28 Mai 2021
Descaso bizarro das autoridades, que permitiram a passageiro infectado manter múltiplos contatos, em dois Estados, é novo sinal da negligência infinita. E mais: com reabertura das cidades, UTIs lotam de novo — e faltam vacinas.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por OutraSaúde, 27-05-2021.
Depois do Maranhão, São Paulo captou o primeiro caso da B.1.617, variante identificada primeiro na Índia. O paciente tem 32 anos e desembarcou em Guarulhos no sábado, sendo identificado pelo monitoramento da Anvisa. Para embarcar, havia apresentado teste PCR com resultado negativo, mas procurou as autoridades sanitárias após sentir um mal-estar. O resultado do sequenciamento genômico saiu ontem.
Mas a história não acaba aí. Acontece que não há quarentena obrigatória para quem entra no Brasil, então aconteceu o seguinte: o homem fez um teste PCR no próprio aeroporto, mas foi autorizado a embarcar para o Rio antes de o resultado sair. Viajou na noite do próprio sábado e se hospedou na capital fluminense em um hotel próximo ao aeroporto Santos Dumont. No domingo, foi de carro para Campos, cidade no norte do estado. Na segunda, voltou para a capital, onde permaneceu hospedado no hotel, “em isolamento” (muitas aspas aqui).
O caso gerou um embate entre a secretaria de Saúde de São Paulo e a Anvisa. A secretaria diz que só foi informada pela agência sobre o caso positivo no domingo, quando o homem já havia deixado o estado. Já a Anvisa diz que a entrada do paciente em solo brasileiro estava legalmente autorizada, por conta do PCR negativo que ele apresentou; e ainda que ele preencheu um termo de responsabilidade assumindo compromisso de cumprir a quarentena.
Os passageiros que tiveram contato com ele no voo para o Rio foram “orientados” a fazer quarentena também.
O tour do paciente aconteceu a despeito dos anúncios das autoridades brasileiras de que se esforçariam para detectar e isolar essa variante (o que não foi feito para a P.1, por exemplo). E isso aconteceu há menos de uma semana do caso identificado no Maranhão. Por aqui, continuamos sem muitas dúvidas de que a B.167 já havia entrado no país, totalmente desapercebida.
O Ministério da Saúde informou ontem que há mais três casos suspeitos sendo monitorados, em Minas Gerais e no Pará.
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou que vai lançar hoje um programa de testagem em massa no Brasil. “Nosso objetivo é testar entre 10 a 20 milhões de brasileiros todos os meses. Tem duas estratégias, testar os indivíduos sintomáticos na atenção primária, nas unidades básicas, e os assintomáticos em locais especificados”, disse ele, em uma audiência na Câmara. Se isso realmente se concretizar, o país fará, a cada dia, algo entre 1,5 e 3 testes por mil habitantes – e, quinze meses após o começo da pandemia, finalmente conseguirá uma taxa de testagem semelhante a países como Estados Unidos, Chile, Cuba e Alemanha.
Só que essa é pelo menos a terceira vez que o governo federal anuncia algo do tipo. A cada nova investida, a previsão do número de testes a serem realizados aumenta – o que não significa que as promessas sejam cumpridas. Em abril do ano passado, quando o vírus ainda circulava muito menos, o país fazia menos de três mil testes por dia e o ministério queria aumentar o número para 50 mil. Na época, foi anunciada a compra de 46 milhões de testes, sendo metade PCR e metade sorológicos. No mês seguinte, o então ministro Nelson Teich anunciou o programa “Diagnosticar para cuidar“, com a nova meta de 70 mil testes diários.
Os planos nunca saíram do papel. No fim de junho, já sob a batuta de Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde flexibilizou o programa, decidindo apoiar o diagnóstico por critérios clínicos, sem precisar necessariamente da testagem. Em novembro, o país tinha feito pouco mais de seis milhões de testes PCR, e havia outros 6,8 milhões perdendo a validade em um armazém.
Neste momento, o número total de testes PCR entregues pelo Ministério da Saúde aos estados desde o começo da pandemia é de 18 milhões (o que não significa que tenham sido usados). Ainda por cima, o ritmo de entrega caiu em abril e maio deste ano. O governo não divulga com transparência quantos exames são realizados diariamente.
Além de o Brasil já estar calejado quanto a promessas não cumpridas, há outro problema com que se preocupar: pelo que disse Queiroga, sua estratégia vai se basear em testes rápidos, e não no PCR. A matéria d’O Globo diz que o objetivo é conter a nova escalada de casos, mas não deixa claro se serão testes sorológicos ou de antígeno. Os primeiros identificam anticorpos vários dias após o início da infecção, e quando o paciente já pode ter contaminado várias outras pessoas; os últimos identificam infecções ativas e, aí sim, podem ajudar a conter o espalhamento do vírus pelo isolamento dos infectados.
Não foi por falta de aviso. Com os casos de covid-19 voltando a subir em vários estados, os sistemas de saúde – que tiveram breve alívio nas últimas semanas – estão pressionados de novo. Marcelo Queiroga reconheceu que há uma “tendência de aumento de casos”. Mas, apesar de dizer que “vamos trabalhar juntos para que se possa evitar essa terceira onda”, indicou que sua pasta não vai se responsabilizar por coordenar as medidas locais, nem orientar os municípios: “Pode ser necessário que se adote uma medida restritiva, mas cabe a cada autoridade municipal“.
Segundo o boletim do Observatório Covid-19 da Fiocruz, divulgado ontem, nove unidades da federação estão com mais de 90% de suas UTIs ocupadas: Piauí (91%), Ceará (92%), Rio Grande do Norte (97%), Pernambuco (98%), Sergipe (99%), Paraná (96%), Santa Catarina (95%), Mato Grosso do Sul (99%) e Distrito Federal (96%). Outros nove têm entre 80% e 89% das vagas cheias. E só dois estão fora da zona de alerta: Acre e Amazonas, ambos com menos de 60%.
Embora o número de mortes continue caindo (ontem a média móvel chegou a 1.823, a menor desde o dia 12 de março), deve ser uma questão de tempo até que isso mude. “Mantidas as tendências desses indicadores [número de casos e internações], pode-se prever uma nova elevação do número médio de óbitos para um patamar em torno de 2,2 mil por dia”, dizem os autores.
O Ministério da Saúde reduziu novamente a previsão de doses de vacinas a serem recebidas. Em junho, serão 41,9 milhões, em vez das 54 milhões estimadas antes. A diferença vai ser no imunizante de Oxford/AstraZeneca. Por conta de um atraso no recebimento de insumos da China, a Fiocruz vai reduzir sua produção em 12 milhões de doses.
Agora, a previsão é que tenhamos 20,9 milhões fornecidas pela Fiocruz; 12 milhões da vacina da Pfizer; e cinco milhões da CoronaVac.
A boa notícia é que, finalmente, o acordo de transferência tecnológica entre a AstraZeneca e a Fiocruz vai ser assinado, segundo Marcelo Queiroga. O evento está previsto para o dia 1º de junho.
Em audiência pública na Câmara dos Deputados ontem, Marcelo Queiroga conseguiu desagradar empresários e sanitaristas. Segundo o ministro,a concentração no mercado de planos e seguros de saúde é um problema que vem se agravando e deve ser endereçado por um órgão antitruste. Ele chamou atenção para o fato de que, há 20 anos, o setor contava com cerca de 2 mil operadoras de planos de saúde e, hoje, são menos de 800.
Queiroga também destacou que a baixa oferta de planos individuais, com a predominância dos coletivos que não têm preço regulado pela ANS, é um bom exemplo da desregulamentação do setor.
Embora as críticas sejam muito razoáveis, o modo como Queiroga escolheu abordar o problema continua sendo questionável. Ele insistiu que boa parte da estratégia do governo passará pelo Consu, o Conselho de Saúde Suplementar, que reúne Casa Civil e Ministério da Economia.
Para o ministro, a retomada da agenda de reuniões do conselho é “meritória” pois “primeira vez” o papel da saúde suplementar está sendo analisado de “maneira clara”. Pois é… Segundo ele, essa é a razão por trás da consulta pública que tem como um dos objetivos unificar planos de saúde e SUS que tinha como prazo o nada democrático período de… dez dias. Prorrogada, a consulta aberta no dia 30 de abril se encerra na próxima quarta-feira.
Questionado, ele afirmou que a decisão de retomar as reuniões do Consu não tem a ver com qualquer intenção de privatizar o SUS. “Não estou querendo privatizar o SUS. Queremos ‘privatizar’ o privado”, disse em referência à falta de ressarcimento das empresas ao SUS quando o sistema atende quem tem plano – prejuízo que está na casa dos R$ 243 bilhões, segundo ele.
Durante a audiência, Queiroga voltou a culpar o SUS pelo caos sanitário instalado no país na pandemia. O ministro parece se esquecer que vários outros sistema de saúde entraram em colapso – e que, no caso brasileiro, a enxurrada de doentes nos hospitais nunca deixou de ser estimulada por um governo que lida com uma doença transmissível estimulando a livre circulação de pessoas e vírus.
“Eu acredito que o ministro não acompanhou, nem vinha acompanhando o que ocorreu desde o início da pandemia. O que a gente assistiu foi a presença do SUS, que fez com que essas mais de 450 mil mortes não fossem 1 milhão, por exemplo“. A frase é da epidemiologista Ana Brito, da Fiocruz, uma das especialistas ouvidas pelo UOL que discordam dessa interpretação conveniente de Queiroga, que também foi usada por Pazuello em seu depoimento à CPI.
No primeiro lance de racha explícito entre senadores oposicionistas e “independentes” que compõem o chamado G7, a CPI autorizou a convocação de nove governadores. São eles: Ibaneis Rocha (DF), Mauro Carlesse (TO), Carlos Moisés (SC), Antonio Denarium (RR), Waldez Góes (AP), Marcos Rocha (RO), Wellington Dias (PI), Helder Barbalho (PA) e Wilson Lima (AM). O ex-governador do Rio, Wilson Witzel, também está na lista.
Fazer uma geleia geral de erros, dispersando as atenções para estados e municípios, é a principal estratégia do governo federal para lidar com a CPI antes mesmo da instalação da comissão. Até agora, no entanto, essa manobra tinha sido frustrada pelo G7. Mas o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), decidiu atender ao pleito dos governistas. De acordo com fontes ouvidas pelo jornal O Globo, ele surpreendeu aliados ao anunciar na segunda-feira que havia decidido convocar nove governadores. Na ocasião, indicou estar sendo pressionado. Já de acordo com o Valor, tanto Aziz quanto outro membro do G7, Eduardo Braga (MDB-AM), ganham com a convocação do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), pois são possíveis candidatos ao cargo em 2022.
Os governistas também conseguiram evitar a convocação governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, aliado do presidente Jair Bolsonaro. O pedido para que ele fosse retirado da lista partiu de Jorginho Mello (PL-SC), que argumentou que Castro vai se filiar ao seu partido em breve e pediu que os parlamentares aguardassem isso ocorrer para eventualmente chamar o governador a depor. A linha de corte para as convocações foi se houve ou não operação policial para investigar possíveis casos de corrupção com verbas destinadas ao combate à pandemia.
Além de representar um claro desvio de foco dos erros do governo federal, a convocação dos governadores para depor na CPI pode ser inconstitucional. “Motivo: o artigo 50 da Constituição permite somente a convocação de autoridades diretamente subordinadas ao presidente da República, como ministros”, explica a reportagem do Estadão.
Com base nesse entendimento, governadores e procuradores-gerais dos estados estudam entrar com uma ação coletiva junto ao STF para não prestarem depoimento à CPI. “Estamos estudando essa possibilidade. Os governadores não têm problemas de irem por convite à CPI. A preocupação é com o precedente de convocação sem amparo legal”, disse Wellington Dias à colunista Bela Megale.
A CPI também aprovou ontem a convocação de auxiliares de Jair Bolsonaro suspeitos de aconselhar o presidente na direção contrária às recomendações técnicas para lidar com a pandemia. A comissão deve chamar para prestar depoimento o ex-assessor especial da Presidência, Arthur Weintraub, irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, o assessor para assuntos internacionais Filipe Martins e o empresário Carlos Wizard (que nunca chegou a ser oficialmente nomeado no Ministério da Saúde).
Analisando as reuniões sobre a crise sanitária que contaram com a presença de Bolsonaro, dá para perceber que outros nomes são bem proeminentes. De 84 reuniões sobre o assunto desde fevereiro de 2020, o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) participou de dez. Já o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) participou de duas videoconferências em março de 2020 em que o assunto era a gestão da pandemia e os demais participantes eram ministros.
O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o atual chefe da pasta, Marcelo Queiroga, também foram convocados novamente a prestarem depoimento à CPI. A intenção dos senadores é explorar contradições nos depoimentos. Para isso, foram aprovados mais dez pedidos de informação dirigidos ao Ministério da Saúde sobre temas como cloroquina e o aplicativo TrateCov. Também foi aprovado o acesso externo ao Sistema Eletrônico de Informações da pasta, o que dará acesso aos documentos produzidos pelo ministério.
Fatos políticos também devem ser explorados. No caso de Pazuello, sua participação em manifestação política no Rio de Janeiro no domingo. No caso de Queiroga, a demissão de Luana Araújo do cargo de secretária de Enfrentamento à Covid poucos dias após ser nomeada. Ela, que se opõe publicamente ao uso da cloroquina no tratamento da doença, também teve convocação para depor na CPI aprovada ontem.
A CPI ouve hoje, a partir das 9h, o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas. Segundo o El País, ele apresentará documentos que demonstram que o governo federal demorou ao menos três meses para dar sinal verde à compra da CoronaVac.
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O inacreditável passeio da cepa indiana pelo Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU