26 Março 2021
Liberdade e igualdade não existem sem o apoio do terceiro valor, o da fraternidade. As relações humanas não podem (e não devem) ser remetidas às simples reivindicações da justiça entendida como simples equalização objetiva dos direitos; exigem que se vá além, introduzindo a dimensão do dom que lhes dá o significado mais autêntico.
A opinião é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas. O artigo foi publicado por Il Gallo, de março de 2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O fato de a ética pública estar hoje em crise é tão evidente que não exige grandes demonstrações. Muitos são os sinais que denunciam o desaparecimento, na consciência coletiva, de “evidências éticas” que, no passado, foram um fator determinante para a construção da convivência civil e a referência obrigatória para as escolhas políticas e legislativas.
O desfiamento do tecido social provocado pelo avanço de uma sociedade complexa e diferenciada, por um lado, e o distanciamento cada vez mais acentuado das intervenções públicas em relação aos valores morais em nome da adesão à realidade factual, por outro, também são indícios de um estado de decadência ética com graves repercussões sobre a vida da comunidade.
Esse fenômeno é particularmente evidente se considerarmos o que se verificou nas últimas décadas na Itália e se compararmos isso com o clima que caracterizou os anos do imediato pós-guerra. Enquanto, na época, apesar da forte contraposição ideológica, havia se chegado a um compromisso civil, baseado na convergência em torno de valores compartilhados – a Carta Constitucional [italiana] é testemunha disso –, hoje, mesmo na presença de uma tensão ideológica muito menor, estamos diante de uma dificuldade muito maior em retraçar valores comuns que possibilitem a definição de um ethos civil.
Quem contribuiu para determinar esse estado de coisas foi um conjunto de causas estruturais e culturais, que, entrelaçando-se, deram origem a uma condição de extrema precariedade nas relações interpessoais e sociais, precariedade que é uma ameaça para o presente e para o futuro. O dado que aflora como o mais determinante é, a esse respeito, a emergência de uma forma de individualismo acentuado, para o qual o que prevalece é o interesse pessoal ou do próprio grupo, ao invés da busca do bem comum.
O reflexo imediato dessa visão se dá, acima de tudo, no terreno dos direitos, onde um papel de primeira ordem é assumido pelos direitos subjetivos, que vem se multiplicando cada vez mais em detrimento dos direitos sociais e que correm o risco, às vezes, de ser expressão de uma liberdade entendida como uma forma de arbítrio incondicional, que tem a sua própria fonte na dinâmica indefinida do desejo.
O lema do pensamento radical – “Vale aquilo que vale para mim, vale para mim aquilo que me agrada” – corrói radicalmente o terreno dos valores comuns, que são substituídos como critério de avaliação do agir pela simples referência ao princípio do prazer.
Um fator destinado a fornecer, em termos complementares, suporte a essa versão interpretativa do agir humano é a afirmação do mercado não só como estrutura de sustentação do sistema econômico, mas também como ideologia ou – como muitos o definem – como pensamento único, cujas lógicas, as da produtividade e do consumo, tornam-se paradigma de julgamento de todo fenômeno humano.
A perspectiva utilitarista, para a qual a interrogação dominante é “para que serve?”, substitui aquela centrada na busca do significado – “que sentido tem?” –, destituindo o agir humano de qualquer valor moral. A busca pelo resultado prevalece sobre a fidelidade ao valor, que é relegado às margens do interesse do sujeito agente.
Essa perspectiva, além disso, ganha ainda mais apoio hoje a partir do predomínio de uma concepção neoiluminista, que considera o progresso tecnocientífico como dotado de valor incontestável. A ideologia tecnocrática, que afunda as suas raízes na racionalidade instrumental, para a qual – como observava Francis Bacon – saber é poder, ou seja, possibilidade de exercício de um domínio incondicional sobre a realidade, acabava considerando – este é o axioma fundamental no qual a conduta humana deve se inspirar – aquilo que é tecnicamente possível como eticamente legítimo, por ser humanizante.
Os enormes sucessos alcançados nesse campo – basta chamar a atenção para a revolução digital – apenas enfatizam essa visão, ocultando os aspectos de ambivalência (e de ambiguidade) que são conaturais a todo progresso realizado pelo ser humano.
A reação a esse desvio da ética pública e o possível retorno ao reconhecimento de valores comuns ou, melhor, a um ethos civil compartilhado estão estreitamente ligados ao alcance de um entendimento sobre o significado do fato de o ser humano estar no mundo; em outras palavras, à convergência em torno de uma base antropológica comum, que supere, por um lado, a tendência individualista mencionada, oferecendo os pressupostos necessários para compreender as relações entre os seres humanos e as outras criaturas, e que permita, por outro, voltar a um dado ontológico capaz de fornecer a plataforma para um novo humanismo.
Em relação ao primeiro aspecto – o da superação do individualismo – a pandemia, que recentemente irrompeu em termos chocantes na vida humana, repropôs fortemente e de forma envolvente a verdade da globalização, ou seja, a existência de uma estreita interdependência que liga os destinos da família humana inteira – esta foi (talvez) a maior conquista desse drama coletivo – e consequentemente tornou transparente a consciência de que não nos salvamos sozinhos, mas sempre e somente juntos.
Isso nos obrigou a olhar para o outro não mais como um estranho, que no máximo deve ser tolerado, mas com quem não temos nada em comum para compartilhar, mas sim como um sujeito de cuja relação depende a nossa própria realização pessoal.
Em relação ao segundo aspecto – o da busca de um novo humanismo – a questão se coloca hoje em termos novos: de fato, não se trata apenas de uma modernização das categorias do passado, mas de levar a sério o radical questionamento da própria identidade humana.
A genética, as neurociências e a inteligência artificial, graças à transformação das capacidades físicas e intelectuais dos seres humanos, induzem-nos a falar de pós-humanismo, querendo aludir com isso à possibilidade de o ser humano dar origem a operações cada vez mais complexas, mas também de ver atrofiadas as suas próprias faculdades pessoais, o pensamento e a memória em primeiro lugar.
O itinerário antropológico que se impõe, portanto, e que deve se desenvolver em chave interdisciplinar, recolhendo as visões e as perspectivas plurais que emergem das diversas ciências humanas – também nesse nível se evidencia a interconexão da realidade –, implica, por um lado, o respeito das diversidades culturais, mas também exige, por outro, a possibilidade de ir além de tais diversidades para haurir algo de válido para todos os seres humanos.
Nesse terreno comum, constituído por aquela humanitas que é possível encontrar mediante o cotejo entre as culturas como um dado presente em cada uma delas e que, portanto, tem um caráter trans ou metacultural, brotam aquelas orientações éticas que decorrem de duas dimensões irrenunciáveis do humano.
A primeira é constituída por uma concepção de pessoa em que a identidade individual se integra à relação fundamental com os outros. A segunda coincide com o reconhecimento da irredutibilidade do humano, sobretudo da consciência, a qualquer mecanismo artificial, portanto com a admissão da sua radical diversidade.
As consequências dessa visão antropológica para a ética pública são, por um lado, o compromisso com a construção de uma ordem social justa baseada no desenvolvimento humano ao mesmo tempo integral e universal – o bem da pessoa e o bem da comunidade, longe de serem alternativas, são objetivos bastante convergentes – e, por outro, a atenção a criar condições que preservem o mundo interior da pessoa, impedindo-a de se tornar vítima de condicionamentos tecnológicos que a destituam da sua verdadeira identidade própria, reduzindo as suas potencialidades mais autênticas e mortificando a sua conduta, reduzida a um exercício mecânico de reflexos pavlovianos.
Dessas assunções, decorre a mesa dos valores éticos que devem presidir o comportamento social e aos quais é preciso atribuir uma centralidade na articulação da ética pública. Os desafios do nosso tempo exigem que se dê espaço para uma ideia de bem comum como horizonte capaz de conciliar em si mesmo os tradicionais valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, que, desde a Revolução Francesa, ocuparam um papel de primeiro plano na cultura ocidental e nos regimes de democracia liberal.
No entanto, a sua conjugação exige hoje um esforço de atualização que lhes permita interpretar a variedade e a complexidade das situações atuais na sua rápida mutabilidade.
A liberdade, que é o primeiro valor, deve conciliar a experiência da singularidade da própria vida individual com a assunção de responsabilidade para com os outros; em outras palavras, deve manter unidas, em um equilíbrio dinâmico, a necessidade de libertação subjetiva e a atenção às necessidades do outro (dos outros) que devem ser constantemente satisfeitas.
Isso significa, por um lado, a subtração das formas de escravidão ligadas aos automatismos do consumismo, incluindo a dependência da tecnologia, para reencontrar a própria interioridade e, por outro, a capacidade de enfrentar a demanda que vem do outro, que me desafia e de cujas exigências não posso me subtrair.
A partir dessas reivindicações fundantes, deriva o segundo valor – o da igualdade – que afunda as suas raízes na igual dignidade de cada sujeito humano, da qual brota o dever da tutela e da promoção dos direitos de todos. As fortes desigualdades que caracterizam a sociedade atual e que se estendem das relações entre os povos às entre as classes sociais e as gerações obrigam a repensar radicalmente o modelo de desenvolvimento, tendo como referência a família humana inteira, o ambiente natural e as gerações futuras.
Mas liberdade e igualdade não existem sem o apoio do terceiro valor, o da fraternidade. As relações humanas não podem (e não devem) ser remetidas às simples reivindicações da justiça entendida como simples equalização objetiva dos direitos; exigem que se vá além, introduzindo a dimensão do dom que lhes dá o significado mais autêntico.
O reconhecimento do outro como alguém que nos pertence, não no sentido da posse, mas por fazer parte de nós e ser condição da nossa própria possibilidade de realização, implica a descoberta de uma comunhão original que está antes de toda distinção e envolve a integração da justiça com os valores da gratuidade e da solidariedade.
O altruísmo, então, não é uma virtude justaposta à identidade do sujeito humano; é a consequência direta da descoberta de uma fraternidade universal, à qual o cristianismo confere um fundamento transcendente, revelando-nos que somos filhos de um único Pai e irmãos no Filho. Esse vínculo profundo, que faz da humanidade uma única e verdadeira família, se estende também às relações com a natureza, que não pode se reduzir a um mero recipiente de recursos a serem explorados, mas se configura como habitat dentro do qual a vida humana se desenvolve, enriquecendo-se material e espiritualmente.
O assentimento dado a esses valores deve encontrar uma meta concreta em estilos de vida adequados que contribuam para a construção de uma cultura do encontro, como alguns a definiram. Uma cultura destinada a desenvolver uma convivência baseada na distribuição equitativa dos bens econômicos e na renovada harmonia em relação à natureza em vista da obtenção de uma melhor qualidade de vida.
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Ética para um novo humanismo. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU