A consagração, o carisma, a fraternidade intercomunitária estiveram entre os temas abordados na primeira parte da entrevista com José Rodríguez Carballo, ofm, arcebispo secretário da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica.
Nesta segunda parte, ele aborda a vivência dos votos religiosos em tempos de pandemia.
A entrevista é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 02-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dom Carballo, como é possível compor a Covid e o voto de pobreza? Existem muitas estruturas que a pandemia torna economicamente insustentáveis (escolas, mosteiros, paróquias). Como retomar o significado do voto de pobreza? Qual é o apelo do Espírito ao serviço dos pobres?
Efetivamente, a Covid colocou à dura prova também as finanças e a manutenção de muitas comunidades religiosas e das suas obras apostólicas, incluindo muitas comunidades de vida contemplativa. Em muitos casos, foi necessário recorrer aos fundos que o instituto ou a província haviam acumulado ao longo dos anos com esforço e sacrifício. Em outros casos, foi necessário fechar obras que durante anos haviam sido geridas pelos consagrados. Muitas estruturas foram vendidas a preços nem sempre justos. Nesse sentido, a pandemia, para muitos religiosos e consagrados, é uma experiência de expropriação, de pobreza e de minoridade, experiência muitas vezes dolorosa.
Mas, além dessa experiência de pobreza material, neste tempo de pandemia também experimentamos a pobreza em formas nunca antes imaginadas: o distanciamento social, o uso de máscaras que apagam o nosso sorriso e boa parte da nossa comunicação verbal, o isolamento, o medo de ser contagiado e de contagiar...
Todas essas são faces da pobreza que tivemos que viver neste tempo de pandemia e que provavelmente nunca imaginaríamos no momento em que fizemos o voto de pobreza.
A partir do nosso “não ter”, do nosso “não poder”, descobrimos novos modos de viver a pobreza em favor dos mais pobres: sentimos a necessidade de nos aproximar, de nos fazer próximos dos pobres e dos necessitados, de dar o nosso tempo para quem vive sozinho e marginalizado.
Também entendemos que as estruturas devem estar a serviço da missão e em favor dos outros, e que a nossa presença e as nossas obras devem portar o sinal do serviço, da gratuidade e da humildade. E muitos religiosos e consagrados não hesitaram em colocar parte das suas estruturas a serviço dos mais pobres.
Por outro lado, esta situação de pobreza provocada pela Covid-19 está nos ensinando que não podemos virar as costas para a pobreza real sofrida por muitos dos nossos irmãos e irmãs que se veem privados do necessário. Não podemos fechar os olhos para essas pobrezas, como fizeram o levita e o sacerdote na parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10,31.32). Não podemos viver indiferentes a esses nossos irmãos e irmãs que estão passando necessidade.
E aprendemos, se Deus quiser, que o grito dos pobres provocado pela pandemia deve se refletir nos nossos orçamentos e na nossa economia. Aprendemos que não podemos mais viver o voto de pobreza se o grito dos pobres e dos necessitados não “tocar” os nossos bolsos. E também aprendemos que não podemos mais aderir à lógica do consumismo, mas sim à lógica da solidariedade e da justiça. E, então, teremos aprendido que o voto de pobreza não é apenas não ter, mas é também “viver sem nada que seja próprio”, porque nada do que temos é nosso, nada nos pertence, mas é de todos.
A situação de pobreza que emerge com força a partir da pandemia e que atinge muitos dos nossos contemporâneos deveria levar a nós, que fizemos voto de pobreza por profissão, a discernir e a perguntar: de que modo devo levar o meu grão de areia para a construção de um mundo mais justo, mais humano, mais fraterno? Com quem geralmente nos relacionamos? Quem convidamos para a nossa mesa? Quais ambientes gostamos e desejamos? Como planejamos e consideramos o tempo livre, o repouso, as férias? Quem são os destinatários privilegiados da missão que realizamos? Que lugar concreto têm os pobres na minha vida cotidiana, nos orçamentos das nossas comunidades?
Neste contexto de pandemia e diante da pobreza forçada vivida por tantos homens e mulheres do nosso tempo, há uma pergunta que o Senhor faz a todos nós: “O que fizestes com o teu irmão? Onde ele está?” (cf. Gn 4,9-10). Não podemos responder aquilo que Caim respondeu: “Não sei. Por acaso eu sou o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9). Não ver é uma opção, assim como foi para o levita e para o sacerdote. Uma escolha triste. Ver e não agir é uma responsabilidade maior, da qual teremos que prestar contas (cf. Mt 25,3-46).
A tantas perguntas que interpelam o modo concreto de viver o nosso voto de pobreza, já não basta dar respostas implícitas ou genéricas. Não esqueçamos que, se o voto de pobreza precisa de muitas explicações ou justificativas sobre onde e como vivemos, está acontecendo algo surpreendente, que contradiz aquilo que professamos e mostra que não o vivemos com a radicalidade que exige.
Por outro lado, hoje não podemos mais pensar apenas nos pobres, mas devemos pensar com os pobres, a partir dos pobres e como pobres. O voto de pobreza nos pede para deixarmos as nossas comodidades, as nossas “estufas” comunitárias e individuais bem protegidas, também economicamente, para nos expormos à incerteza, à precariedade, à necessidade real, como os pobres.
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O voto de pobreza é um caminho de êxodo: pede-nos que passemos de um “eu” ou de um “nós” fechado para um “nós” aberto a todos, particularmente aos mais necessitados, sabendo que a chave de uma economia evangélica, como deveria ser a economia das pessoas religiosas e consagradas, é a partilha (cf. Jo 6,1-13), que a sua característica distintiva é a alternatividade (cf. Mc 9,42-48), o seu dinamismo é a lucidez crítica diante das situações de injustiça e pobreza (cf. Lc 16,19-31), o seu objetivo é ansiar por acabar com as desgraças dos pobres (Mt 5,3ss). E tudo isso misturado com a generosidade (cf. Mt 19,30-20,16ss).
Diante da triste realidade de uma pobreza forçada que tantos dos nossos contemporâneos sofrem, existem alguns desejos que não podem faltar na vida religiosa e consagrada: que a dor de quem sofre tal pobreza não nos seja indiferente; que as lágrimas dos pobres nos comovam; que não “sufoquemos” o desejo de viver de outro modo e que acreditemos que isso é possível; que sonhemos com outra direção, sem renunciar aos nossos sonhos de um mundo diferente marcado pela justiça (cf. Lc 12,49): com menos e de outra forma, todos podemos viver.
Ao mesmo tempo, a situação de pobreza forçada de tantos dos nossos irmãos e irmãs pede a nós, que livremente fizemos o voto de pobreza, que caminhemos rumo à alternativa, que lutemos corajosamente contra a pobreza, que defendamos o direito à felicidade dos mais fracos, que sejamos artesãos de relações baseadas na fraternidade e na amizade social (cf. Fratelli tutti, cap. l), que vivamos o silêncio de Deus não como uma ausência, mas como uma presença envolvida; e que acreditemos no Espírito, isto é, alimentemos a certeza de que, no fundo da história humana, o amor ativo de Deus está em ação e nos envolve na sua obra de profunda libertação histórica.
Para os religiosos e os consagrados, viver o voto de pobreza hoje significa permanecer livre de toda ânsia de posse e de acumulação, vivendo sine proprio. Isso significa viver a solidariedade e a comunhão de bens como a comunidade primitiva de Jerusalém a vivia (c f. At 2,44-45), como os apóstolos a viviam quando encontraram o paralítico na Porta Formosa do templo: “Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho te dou” (At 3,6).
Sim, o voto de pobreza nos leva a compartilhar com alegria o nosso grande tesouro, Jesus, do qual os nossos contemporâneos precisam; a doar o Evangelho naquelas periferias onde falta a sua luz; a dar o nosso tempo, a compartilhar o pouco que podemos ter, como a viúva de Sarepta (1Re 17,10-16) ou a viúva do Evangelho (Mc 12,41-44).
Enquanto o desejo de posse, a ganância em todas as suas formas, é causa de divisão e de confronto, a pobreza evangélica que nós, consagrados e consagradas, professamos deve nos ensinar a dizer em verdade “Pai nosso” e a ser aquilo que somos de verdade: filhos e filhas, e irmãos e irmãs, criando assim uma fraternidade em que o primado da pessoa do irmão ou da irmã é afirmado acima de qualquer outro bem ou posse; a não buscar poder ou dominação; a compartilhar o que somos e o que temos e a confiar na Providência; a viver a gratuidade como plataforma para um encontro fraterno menos defensivo.
A pobreza evangélica, livremente aceita, leva-nos a ser construtores de uma sociedade mais fraterna, como nos pede o Papa Francisco na Fratelli tutti.
A partir desses pressupostos/princípios, seremos capazes de nos fazer próximos, de descobrir o pobre, o irmão necessitado, aquele que devemos ir procurar, com quem devemos compartilhar, aquele que deve ter um lugar à nossa mesa. Desse ponto de vista, a pandemia pode ser uma “graça” na desgraça.
Covid e voto de castidade. A solidão e o distanciamento invadiram todas as famílias, além das nossas comunidades. Uma solidão compartilhada? Um distanciamento que pode ser rico em relações e afetos? Uma profecia crível do Reino?
Partamos de uma convicção: o ser humano certamente foi criado como “um ser diante do outro” ou ainda “um ser para o outro” (Emmanuel Lévinas). Somos seres feitos para entrar em relação, pessoas que se tornam tais em família, criadas à imagem do Deus família, do Deus Trindade. Somos um “ser social”, feito “para a relação”.
No entanto, a experiência nos mostra que só quem sabe viver a solidão pode viver plenamente as relações, a tal ponto que podemos dizer que a solidão é um elemento antropológico constitutivo do ser humano. Além disso, a relação, para ser tal e não cair na absorção ou na fusão, implica a solidão. Só quem não tem medo de entrar e se adentrar nas profundezas da própria interioridade sabe enfrentar o encontro com a alteridade de forma positiva.
É verdade que nem toda solidão é positiva. Existem formas de fuga dos outros que são patológicas, e existe uma solidão que é altamente negativa: o isolamento, que implica o fechamento aos outros, a rejeição do desejo dos outros, o medo da alteridade.
Em princípio, a pessoa religiosa e consagrada deveria ser alguém que tem a coragem de assumir a solidão para se olhar de frente, para aceitar ser ela mesma. A solidão é um espaço de unificação do próprio coração e de comunhão com os outros. Portanto, a solidão é essencial para as relações, permite a verdade das relações e é compreendida nas relações.
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Capacidade de solidão e capacidade de amar são proporcionais. Talvez a solidão, quando habitada, seja um dos grandes sinais do amor. A partir daí – e só a partir daí – podemos entender a solidão escolhida por quem faz voto de castidade ou uma promessa de celibato. Para essas pessoas, a solidão é um “lugar” de comunhão com o Senhor, consigo mesmas e com os outros.
Certamente, devido à pandemia, a solidão e o distanciamento social invadiram os ambientes familiares, inclusive os das nossas comunidades, mesmo que, nestas últimas, eles foram um pouco atenuados pela vida fraterna em comunidade, que, em muitos casos, foi fortalecida pela pandemia, e pelos espaços maiores que as pessoas consagradas geralmente têm em suas casas.
De todos os modos, as pessoas consagradas também sentiram uma certa “solidão negativa” pela impossibilidade de se encontrar, pessoalmente e não apenas virtualmente, com os irmãos e as irmãs de outras comunidades, com os grupos de oração, com os grupos de jovens ou de leigos agregados ao instituto e que frequentam as nossas casas, e também pela impossibilidade de se encontrar em conselhos ou capítulos...
Nesse contexto, o distanciamento social pesou sobre nós. Não estamos acostumados a ele, e isso dificulta suportar a solidão e o distanciamento impostos, que caem sobre nós sem pré-aviso, forçados pela pandemia. Nessa situação, a solidão pode encher a vida de tristeza, pode nos ferir profundamente. E, a partir desta pandemia, muitos, até mesmo consagrados, sairão feridos. É dessa solidão que devemos fugir.
Mas também é verdade que existe uma solidão e um distanciamento, como o que Jesus procurou para os seus (cf. Mc 6,31), que revelam, que nos ajudam a um encontro mais profundo com nós mesmos e com os outros. Assim como a palavra mais autêntica nasce do silêncio, assim também o encontro profundo nasce da solidão habitada pelo amor, “a solidão sonora” (São João da Cruz), a solidão acompanhada, a solidão que nós, pessoas consagradas, assumimos com o voto de castidade.
Quando o amor de Jesus começa a ocupar o nosso coração, nada mais, nem a solidão imposta nem o distanciamento social obrigatório, como ocorre nestes tempos de Covid, podem nos separar dos outros.
O voto de castidade, que implica assumir uma certa forma de solidão e de distanciamento, deve ser vivido, especialmente nestes tempos de pandemia, como uma oportunidade para estabelecer novos vínculos de encontro profundo com os irmãos e as irmãs da própria comunidade e com toda a humanidade, particularmente a ferida.
Façamos da solidão e do distanciamento impostos pontes de comunhão, pontes de encontro. Estabeleçamos relações saudáveis de fraternidade, amizade, solidariedade; vivamos a doação do amor e até o fim, sem reter nada. Da consolação recebida do “Tu és o meu Senhor”, sintamo-nos fortalecidos para consolar, como forma prioritária de missão.
O nosso mundo precisa de pessoas dispostas a não fechar os olhos diante das contínuas devastações, abusos e violências com que a dignidade das pessoas é ferida cotidianamente.
Estamos cientes do potencial de amor que a nossa vida casta e celibatária contém em si mesma? O carisma do celibato e o voto de castidade são uma questão de amor e devem nos levar a fazê-los frutificar no amor sem condições, também em meio à solidão imposta, como a que estamos vivendo.
Nestes tempos de pandemia, devemos repensar a via do amor casto e celibatário olhando para Jesus, de tal modo a sermos livres para amar e a nos tornar a família de todos pela dignidade comum que nos une. Isso não se torna realidade de uma vez por todas. Leva tempo. É carisma e ativa a nossa responsabilidade.
Com o voto de castidade, os consagrados e as consagradas se propõem a amar “com ele e como ele”, a amar como Jesus amou, sem medida. Sem esquecer que a solidão que Jesus experimentou na cruz é um mistério de solidão e de comunhão ao mesmo tempo. É mistério de amor.
É assim que devemos viver este momento em que experimentamos a solidão e o distanciamento: como mistério de amor. O voto de castidade que professamos nos leva a aceitar a distância e a respeitar a alteridade. Amar com um coração casto é uma tarefa difícil, mas é possível.
Covid e obediência. As comunidades obedeceram às normas de saúde, também nas celebrações em casa. O que significa essa obediência civil e qual é o seu limite? Na sua opinião, como mudou o exercício do governo do superior em razão da pandemia? O que dizer sobre as estruturas coletivas de governo (conselhos, capítulos, assembleias)?
Nós, pessoas consagradas, não podemos esquecer que fazemos parte da sociedade e, como tais, somos obrigados a obedecer às nossas autoridades e, nestes tempos de pandemia, de modo particular, às regras sanitárias. As pessoas religiosas e consagradas não estão isentas dessa obediência. Devemos nos considerar testemunhas de uma “cidadania ativa”. O respeito pelas regras da convivência civil é uma contribuição para o bem comum, um compromisso do qual as pessoas religiosas e consagradas não podem se subtrair. É um valor fundamental na própria doutrina social da Igreja.
Nós, pessoas religiosas e consagradas, temos uma responsabilidade, também no campo da assistência sanitária, em relação a nós mesmos e aos outros. É necessário conjugar harmoniosamente os direitos individuais com o bem comum, também no que diz respeito à liberdade de culto.
Nesse contexto, é preciso distinguir entre proibição e limitação dos direitos dos indivíduos e da comunidade. Existem limites que são necessários se quisermos garantir a saúde e a segurança das pessoas.
Outra coisa é quando se trata de proibir os direitos fundamentais ou quando se trata de leis que vão contra o Evangelho, “regra absoluta” para as pessoas consagradas (Papa Francisco). Aqui não se pode transigir. Nesses casos, se aplica o princípio de que “é preciso obedecer a Deus antes que aos homens” (At 5,29). A vida consagrada tem uma missão profética na Igreja. As pessoas consagradas, como profetas, são homens e mulheres da Palavra, e por isso não podem renunciar a obedecer a ela e a transmiti-la. Como profetas, as pessoas consagradas sabem muito bem o que significa “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21).
Em todo caso, eu não falaria de “limites” no que diz respeito à obediência civil, mas de “respostas responsáveis”. Nós, pessoas consagradas, participamos plenamente do destino do povo, das pessoas às quais somos devedores, somos irmãos entre irmãos, “caminhantes da mesma carne humana” e “filhos desta mesma terra que nos hospeda a todos” (Fratelli tutti, n. 8).
Quanto à segunda parte da pergunta, eu acho que o exercício do governo não mudou. A pandemia impôs restrições a esse exercício, que são bem visíveis a todos. Tenho sérias dúvidas de que seja possível continuar ao longo do tempo e que o “governo virtual” de um instituto seja verdadeiramente eficaz.
Não há dúvida de que a cultura telemática está globalizando a vida consagrada, mas tenho certeza de que um bom “governo” é tecido, sobretudo, de relações, de acordos, de debates e de muito diálogo, especialmente nas dificuldades.
Tenho a impressão – e não sou o único – de que estão crescendo nos nossos ambientes a mentalidade e a prática de que “presença virtual” é sinônimo de “presença fraterna” ou “presença física”. Se assim fosse, acho que o equívoco poderia esvaziar o significado do governo de um instituto. Sou da opinião de que uma “presença virtual” é simplesmente virtual e nada mais, e que nunca poderá substituir a presença pessoal.