26 Abril 2021
"No Evangelho de hoje, os mercenários são contrapostos ao bom pastor. Que não têm festas da libertação, porque vivem da escravidão dos outros. A tradição italiana, se tem verdadeira dignidade, sabe de que lado ficar, sabe em quais palavras, em quais imagens, em quais ações e em quais conceitos se apoiar. E sabe que sem a ação boa, sem viver bem que é cuidado e dedicação pelos outros e pelos últimos, toda festa de libertação e todo domingo do Bom Pastor se tornam hipocrisia e geram monstros", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 25-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O 4º Domingo de Páscoa é o Domingo do “Bom Pastor”. A imagem é poderosa, mas não é imediata. Ou melhor, precisamente por causa de seu imediatismo elementar, precisa de ajuda e orientação, porque facilmente diz outra coisa de si. A imagem é atribuída diretamente por Jesus a si mesmo, como costuma acontecer no Evangelho de João. Eu sou - diz Jesus - o bom pastor; mas também diz de si mesmo que é videira, pão, luz, caminho, verdade, vida, porta: são todas palavras que remetem a imagens poderosas. Não são conceitos. Porém nós, para ter acesso às imagens e às palavras, precisamos de conceitos, que são instrumentos da inteligência de toda realidade, inclusive daquela de Cristo e da Igreja.
Existem aqui duas ilusões, que atravessam toda a tradição, até a nós: que as imagens e as palavras seriam suficientes, sem mediações conceituais; ou que os conceitos bem testados seriam excelentes substitutos para tudo o mais. Nem a primeira nem a segunda são boas soluções. Tanto as palavras/imagens quanto os conceitos se deterioram se deixados por si sós. Eles perdem força, se dispersam por caminhos laterais, se esvaziam e se corrompem.
A grande autodefinição de "bom pastor" pode desenvolver-se, de fato, quer se sobrepondo às formas dignas do ministério eclesial, quer até se tornar o "nome" de um Instituto de lefebvrianos. A palavra e a imagem escapam ao alcance e geram outras coisas. Por outro lado, o que aconteceu com a imagem de “rei”, de “realeza”? O que aconteceu do "sacerdote"? Menos explorado é o destino da outra imagem atual atribuída a Jesus: "pedra rejeitada/pedra angular", também muito poderosa.
Existe, entretanto, um quarto nível de "tradição" que é a ação. Jesus não nos deixou apenas palavras, imagens e conceitos, mas nos deixou ações. Seu "fazer" nos entrega isso. E no nosso fazer o reencontramos, o reconhecemos: Jesus se fez batizar por João, caminhava como peregrino, orava, perguntava, respondia com sabedoria, ensinava, dormia em um barco, contava parábolas, curava, consolava, comia com os piores, lavava os pés, isolava-se, participava de bodas, escrevia com o dedo no chão. Entre todas essas ações, duas se tornaram prioritárias no encontro com o Ressuscitado. O Jesus depois da morte faz duas coisas: ele interpreta a Palavra e parte o pão. Os dois de Emaús o encontram assim. Em ambos os casos, Jesus realiza as duas ações: primeiro, aquece o coração com as escrituras e depois se deixa reconhecer no partir do pão. Uma segunda vez, primeiro "come com eles" e depois partilha o pão da palavra.
Essas ações devem ser adicionadas às palavras, às imagens e aos conceitos. Temos assim uma tradição que se orienta, na história, colocando sempre em jogo estes 4 níveis de experiência. As suas palavras, as imagens com que é ou foi interpretado, as ações que realizou e que confiou aos seus, os conceitos que sintetizaram palavras, imagens e ações.
As palavras devem ser interpretadas, as imagens explicadas, as ações iluminadas: para isso existem os conceitos. Mas os conceitos são mais pobres que as palavras, embora mais precisos, mais estilizados que as imagens, embora menos vagos e mais explícitos do que as ações, que sempre têm uma certa opacidade, mas são poderosas.
A força da tradição está em sempre juntar, em “conjugar” esses quatro registros: assim ela sabe especificar as palavras com as imagens, as imagens com as ações, as ações com os conceitos, os conceitos com as palavras; mas, também e vice-versa, sabe iluminar os conceitos com as ações, as ações com as imagens, as imagens com as palavras e as palavras com os conceitos.
Essa operação complexa é "interna" à tradição: toda tradição o faz. Mesmo uma tradição familiar coloca num círculo esses 4 elementos. É humano fazer assim. E também é divino.
As distorções ocorrem quando esses níveis são separados entre si. Quando se pretende, ou se presume, que a ordem conceitual comanda as outras três, ou a ordem normativa das ações, ou a ordem afetiva das imagens, ou a ordem expressiva das palavras.
O Bom Pastor "dá a vida pelas suas ovelhas". Não há nada de "adocicado" nesta frase, que é uma definição extraordinária do crucifixo ressuscitado "sub specie pastoris". Diante disso, como não vivemos separados, deveríamos dizer: o que essa lógica tem a nos dizer se a aplicarmos ao 25 de abril (1)? Quais são as palavras, quais as imagens, quais são os conceitos e quais são as ações dessa tradição a que não renunciamos? Como podemos celebrar a “libertação” - que é o fim da guerra e o fim da ditadura autoritária, que é “libertar-se” e “ser libertados” - se permitimos, na véspera, o grave fato de que 130 africanos em fuga morram sem serem ouvidos nem mesmo pela nossa Guarda Costeira? O que fazemos com a liberdade pela qual tantos homens e tantas mulheres deram suas vidas? Existem ações que qualificam uma memória. Nenhuma razão política, estratégica, nenhum pacto ou convenção pode justificar ter deixado morrer os náufragos e celebrar hoje a nossa "festa nacional" como uma "rotina".
Há uma cena no final do filme O Resgate do Soldado Ryan que é muito comovente. O protagonista Ryan retorna, já muito idoso, àquele norte da França onde 7 homens, 60 anos antes, "deram a vida" para que ele se salvasse. E em seus túmulos Ryan chora e se dirige aos seus familiares que o acompanharam e pergunta: "Digam-me que vivi bem!" Só vivendo bem se pode permanecer dignos do dom recebido. Dar a vida pelos outros é o "conceito", a "palavra", a "imagem" e a "ação" que está sendo lembrada.
Também o 25 de abril vive da mesma coerência de palavras, imagens, ações e conceitos. A retórica das palavras pode esquecê-lo, os conceitos podem se confundir, as imagens podem distrair, mas a ação, aquela ação, está plantada na carne. Se em vez de “dar a vida” prefere deixar morrer no mar 130 homens, mulheres e crianças, você se torna surdo e mudo perante à sua pergunta, então da festa de 25 de abril já não tem mais as palavras, nem as imagens, nem os conceitos e nem as ações. Você não pertence mais à tradição da liberdade dada e recebida, mas se ilude de que a liberdade - a sua liberdade - é devida e sem preço. Por isso já não compreende mais que sem a justa liberdade de todos e sem a vigilante atenção para com os que "procuram a liberdade", não há verdadeira liberdade nem festa da libertação possível.
No Evangelho de hoje, os mercenários são contrapostos ao bom pastor. Que não têm festas da libertação, porque vivem da escravidão dos outros. A tradição italiana, se tem verdadeira dignidade, sabe de que lado ficar, sabe em quais palavras, em quais imagens, em quais ações e em quais conceitos se apoiar. E sabe que sem a ação boa, sem viver bem que é cuidado e dedicação pelos outros e pelos últimos, toda festa de libertação e todo domingo do Bom Pastor se tornam hipocrisia e geram monstros.
1. O Dia da Libertação, também conhecido como Aniversário da Libertação da Itália, Aniversário da Resistência ou simplesmente 25 de abril é um feriado nacional na Itália que comemora o fim do regime fascista e da ocupação pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial e a vitória do a Resistência na Itália.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Bom pastor e 25 de abril. As palavras, as imagens, as ações e os conceitos das tradições. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU