30 Março 2021
“A arte da descentralização de si deveria, principalmente, fazer parte da aquisição do estilo cristão. Porque o cristão, antes de se preocupar em evangelizar - como hoje é insistentemente convidado a fazê-lo -, anunciando o Evangelho com palavras, deveria aprender a dar espaço para Cristo, para que o Senhor esteja presente como Senhor ao lado dele quando o cristão estiver na companhia dos homens. A aquisição do estilo cristão exige a superação da necessidade de estar no centro e, consequentemente, exige assumir uma atitude de discrição que sempre reconheça a centralidade do Senhor”, escreve Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no seu blog pessoal, 29-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Conhecemos duas expressões equivalentes, “no meio” e “no centro”, que indicam muito mais do que uma “localização”. Estar no meio, estar no centro significa ter um lugar de respeito, para o qual se dirige o olhar de todos, em torno do qual tudo se organiza de maneira a convergir para ele. No centro óptico de uma igreja está o altar, no centro de uma assembleia está a mesa da presidência ... Está no centro, está na posição mediana, no meio, aquele para o qual se dirigem os olhares, os ouvidos e principalmente a atenção; está no meio, de modo a ser visível a todos e reconhecido por todos.
Num sentido claramente metafórico, está no centro, no meio, aquele que é o primeiro de todos, que ocupa uma posição a ser amada e venerada, colocada como exemplar. Cada um de nós sente dentro de si o desejo de estar no centro, de ser o centro das atenções e dos olhares dos outros, de estar na "melhor" posição. Na verdade, o primeiro mandamento: "Amarás o Senhor teu Deus" (Dt 6,5; Mc 12,30) significa antes de tudo: "Não ame a si mesmo mais do que todos e tudo".
Máximo, o Confessor, denuncia essa philautía, esse amor egoísta de si, como a raiz de todos os males (cf. Capítulos sobre a caridade III, 56-57). Portanto, o mandamento bíblico exige a descentralização do amor de si mesmos, para amar a Deus, portanto, para amar o próximo como a si mesmo (cf. Lv 19,18; Mc 12,31).
Bento na Regra XVI pede ao monge, com outras palavras, que "nada prefira ao amor de Cristo" (RB 4,21), que "nada prefira a Cristo" (cf. RB 72,11), para que o monge não viva para si mesmo e não faça de si mesmo o destinatário de seu amor.
Recebemos do Novo Testamento uma imagem extraordinária de descentralização na figura de João Batista. Ele é o precursor, aquele que precede o Messias, portanto, o primeiro a ser visto, ouvido como o anunciador da visita de Deus; mas tudo predispõe para que Cristo seja o objeto de espera, para que ele se dirijam o olhar e o coração de quem escuta o seu convite à conversão. O centro do seu anúncio é "aquele que vem depois de mim" (opíso mou: Mc 1,7; Mt 3,11; Jo 1,15.30), que é apenas um discípulo em relação a ele. No entanto, proclama que este Messias ainda anônimo é "mais forte" (Mc 1,7), proclama a sua indignidade de o mergulhar no Jordão (cf. Mt 3,14).
Segundo o quarto Evangelho, indica aos seus discípulos que o sigam (cf. Jo 1,35-37), depois de ter afirmado três vezes: “Eu não sou”, “Não sou o Cristo, não sou Elias, não sou o profeta" (cf. Jo 1, 20-21). Por isso, deixa que os seus discípulos o abandonem para seguir Jesus e sintetiza todo seu sentimento nas últimas palavras ditas: “É necessário que ele, o Messias, cresça e eu diminua” (Jo 3,30). João é quem conseguiu descentralizar-se, para deixar sempre no centro Jesus, o Messias.
A Igreja também é descentralizada em relação ao Senhor, embora seja chamada a ser o seu corpo (cf. 1Cor 12,27; Ef 1,23, etc.), sua noiva (cf. 2Cor 11,2; Ap 21,9). Em especial, na igreja todo cristão - seja papa, bispo, presbítero, monge ou simples fiel - nunca deve estar no centro.
Infelizmente, em vez disso, há uma corrida para estar no centro, tanto na vida cotidiana, quanto na liturgia ou nas assembleias públicas. Sei bem que os ministros do Senhor às vezes, agindo em nome de Cristo, estão no centro da assembleia. Porém, na consciência de que a centralidade pertence a Cristo e que não substituem a sua presença, mas são um sinal dela, portanto um sinal, deveriam predispor e operar tudo para que tal centralidade do Senhor na igreja nunca seja ofuscada.
Seria melhor se, exceto pela ação eucarística, eles ocupassem também uma posição lateral na sagrada liturgia, como era na tradição. Que sentido têm as poltronas, muitas vezes faraônicas, encostadas no altar, que às vezes até escondem o tabernáculo? Qual é o sentido de estar sempre no centro e sempre dirigidos ao povo de Deus, mesmo quando se ora juntos e, portanto, se deveria assumir a mesma orientação, tanto a assembleia quanto quem a preside?
É preciso dizer com clareza: o que é visto e vivido iconicamente na liturgia tem repercussões decisivas na vida cotidiana. De modo que se estamos sempre no centro da liturgia - o papa ou o bispo com sua cadeira até obscurecer o altar, o abade em capítulo num trono -, também se está fazendo isso na vida cotidiana ... Talvez seja justamente por essa corrida ao centro de parte de seus discípulos ("discutiam entre si quem era o maior": Mc 9,34) que um dia Jesus "pegou uma criança, colocou-a no meio deles, no centro, e abraçando-a lhes disse: 'Quem acolhe uma destas crianças em meu nome, acolhe a mim' ”(Mc 9,36-37). Jesus colocou no centro um pequeno, um ser frágil, um que sempre está descentralizado em relação à sociedade, na qual nada contava, porque era um último.
A arte da descentralização de si é a arte cristã por excelência! Aprende-se com Cristo, sempre descentralizado em relação ao Reino que anuncia e a Deus Pai que o enviou ao mundo; sempre na forma de servo, de último, mesmo quando está no meio de seus irmãos: “Eu estou entre vós como quem serve” (Lc 22,27). Quando se ama, descentralizamo-nos para o bem do outro, para o bem comum, porque não nos sentimos no centro, mas entre os outros.
A arte da descentralização de si deveria, principalmente, fazer parte da aquisição do estilo cristão. Porque o cristão, antes de se preocupar em evangelizar - como hoje é insistentemente convidado a fazê-lo -, anunciando o Evangelho com palavras, deveria aprender a dar espaço para Cristo, para que o Senhor esteja presente como Senhor ao lado dele quando o cristão estiver na companhia dos homens.
A aquisição do estilo cristão exige a superação da necessidade de estar no centro e, consequentemente, exige assumir uma atitude de discrição que sempre reconheça a centralidade do Senhor. "É o Senhor" (Jo 21,7) e "está ao meio "(cf. Jo 20,19.26)! Ele não está ausente e não é substituído por procuração, mas está ao lado e é apontado, é sinalizado. Às vezes trata-se de uma questão de se colocar em disparte, outras vezes, de soltar a mão que se segura; trata-se de deixar o outro caminhar sem pretender caminhar sempre ao seu lado; trata-se de mostrar concretamente ao outro - e dizer-lhe, se necessário - que o centro está em Deus e que não se quer ser o centro de uma relação.
Especialmente o monge, mas também o presbítero solteiro, em sua solidão, em seu não estar casado, bem poderia exprimir que a sua condição de eunuchia (cf. Mt 19,12), de falta, refere-se ao Senhor, a Jesus Cristo. Não se tornando uma só carne com a mulher (cf. Gn 2,24; Mc 10,7-8; Mt 19,5-6; Ef 5,31), mas vivendo essa ferida, esse vazio aberto ao Senhor, diz que não quer ser o centro para os outros e que tem o seu centro em Cristo.
É a sua sensibilidade ferida de não ser casado que deve transmitir aos outros a sua pertença ao Senhor, a sua assiduidade com o Senhor. Não distraído, não preocupado (cf. 1 Cor 7,32-35), não à procura de soluções compensatórias ou substitutivas, como uma sentinela vigilante, à espera da vinda do Senhor, narra com a sua vida que nada prefere ao amor de Cristo e que, se um amor nasce, deve ser dirigido a Cristo, aquele que ocupa o lugar central.
De fato, muitos eclesiásticos usurpam uma centralidade que não lhes pertence, mas pertence apenas ao Senhor. Em vez disso, deveriam ser simplesmente como o dedo do Batista no grande retábulo da crucificação de Matthias Grünewald, um dedo apontando para Cristo: aquele que está no centro como Senhor e como Cordeiro "no meio dos castiçais" (Ap 1,13), "no meio do trono" (Ap 5,6).
Quem não sabe descentralizar-se, quem não sabe escolher o último lugar (cf. Mc 9,35), saiba disso ou não, é um idólatra de si mesmo, doente de philautia, incapaz de reconhecer verdadeiramente o outro, os outros, o Outro.
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Não no centro. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU