13 Setembro 2019
"Direitos e deveres são dois lados da mesma moeda, que juntos subsistem ou juntos caem (aut simul stant aut simul cadunt): o reconhecimento do meu direito anda, de fato, de mãos dadas com o reconhecimento do direito do outro; direito que para mim se torna um dever promover seu pleno exercício. A perda de consciência dessa verdade é uma das causas da desagregação social atual: uma cultura dos direitos não sustentada por uma cultura dos deveres e das responsabilidades só pode produzir fortes desigualdades sociais que inevitavelmente se refletem, em termos negativos, nos desenvolvimentos da convivência civil", escreve Giannino Piana, teólogo italiano, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por "Esodo", n. 193, julho-agosto-setembro-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A variedade de questões tomadas em exame neste caderno - desde questões de bioética (procriação assistida e fim da vida) até questões de natureza social, aliás bastante diversificadas (direitos da criança, legítima defesa, ajuda humanitária aos migrantes) - encontra um ponto de convergência na discussão em torno da ética pública. Todos os casos assinalados remetem, de fato, a providências de ordem político-legislativa, já tomadas ou em processo de definição; providências das quais é importante, além dos juízos que podem ser dados sobre cada uma delas, identificar e avaliar os critérios com base nos quais as várias posições são formuladas. As problemáticas que devem ser abordados nesse sentido são diferentes e de natureza distinta. Entre elas, um papel central é desempenhado pelo método de abordagem das temáticas mencionadas, a relação entre direitos subjetivos e direitos sociais e, por fim, a identificação de uma precisa escala de prioridades das necessidades e dos direitos a serem protegidos e promovidos.
As profundas mudanças na sociedade desde o pós-guerra até hoje, que produziram a afirmação de um radical pluralismo cultural e ético - o fenômeno da secularização gerou, observa Max Weber, o “politeísmo dos valores"- acentuaram a dificuldade de traçar um ethos comum, sobre o qual radicar os dispositivos legislativos que têm a função de regular os comportamentos de uma consistente relevância social. A tentação é então aquela - e não se trata simplesmente uma tentação abstrata, mas uma realidade que muitas vezes se verificou nas últimas décadas – de aderir a um critério sociológico, de ordem meramente quantitativo, que torna o princípio de maioria o único parâmetro de avaliação do comportamento. A ética, no sentido mais rigoroso do termo, é, neste caso, completamente escanteada, sob o pretexto da impossibilidade de encontrar um valor comum em torno do qual convergir, e é substituída pelo assentimento a um modelo procedural, que permita a definição rápida de acordos normativos. Para justificar essa escolha, invoca-se o princípio do respeito da consciência (e, portanto, das escolhas) do indivíduo, com a afirmação de que, ao aderir ao modelo delineado, ninguém é prejudicado, pois cada um fica livre para dar ou não dar seu assentimento ao comportamento liberalizado pela Lei. Há duas objeções que podem (devem) ser movidas para esse modo de proceder. A primeira é que a ética não pode ser totalmente ignorada em nenhum caso. O consentimento dado a um dispositivo legislativo destinado a regular um determinado comportamento inclui, de fato, um juízo de valor, que se refere a uma ética dos costumes (ou ética sociológica) para a qual o que é compartilhado pela maioria também se torna moralmente aceitável. A segunda objeção (não menos importante) é constituída pela consideração de que o que é totalmente negligenciado aqui é o impacto social que os dispositivos legislativos não podem deixar de ter. E isso não apenas pelo seu impacto na formação da consciência, mas também (e acima de tudo) pelas repercussões negativas que determinados comportamentos têm (e só podem ter) nos direitos de alguns sujeitos, principalmente os mais fracos que, em situações de conflito, devido à prioridade atribuída aos direitos de outras categorias, são de fato violados. Tudo isso torna transparente a necessidade de recuperar, no desenvolvimento da atividade legislativa, a instância ética, que deve, contudo, medir-se tanto com a peculiaridade da situação cultural atual, tanto com a especificidade da ordem jurídica. Isso se, por um lado, torna absolutamente inaceitável a adoção de uma ética específica - aquela derivada de uma tradição religiosa ou ideológica - por outro lado, comporta o reconhecimento da distinção entre ordem moral e ordem legal e o consequente respeito da autonomia (que não significa radical separação) entre esta última e a primeira. É como dizer que se trata de identificar o espaço próprio de uma ética pública, à qual fazer referência concreta na formulação das leis, superando tanto a abstração de uma dedução vinda de cima quanto o recurso a uma perspectiva meramente procedural. O caminho a ser seguido para alcançar tal objetivo é (deve ser) aquele que conduz à identificação do ethos cultural próprio da sociedade à qual se pertence. No entanto, o processo que conduz a essa identificação não é fácil: requer a ativação de um debate público, com a abertura de um confronto civil entre as diferentes almas religiosas, culturais e ideológicas presentes no complexo tecido da sociedade, e envolve a adoção de um modelo metodológico - o da ética da comunicação (não se pode deixar de mencionar a esse respeito a contribuição de Habermas) - que permita chegar corretamente à identificação de uma plataforma de valores compartilhada. Tudo isso sem esquecer o critério da eficácia; critério do qual a atividade legislativa não pode prescindir, se pretender perseguir o objetivo operacional que lhe é próprio. Uma lei que é inspirada nos mais altos princípios (ou valores), mas que resulta de fato totalmente ineficaz, é uma lei ruim.
A outra questão levantada pelos casos analisados neste caderno é a relativa à relação entre direitos subjetivos (ou direitos civis) e direitos sociais (ou direitos de justiça e solidariedade). A importância de ambas as categorias de direitos está fora de questão. O desenvolvimento e o aprimoramento da consciência civil contribuíram para expandir, especialmente nas décadas mais recentes, a esfera dos direitos civis, atribuindo um espaço cada vez maior aos de categorias ou condições particulares – como, por exemplo, os homossexuais ou as relações não matrimoniais (os chamados casais de fato) - aos quais era dever fornecer uma proteção peculiar. Isso deve ser considerado um fato positivo. E, no entanto, não se pode esquecer que isso aconteceu (e acontece) no contexto de uma cultura amplamente dominada por impulsos individualistas ou - como alguns afirmam - por um projeto de radical subjetivação, caracterizado por uma excessiva exaltação da autonomia individual, que acaba por transformar o homem em ator não-social, motivado pelo desejo exclusivo de defender seus direitos ou de perseguir seus próprios interesses. Analisando tal situação, Alain Touraine, conhecido sociólogo francês que, em um recente ensaio intitulado In difesa della modernità (Em defesa da modernidade, em tradução livre, Raffaello Cortina, Milão 2019), define a atual fase histórica como "hipermodernidade", não hesita em falar (aliás, com um imprevisível otimismo avaliativo) de condição pós-social. Fazendo uma apreciação crítica do livro de Touraine no suplemento semanal cultural do Corriere della sera "Lettura" (Il Soggetto di Touraine sottovaluta la socialità “O sujeito de Touraine subestima a socialidade”, 2 de junho de 2018, p. 11), Carlo Bordoni destaca a ambiguidade dessa situação, sinalizando seus graves perigos. "Na ambiguidade da fase que estamos vivendo - ele escreve - a exaltação dos direitos individuais está longe de ser o prelúdio da libertação do estado de minoridade. A subjetivação de direitos é sempre extremamente perigosa, não apenas porque enfraquece toda condição de paridade na aplicação do direito, mas porque aumenta o isolamento e reduz a solidariedade (fenômenos agora já basante visíveis), deixando os cidadãos à mercê de poderes invisíveis que ninguém é capaz de controlar". Portanto, o risco é que à ênfase consistente dada à conquista dos direitos subjetivos e das liberdades pessoais hoje corresponda um redimensionamento cada vez mais acentuado dos direitos sociais. É suficiente recordar aqui a desatenção cada vez maior ao direito ao trabalho (e aos direitos no trabalho), uma das pedras angulares da Carta Constitucional. O crescimento do desemprego e a precariedade generalizada, bem como a redução das garantias para a proteção das condições físicas e psicológicas dos trabalhadores, são exatamente indicadores de um estado de dificuldade que pesa sobre a existência de pessoas individualmente, acentuando o mal-estar existencial. Na raiz dessa virada (em relação ao que havia ocorrido na década de 1970) existe, além da cultura individualista mencionada, a subestimação da importância desempenhada pelo sistema econômico e social, que é a primeira condição da igualdade. A atual concentração de riqueza, que gera desigualdades sociais cada vez mais radicais e alimenta conflitos entre as classes, é a prova tangível da objetiva validade desse diagnóstico. Disso decorre a necessidade de restabelecer um equilíbrio entre direitos subjetivos e direitos sociais, recuperando em termos consistentes estes últimos e redescobrindo a socialidade como o verdadeiro lugar da plena promoção da pessoa, enquanto sujeito estruturalmente ligado a um sistema de relações. Esse equilíbrio tem um modelo de referência exemplar em nossa Constituição, que introduz, ao lado dos tradicionais direitos de liberdade próprios da cultura iluminista-liberal, os direitos sociais (ou direitos econômico-sociais), ou seja, é em primeiro lugar os direitos ao trabalho, à saúde e à educação, reconhecendo a importância destes últimos em garantir a possibilidade de exercer a cidadania e, por essa razão, comprometendo diretamente a República a "remover os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país" (art. 3, par. 2). Essa mensagem é ainda mais relevante hoje do que ontem: a subjetivação de hoje traz consigo, não apenas a ênfase já denunciada colocada sobre os direitos individuais em detrimento daqueles sociais, mas também - e esse é outro elemento que merece uma séria consideração - uma forma de exasperada reivindicação de direitos com a total ausência de consciência da necessidade de assunção dos deveres e responsabilidades civis. Direitos e deveres são dois lados da mesma moeda, que juntos subsistem ou juntos caem (aut simul stant aut simul cadunt): o reconhecimento do meu direito anda, de fato, de mãos dadas com o reconhecimento do direito do outro; direito que para mim se torna um dever promover seu pleno exercício. A perda de consciência dessa verdade é uma das causas da desagregação social atual: uma cultura dos direitos não sustentada por uma cultura dos deveres e das responsabilidades só pode produzir fortes desigualdades sociais que inevitavelmente se refletem, em termos negativos, nos desenvolvimentos da convivência civil.
A casuística objeto de análise nesta edição da revista apresenta, em resumo, muitas facetas diferentes, que exigem um discernimento preciso e articulado. Distinta é a entidade dos casos, que pertencem a diferentes esferas e têm uma relevância diferente ou até mesmo (como, por exemplo, no caso da legítima defesa) têm como objetivo a introdução de práticas - no caso, a prática de vingança privada com a remoção ao Estado do monopólio da força, um dos pilares básicos da construção da moderna democracia - que devem ser sem demora eticamente estigmatizadas. Um critério final, além dos ilustrados, merece ser finalmente assinalado. Para além do equilíbrio necessário entre direitos subjetivos e direitos sociais - equilíbrio para o qual exige-se hoje maior atenção àqueles sociais – ocorrem dentro das duas áreas objetivas diferenças de valores, que devem ser traduzidas na definição de prioridades precisas nas escolhas. Para ficar no âmbito dos casos mencionados, não é possível prescindir, abordando temáticas como a procriação assistida ou as adoções, de uma atenção privilegiada aos direitos dos menores, assim como não se pode esquecer – no campo dos direitos sociais - a urgência da ajuda humanitária aos migrantes, que hoje representam (talvez) a categoria mais marginal cujos direitos devem ser absolutamente protegidos. A dificuldade de abordagem das temáticas aqui tomadas em consideração - dificuldades decorrentes tanto do avanço do fenômeno da complexidade social quanto da acentuação do processo de globalização - exigem, na busca de soluções a serem implementadas no âmbito legislativo, além do envolvimento de toda a cidadania, a contribuição específica dos especialistas, através do estabelecimento de uma interface significativa entre ciência e sociedade. A aplicação dos critérios sinalizados exige, de fato, como uma etapa preliminar, um esclarecimento adequado dos termos de cada uma das questões a serem acompanhadas através do exercício de uma construtiva interdisciplinaridade. Mas implica também (e acima de tudo) um amadurecimento da consciência civil, que permita garantir a formulação de avaliações e de propostas inspiradas no princípio do bem comum.
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Ética pública entre direitos e responsabilidades. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU