No ritmo atual, será impossível imunizar o mundo a tempo de evitar variantes que poriam tudo a perder. Por que são ilusórios os argumentos que sustentam a “propriedade intelectual” — e quebrá-la é urgente para produção global de vacinas.
O artigo é de Vicenç Navarro, sociólogo espanhol, professor emérito de Ciências Políticas e Políticas Públicas na Universidade Pompeu Fabra (Espanha), e professor de Saúde e Políticas Públicas na Escola de Saúde Pública da Johns Hopkins University (EUA), publicado por Outras Palavras, 11-05-2021. A tradução é de Gabriela Leite.
Longe de melhorar, a pandemia está se agravando a nível mundial. Já morreram 3,3 milhões de pessoas devido ao coronavírus, com mais de 160 milhões de infectados, devastando as economias. E continua a piorar. O número de novos casos diários de coronavírus no mundo dobrou, desde o início de março, alcançando, no último mês, o pico mais alto registrado até agora (o anterior se deu no início de janeiro). E o que é ainda mais preocupante é que a crise aparece em lugares onde se acreditava que haviam superado a pandemia, como nos casos da Índia e do Uruguai.
A Índia atualmente acumula 40% de todos os novos casos a nível mundial, com uma mortalidade de mais de 3 mil pessoas por dia. O Uruguai, que havia se mostrado um país exemplar, teve recentemente a taxa de contágio mais alta do mundo. E na Europa, uma quarta onda está paralisando o continente, o que atrasa ainda mais a tão necessária recuperação econômica.
Para responder essa pergunta, é preciso entender o que está acontecendo com a pandemia. O primeiro elemento da resposta é saber que o que está ocorrendo era previsível, pois importantes instituições científicas já haviam anunciado há tempos. Não se sabia quando e nem onde, mas se sabia como. E assim se deu. O problema não é que não se saiba o perigo de se ignorar o previsto, mas sim que as autoridades estavam cientes e não informaram a população. Apenas mais tarde, quando a pandemia apareceu e explodiu (e não há outra maneira de defini-la), as vozes previsíveis dos patronos habituais, figuras super-ricas e superinfluentes na mídia (como Bill Gates) emergiram, alertando globalmente aos establishments que a sobrevivência da ordem econômica vigente estava em perigo, promovendo soluções que jamais alterariam essa ordem, que teve e deve ser salvaguardada acima de tudo.
Tais mecenas, vozes do “sentido comum” e do “razoável”, promovem soluções que respeitam sempre as coordenadas da ordem estabelecida, que está sendo questionada por um crescente cansaço popular. O último exemplo deles é a mobilização de Bill Gates, alertando aos establishments políticos internacionais sobre a necessidade e urgência de responder aos problemas criados pela pandemia, aparecendo nos principais fóruns midiáticos, onde a sabedoria convencional se reproduz pedindo que se mobilizem recursos para interromper a pandemia. Enquanto isso, se opõe à suspensão das patentes das empresas produtoras de vacinas contra a covid-19 (o que permitiria que fossem produzidas em todas as partes do mundo, facilitando o controle da pandemia). Esta última medida, que é de enorme importância e relevância (ao permitir a vacinação em massa e elevada imunização da população mundial) vai de encontro à oposição da poderosa indústria farmacêutica produtora das vacinas contra covid-19, e de quem Bill Gates, o grande mecenas, é próximo. Um dos centros de investigação financiado pelo Sr. Gates, o Institute for Health Metrics and Evaluation, mantém importantes relações empresariais com farmacêuticas tais como a Pfizer, Merck, Novo Nordisk, Gilead, Glaxo Smitkline, Novartis e outras, o que explica sua oposição à quebra de patentes, forçando que a pandemia não se resolva (ver Are Bill Gates’s Billions Distorting Public Health Data?)
O grande erro daqueles que se opõem a suspender provisoriamente as ditas patentes é que não levam em conta que a pandemia não se resolverá em uma parte do mundo se não é resolvida no resto. E isso é o que oculta o sr. Gates. A solução para conter a pandemia requer não somente a vacinação dos cidadãos dos EUA, Reino Unido e União Europeia, mas também da vacinação massiva do resto do mundo. A “ajuda” aos países pobres (que é o que aconselha Gates, enviando-lhes quantidades de vacinas que são claramente insuficientes) alegando razões humanitárias (estimulando a suposta responsabilidade social do mundo empresarial) é dramaticamente insuficiente, pois a vida da população dos países ricos depende da vida de todos os demais.
Me explico. Suponhamos que toda a população dos países ricos já esteja praticamente vacinada. Pois bem, isso não é suficiente para evitar que se produzam contágios e mortes, pois o vírus muda constantemente, sofrendo mutações e criando variantes mais perigosas, algumas das quais podem ser resistentes às vacinas conhecidas. E é aí que está o problema: a não ser que em todos os países estejamos vacinados e imunizados, ninguém conseguirá a plena imunidade. Já estamos vendo isso na Índia. A novidade preocupante na Índia é que a nova variante do vírus parece estar atacando também pessoas que já haviam sido vacinadas anteriormente. Se é certo que isso está ocorrendo massivamente, nos encontramos diante do temido e previsto problema. E é aí que nasce o problema.
Os estudos mais confiáveis afirmam que sem mudanças substanciais (como a vacinação massiva de toda a população mundial) no sistema atual de produção e distribuição das vacinas, não se alcançaria a porcentagem necessária para alcançar níveis de imunização em todos os países em desenvolvimento em menos de três anos. E é quase impossível que as mutações do vírus que estão constantemente tomando lugar não produzam vírus resistentes às atuais vacinas durante esse período. Isso significaria que teríamos que começar tudo de novo, cronificando um problema gravíssimo. A famosa imunidade de rebanho não funciona quando há uma disparidade tão grande na imunidade da população mundial.
Daí a enorme urgência de vacinar todo o mundo o quanto antes, o que poderia ser feito em questão de meses, e não de anos. Isso explicaria a pressão de mais de cem países (encabeçados pela Índia e África do Sul), junto com a OMS e milhares de personalidades e governantes de sensibilidades políticas diferentes, que estão promovendo a suspensão provisória (durante o tempo que dure a pandemia) das patentes das vacinas de conhecida eficácia para que possam ser produzidas em muitos países, tanto os desenvolvidos como os em desenvolvimento, o que poderia resolver essa situação em menos de um ano.
Sabemos que existe a capacidade intelectual e os meios para fabricar essas vacinas (como já o fazem agora, produzindo genéricos mais baratos dos produtos farmacêuticos existentes, muitos deles desenvolvidos nos países ricos). E é aí onde o filantropo e mecenas Bill Gates, quando indica que os países pobres não são competentes para fazê-lo, está equivocado. Na realidade, a Índia, que hoje está sofrendo uma crise enorme pela covid-19, tem a maior indústria farmacêutica do mundo. Os que se opõem a suspender as patentes sugerem que, em lugar de facilitar a expansão da produção de vacinas em várias partes do mundo, os países ricos doem vacinas aos pobres, o que estão fazendo a uma velocidade e intensidade claramente insuficientes que não resolve o problema.
A resposta é, simplesmente, que não querem (mesmo provisoriamente) iniciar um precedente: a propriedade intelectual deve ser respeitada acima de tudo, mesmo quando seja às custas de todo o resto, que é a vida de todos, incluindo a da população que já está supostamente imunizada. Essa postura é resultado do enorme domínio das direitas conservadoras e liberais nas instituições de governo internacional (como as da UE) que sustentam que o sistema atual já funciona bem.
Assim indicava ninguem menos que o sr. Thierry Breton, comissário europeu do mercado interno da União Europeia e grande admirador do atual sistema de produção e distribuição de vacinas. Ele destacou que o sistema atual (supostamente liderado pelas empresas produtoras das vacinas) é que nos permitiu ter vacinas em poucos meses, quando elas costumam demorar anos. Tal personagem crê, portanto, que as empresas atuais podem resolver o problema de falta de vacinas a nível internacional, sublinhando que o fato de que todos os países poderem ter acesso às patentes de cada vacina não resolveria o problema da escassez.
Mas tal argumento esquece, ignora ou oculta vários fatos. Um é que o descobrimento dessas vacinas se deu graças a um enorme investimento público, tanto da pesquisa básica — que permitiu o desenvolvimento da aplicação prática do conhecimento — como na contratação trilionária por parte dos Estados. Sem esses fundos públicos, o desenvolvimento de vacinas não teria sido possível. Por certo, é importante apontar também que, como o economista Dean Baker mostrou, a Microsoft, a empresa fundada por Gates, não teria surgido sem a enorme quantidade de recursos públicos que foram investidos em sua criação.
Na verdade, as prioridades da indústria farmacêutica regida pelas conhecidas “leis de mercado” vão frequentemente na contramão das necessidades coletivas. E tem mais: a competitividade entre as fábricas produtoras de vacinas determina uma confidencialidade, privacidade e segredo no trabalho de pesquisa que dificultam inclusive o desenvolvimento científico — que requer a transmissão de conhecimento entre as distintas instituições investigadoras e empresas produtoras de vacinas, o que se traduz em um atraso enorme no desenvolvimento normal do conhecimento.
Tudo isso explica que, em situações excepcionais (como em estados de guerra), os Estados tenham interferido exigindo uma mudança na dinâmica de trabalho, obrigando a colocar o bem comum à frente dos interesses particulares das empresas privadas. Por exemplo, durante a II Guerra Mundial, o governo federal dos EUA forçou todas as empresas farmacêuticas a dar prioridade à produção de certos produtos como antibióticos e a compartilhar todo o conhecimento a que dispunham.
Outros exemplos são a erradicação da poliomielite (conhecida como pólio), que foi possível graças à decisão de seu descobridor, o doutor Jonas Salk, de não patenteá-la, abrindo mão de qualquer intenção de privatizar o conhecimento derivado de sua investigação. “Privatizar a pesquisa científica” — dizia ele — “é tão absurdo como tentar privatizar a luz do sol”. E algo parecido ocorreu com o controle da varíola. Foi o presidente dos EUA, Ronald Reagan — o primeiro a promover o neoliberalismo, ao lado de Margaret Thatcher no Reino Unido — quem iniciou esse processo de expansão do direito de propriedade a Bens Comuns, com os enormes custos que essa decisão poderia implicar.
Esse argumento contra a suspensão de patentes bate de frente com a atual realidade: a maioria de fármacos no mundo (que são genéricos) são produzidos em países em desenvolvimento. Isso quer dizer que eles produzem os mesmos produtos farmacêuticos comercializados, uma vez que sua patente expirou. São praticamente as mesmas substâncias, mas vendidas a preços muito mais baratos que o original. Isso já é feito — e não há razão para que não possam produzir as vacinas contra covid-19, levando um período curto de seis a dez meses para começar a produção.
Na realidade, como já indiquei, a Índia, um dos países mais atingidos pela pandemia, é o país que tem as maiores produtoras farmacêuticas do mundo. E algo parecido acontece em países chamados incorretamente de “pobres”. A grande maioria deles têm os recursos necessários para sair da pobreza. O fato de que a maioria da população seja pobre se deve ao fato de que, em geral, a maioria não controla seus recursos. Não há dúvida de que permitir a máxima produção das vacinas em várias partes do mundo não só é possível, mas necessário e urgente. Como bem disse o diretor geral da OMS, o doutor Tedros Adhanom, a única solução à pandemia é que os países ricos permitam que sejam produzidas as vacinas anticovid que mostraram sua eficácia aos países em desenvolvimento. Segundo ele, “a solidariedade é a única forma de sair desse abismo”.
Essa solidariedade é urgente também para a solução da pandemia nos países ricos (como a Espanha), pois além deles também terem se beneficiado da produção massiva de vacinas derivada da suspensão de patentes, isso facilitaria a vacinação generalizada, prevenindo a aparição de variantes que sejam resistentes às vacinas atuais (o que é mais que provável que ocorra, se continuarmos sem uma vacinação massiva a nível mundial). […]
Ainda não há plena consciência na Espanha de que o que está acontecendo nos EUA, onde houve manifestações sem precedentes frente ao trumpismo (que era a expressão extremista do neoliberalismo iniciado pelo presidente Reagan, o autor do famoso slogan “o governo não é a solução, é o problema”), que mudou profundamente a orientação das políticas federais norte-americanas. O trumpismo foi a expressão máxima da revolução neoliberal, adotada também, por meio da terceira via, pela social-democracia europeia, que passou de social-democrata a social-liberal. Essa revolução supunha o triunfo do mundo empresarial e, sobretudo, do especulativo e financeiro sobre o capital produtivo e o mundo do trabalho. A primeira medida tomada pelo presidente Reagan foi derrotar o mundo sindical na greve de controladores aéreos. O grau de extremismo a favor do mundo empresarial que encarnou Donald Trump aparece com toda clareza em seu negacionismo, antepondo os interesses das empresas a todos os demais. […]
Mas o que não está sendo bem explicado na Espanha é como a intensidade dos protestos nos EUA, contra o trumpismo, se traduziu na considerável força que tiveram as esquerdas durante as primárias do Partido Democrata. Tal influência derivou em um pacto entre Joe Biden e Bernie Sanders, o candidato socialista, o que explica o giro de 180 graus nas políticas federais. Como apontou o jornal The New York Times, elas supõem a reativação do New Deal, com uma dimensão muito importante: redefinir o significado de política industrial, pondo à frente os produtos sociais ao invés da produção de bens de consumo de caráter mercantil.
Não é justo e nem eficiente para um país produzir tanto automóvel, quando há tão poucos ventiladores nos hospitais, como tampouco o é desenhar e confeccionar tantos vestidos de alta costura quando o que faltam são aventais de proteção e máscaras, ou não considerar a atenção às crianças e às pessoas dependentes — incluindo os idosos — como elemento fundamental para garantir a qualidade de vida e bem-estar da população, objetivo que deveria ser prioritário para qualquer governo que se defina como democrático.
O enorme fracasso do neoliberalismo e sua máxima expressão, o trumpismo, explica que como resultado de uma mobilização popular deve-se considerar que “o governo não é um problema, mas parte da solução”, como afirmou o presidente Biden em seu discurso ao Congresso, prometendo, na campanha eleitoral contra Trump, apoiar a quebra das patentes — tal como havia promovido Bernie Sanders –, o que acaba de cumprir.
Não é certo, portanto, que esse fato seja surpresa, como a mídia indicou na Espanha — o que reflete um conhecimento muito limitado da realidade estadunidense. Está acontecendo uma mudança muito notável, e é interessante constatar que o New York Times também apoie a proposta, assim como a máxima dirigente do Partido Democrata, Nanci Pelosi. É um exemplo a mais da importância de recuperar o New Deal nos EUA, pois nunca houve uma proposta tão grande de investimento público — incluindo investimento social — como agora.
O que é importante destacar é que, segundo a pesquisa da cadeia norte-americana NBC, a grande maioria da população estadunidense está a favor dessas medidas, incluindo a maioria de eleitores republicanos, o que coloca o Partido Republicano, controlado pelos trumpistas, em uma situação difícil. A maioria da população está a favor da solidariedade nacional e internacional. […]