católica”. E então? Então, eu me encontro plenamente naquilo que Francisco escreveu aos chilenos, lá onde fala de “uma maneira anômala de entender a autoridade na Igreja – tão comum em muitas comunidades nas quais ocorreram as condutas de abuso sexual, de poder e de consciência – como o clericalismo, essa atitude que ‘não só anula a personalidade dos cristãos, mas também tende a diminuir e a desvalorizar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo’. O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes quanto pelos leigos, gera uma cisão no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que hoje denunciamos. Dizer ‘não’ ao abuso significa dizer energicamente ‘não’ a qualquer forma de clericalismo”.
Corria o ano de 2018, e o ponto ficou muito claro. É o ponto da Igreja sinodal. Se todos os batizados são a Igreja, então a Igreja é vítima de alguns sacerdotes infiéis! Ele os deve perseguir por infidelidade, a carne da Igreja é a carne ferida. O problema é um abuso de poder por parte de quem tem o poder na instituição em detrimento da própria carne da instituição!
Eis, então, que se entende por que a Sra. Marie Collins se demitiu da Pontifícia Comissão para a Proteção da Infância. Ela pediu que a Congregação para a Doutrina da Fé, que instrui os processos canônicos contra os supostos responsáveis, também ouvisse as vítimas. Responderam-lhe que essa é a tarefa das dioceses. Formalmente, era uma resposta irrepreensível; substancialmente, era a recusa de um salto de mentalidade.
Então, não se pode deixar de ler Marx à luz do que o Pe. Antonio Spadaro escreveu em um famoso artigo sobre a força propulsora do pontificado. Ela ainda existe? Naquele texto, referindo-se a outras coisas, porém, o Pe. Spadaro escreveu: “Como exemplo concreto, pensemos no que aconteceu no Chile. Na sua Carta do dia 8 de abril de 2018, dirigida aos bispos do Chile após o relatório entregue por Dom Charles Scicluna sobre os abusos cometidos pelo clero, Francisco escreveu: ‘No que me diz respeito, reconheço e assim quero que transmitam fielmente, que incorri em graves equívocos de avaliação e percepção da situação, especialmente por falta de informação verdadeira e equilibrada. Já a partir de agora, peço perdão a todos aqueles que ofendi e espero poder fazer isso pessoalmente, nas próximas semanas, nas reuniões que terei com representantes das pessoas entrevistadas’. A partir dessas palavras, compreende-se bem que só ‘imergindo’ no povo e nos seus sofrimentos é que o papa se deu conta dos fatos. Mas isso, como se vê, é uma forma de governo, toca o governo da Igreja de forma estrutural, não é somente uma questão de estilo. As ideias pré-confeccionadas não servem, e as informações podem não ser equilibradas e verdadeiras: só o encontro e a imersão permitem um governo sábio”.
E como termina aquele texto publicado há um ano? Conclui-se assim: “Na sua homilia na Missa de Pentecostes de 2020, Francisco declarou abertamente: ‘O olhar mundano vê estruturas a serem tornadas mais eficientes; o olhar espiritual vê irmãos e irmãs mendicantes de misericórdia’. É esse o olhar que sabe ver na Igreja um ‘hospital de campanha’, imagem eficaz da sua verdadeira estrutura. ‘Eu vejo claramente – disse o papa à La Civiltà Cattolica na sua primeira entrevista em 2013 – que o que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e aquecer o coração dos fiéis, a vizinhança, a proximidade. Eu vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se ele tem o colesterol e os açúcares elevados! É preciso cuidar das suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Cuidar das feridas, cuidar das feridas...”.
Aqui se encontra a centralidade da ferida das vítimas dos abusos e da proposta sinodal que o cardeal Marx relança na sua carta. Partir das vítimas de um exercício doente de poder pode ser a melhor forma de mudar a própria ideia de poder: por que a glória da instituição pareceu mais importante do que aqueles pequenos?
A reforma é uma reforma da agenda, dos paradigmas, das prioridades e, portanto, questiona outras ideias de autoridade. As guerras culturais não vão bem com os silêncios nem com o tratamento das feridas.
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O “caso Marx” e o impulso reformador na Igreja: apoio ou retrocesso? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU