05 Abril 2021
"Todo o poder extraordinário da pregação de Jesus pode ser intuído nesta tese: a vida é mais viva do que a morte, é o que dá morte à morte, é o que nos permite sair das trevas do sepulcro e recomeçar. Nem tudo morre completamente. É a linha extramoral que atravessa a palavra de Jesus. Enquanto o juízo moral define a vida justa como aquela que se adaptou à vontade da Lei, e a vida que cai em pecado como aquela que vive contra a Lei. Pois bem, Jesus subverteu esse critério com decisão: a vida justa é a vida viva, é a vida que deseja a vida e que sabe gerar frutos", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 03-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "este é o coração verdadeiramente leigo da pregação de Jesus: a vida que se perde na morte, a vida que cai no pecado, é a vida que tem medo da vida, é vida sem desejo, é vida que rejeita a vida. É uma questão de libertar a Lei do culto masoquista do sacrifício. A pregação de Jesus insiste neste ponto: o homem não foi feito para a Lei, mas é a Lei que foi feita para o homem".
"É a correção da Lei que ressoa no evento da ressurreição pascal: - afirma o psicanalista - se a Lei é dada por Moisés, a graça vem por Jesus, escreve Paulo de Tarso (Gálatas, 4, 4-5). De ato, se a Lei se dissocia da graça, a Lei só pode resultar numa maldição. A promessa de Jesus é a existência de uma Lei livre do peso da Lei. É a promessa que revela que aquela da morte não é a única Lei, pois existe uma outra Lei, aquela do desejo, que liberta a vida do medo da morte".
O mistério da Páscoa cristã coincide com o acontecimento da ressurreição de Cristo. Devemos sublinhar a palavra evento porque a ressurreição não quer ser uma figura parabólico-metafórica, como muitas das que caracterizaram a pregação de Jesus, mas uma experiência efetiva, um evento real. Qual? Aquele mais decisivo: a morte não é a última palavra sobre a vida, sempre existe a possibilidade para a vida que não se acabe totalmente com a morte.
Esta é a enunciação louca e absoluta do evento da ressurreição que parece contrastar todo bom senso. A morte não é o fim da vida, sua dissolução, a última nota que fecha irreversivelmente a melodia da existência? A ressurreição de cada cristão contrasta a opinião comum, desafia o caráter objetivo dessa evidência. Ao mesmo tempo, o evento da ressurreição não é um fato simples em si, como a chuva ou o vento. Não aconteceu simplesmente, como contam os Evangelhos, numa "madrugada" (Jo, 20,1,18), junto ao túmulo onde o corpo de Cristo fora depositado.
A ressurreição se torna um evento apenas pela fé daqueles que acreditaram nela depois e daqueles que ainda acreditam nela hoje. Não é algo remoto que fica para trás, não é um fato milagroso que foi realizado de uma vez por todas. Se a ressurreição é realmente um evento e não uma parábola entre as outras, é porque continua a acontecer graças à fé de quem permanece fiel àquele evento. A fidelidade ao evento-Jesus ressuscitado é o que faz a ressurreição existir agora e não no passado distante: a morte não é, não pode ser, a última palavra sobre a vida.
Todo o poder extraordinário da pregação de Jesus pode ser intuído nesta tese: a vida é mais viva do que a morte, é o que dá morte à morte, é o que nos permite sair das trevas do sepulcro e recomeçar. Nem tudo morre completamente. É a linha extramoral que atravessa a palavra de Jesus. Enquanto o juízo moral define a vida justa como aquela que se adaptou à vontade da Lei, e a vida que cai em pecado como aquela que vive contra a Lei. Pois bem, Jesus subverteu esse critério com decisão: a vida justa é a vida viva, é a vida que deseja a vida e que sabe gerar frutos.
Daí o repensamento radical da noção deuteronômica da Lei. Ela não está em antagonismo com a vida porque, em sua forma última, coincide com o desejo do sujeito, com sua vocação e com seus talentos. Nesse sentido, a vida viva é vida animada pela força do desejo, antagônica à Lei do sacrifício e capaz de fazer do desejo sua própria Lei.
Este é o coração verdadeiramente leigo da pregação de Jesus: a vida que se perde na morte, a vida que cai no pecado, é a vida que tem medo da vida, é vida sem desejo, é vida que rejeita a vida. É uma questão de libertar a Lei do culto masoquista do sacrifício. A pregação de Jesus insiste neste ponto: o homem não foi feito para a Lei, mas é a Lei que foi feita para o homem.
De modo que a Lei à qual o homem está obrigado a se subordinar é uma Lei que alivia o homem do peso da Lei porque esta Lei - a Lei da Boa Nova - coincide com o desejo do próprio homem, com sua força afirmativa. “Não tenham medo!” é o único aviso que Jesus dirige aos homens. Daí sua crítica a uma concepção puramente ritualística e de culto da religião. Não existe proibição justificada face ao dever do desejo. Enquanto passava um dia em um campo de trigo na companhia de seus discípulos, eles ajuntavam as espigas para comê-las. Os fariseus reagiram escandalizados: "Porque fazem o que é proibido no sábado!" (Mc, 2, 24).
O mesmo aconteceu diretamente com Jesus quando ele curou um homem com uma "mão seca" na sinagoga. Os fariseus ficaram perturbados e deixaram a sinagoga "tomaram logo conselho com os herodianos contra ele, procurando ver como o matariam" (Mc 3,1-6). Os sacerdotes que defendem uma versão exclusivamente ritual e de culto da Lei reprovam Jesus por agir fora da Lei. Mas a sua resposta é decisiva: "O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado" (Mc, 2,23-27).
Não se trata, portanto, apenas de afastar o homem de uma interpretação moralista da Lei como peso que tira o fôlego, mas de afirmar a existência de uma outra Lei, de uma nova Lei que autoriza a cultivar o próprio desejo – a própria vocação, os próprios talentos - em vez de reprimi-lo. Não é por acaso que para Agostinho este é o propósito último da vinda de Cristo: “Resgatar os que estavam debaixo da lei, para que não estivéssemos mais debaixo da lei, mas debaixo da graça”.
É a correção da Lei que ressoa no evento da ressurreição pascal: se a Lei é dada por Moisés, a graça vem por Jesus, escreve Paulo de Tarso (Gálatas, 4, 4-5). De ato, se a Lei se dissocia da graça, a Lei só pode resultar numa maldição. A promessa de Jesus é a existência de uma Lei livre do peso da Lei. É a promessa que revela que aquela da morte não é a única Lei, pois existe uma outra Lei, aquela do desejo, que liberta a vida do medo da morte.
É por isso que, ao contrário dos filósofos, Jesus não fala da morte, mas a atravessa. É preciso testemunhar a excedência da vida em relação à morte. Só o evento desse testemunho mostra que sempre resta algo da vida, que resta sempre a possibilidade de que nem tudo morra para sempre, de que nem tudo seja decidido pela morte: "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).
Não é por acaso que no juízo universal o critério que separa os salvos dos condenados é mais uma vez aquele da vida que sabe estar viva. A culpa mais decisiva dos condenados foi de não ter sabido amar. Por isso os salvos serão os mais frágeis, isto é, aqueles que souberam ter uma relação de amizade e não de rejeição com falta (Mt 25,31-46). É para eles que a ressurreição será um evento sempre possível.
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Páscoa, a vida além da Lei. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU