"Leonardo entende-se como um trabalhador como qualquer outro, trabalhando com instrumentos muito precários: somente 25 sílabas! Com elas compõe palavras e depois formula frases e, por fim, escreve livros com a finalidade de tentar melhorar este mundo, para que tenha as características do sonho de Jesus", escreve Eliseu Wisniewski em resenha sobre o livro Reflexões de um velho teólogo e pensador (BOFF, Leonardo. Reflexões de um velho teólogo e pensador. Petrópolis: Vozes, 2018, 208 p., 135x210mm – ISBN 97885432660015).
Eliseu Wisniewski é presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e professor na Faculdade Vicentina (FAVI).
Leonardo Boff nasceu em Concórdia, Santa Catarina, no dia 14 de dezembro de 1938. Completa neste ano de 2020 – 82 anos. Uma vida dividida em três atividades: aulas de teologia sistemática e ecumênica, palestras e cursos nos mais diferentes lugares e países e a dedicação à pesquisa. Durante 50 anos no ofício do pensamento nas mais diversas áreas, escreveu mais de cem (100) livros (alguns em co-autoria), cobrindo várias áreas do pensamento, da teologia, da filosofia, da ética, da espiritualidade, da ecologia e também com algumas incursões na literatura.
Seu longo percurso existencial o atesta como alguém que trabalhou muito e continua trabalhando... Leonardo entende-se como um trabalhador como qualquer outro, trabalhando com instrumentos muito precários: somente 25 sílabas! Com elas compõe palavras e depois formula frases e, por fim, escreve livros com a finalidade de tentar melhorar este mundo, para que tenha as características do sonho de Jesus: um reino onde prevaleça o amor acima do ódio, a solidariedade acima da competição e o cuidado com a Casa Comum acima de sua devastação.
Assim neste ano pudemos saborear suas reflexões contidas nos livros: A saudade de Deus. A força dos pequenos e Covid-19: a Mãe-Terra contra ataca a humanidade: advertências da pandemia, ambos publicados pela Editora Vozes. Aguardamos seu novo livro: “As dores do parto da Mãe Terra: as perspectivas de um outro tipo de humanidade” a ser publicado até o final deste ano. Nestes escritos, Leonardo anuncia a esperança, como motor interno a cada pessoa e aos processos sociais e vitais que nos dá coragem para enfrentar crises e emergências planetárias e encontrar saídas salvadoras.
Em 2018, quando Leonardo Boff completou 80 anos de idade, a data do aniversário resultou na obra, Reflexões de um velho teólogo e pensador, da qual nestas linhas apresentamos uma síntese.
A apresentação da obra foi feita por Gilberto Garcia, Diretor da Editora Vozes, destacando que, em muitos momentos, a história da Editora Vozes e a carreira editorial de Leonardo Boff se entrecruzaram. Como editor, Leonardo atuou de 1970 a inícios de 1992; em períodos diferenciados, atuou como coordenador do Editorial Religioso, redator da Revista Eclesiástica Brasileira, da revista Concilium e da Revista de Cultura Vozes. Além disso, foi coordenador da coleção Teologia da Libertação. A Teologia da Libertação marcou sua vida. Como escritor se revelou um homem com capacidade de dialogar com os mais diferentes contextos, recompondo-se a cada período do pensar teológico e de sua própria história (p. 9-11).
No Prefácio, o sociólogo Michael Löwy, tendo em consideração a trajetória de vida e de intelectual de Leonardo Boff, qualifica-o como um “símbolo planetário da integridade moral” (p. 13), uma “espécie de Isaías do século XXI” (p. 15). Seus escritos, lidos por milhões, pelo Brasil afora e no mundo inteiro, são sementes de um futuro diferente, sementes de paz, esperança e solidariedade (cf. p. 13-15).
Os assuntos abordados neste livro contemplam dois públicos: os jovens e seus leitores assíduos. Para um número sempre maior de jovens que se interessam por suas obras teológicas, o livro traduz os principais temas da carreira do escritor. Já para aqueles que acompanharam sua produção bibliográfica, representa uma oportunidade de revisitar esses temas.
Capa do livro Reflexões de um velho teólogo e pensador (Foto: Divulgação/Amazon)
O livro está estruturado em nove (9) capítulos. Para que Leonardo reexaminasse os temas desenvolvidos nestes capítulos, contou-se com a contribuição de intelectuais que, formularam questões que não aparecem explicitamente no texto. Estas atuaram como provocações a que Leonardo refletisse sobre os alicerces de seu pensar teológico e, paralelamente, contemplasse as questões mais contemporâneas da sociedade.
O primeiro capítulo – I have a dream (Eu tenho um sonho) – analisa a importância e a necessidade dos sonhos bons. Eles nos levam a práticas transformadoras e alimentam continuamente a esperança (p. 21); são a fala do inconsciente pessoal e coletivo (p. 17); a forma como Deus se comunica com seu povo (p.18); são imorredouros e antecipam o futuro que virá (p. 19); podem ser vistos como pesadelos (p. 20) ou como bons e promissores (p. 20-22).
O segundo capítulo – Que ser é esse que se propõe a fazer teologia? – é dedicado à antropologia. “Antes de nos arriscarmos a falar de Deus devemos nos perguntar sobre o ser humano. Sem o ser humano, a pergunta por Deus perde sentido. Perdendo o ser humano, perdemos a senda que nos conduz à Última Realidade” (p. 23). Aborda-se em primeiro lugar o ser humano no processo antropogênico (p. 23-28), o ser humano complexo de sapiens e demens (p. 28-31), o ser humano como Terra que sente, pensa e ama (p. 31-32). Em segundo lugar analisa-se a figura do teólogo: o teólogo e a sabedoria (p. 32-35); o teólogo, um ser quase impossível (p. 35-37).
O terceiro capítulo, intitulado: Deus: o princípio originador de todos os seres, aborda o mistério de Deus como “última Realidade” (p. 39) e como “desafio maior do pensamento radical e da teologia” (p. 39). A questão é analisada em quatro (4) momentos: Deus como mistério em si mesmo e para nós (p. 40-43); como Deus emerge no processo cosmogênico (p. 43-47); Deus como Trindade, comunhão de Divinas Pessoas: o cristianismo (p. 47-49); um teologumenon: a Trindade inteira vem a nós (p. 49-52). Para o Autor, Deus Trindade está sempre do nosso lado, dentro dos processos históricos e no grande processo universal da cosmogênese e antropogênese. Somente à luz da fé podemos afirmar tais realidades, mas, como teólogos, não devemos nos calar e anunciar como boa-nova essa inefável e bem-aventurada presença do Deus-relação-comunhão-amor em nossa peregrinação terrena (p. 52).
O quarto capítulo propõe uma reflexão sobre a cristologia: O Filho do Pai está entre nós: Jesus de Nazaré. O Filho do Pai está entre nós na figura do homem de Jesus de Nazaré (p. 53-55). Para entender melhor o significado da encarnação do Filho de Deus, é preciso levar em consideração a distinção entre a Jesuologia e a Cristologia (p. 55-58). A reflexão central deste capítulo descreve o grande sonho de Jesus: o Reino de Deus (p. 59-60); o que Jesus realmente quis: o Pai nosso e o Pão nosso (p. 62-64); seguem uma reflexão teológica sobre o Ressuscitado como o Cristo cósmico (p. 60-61) e outra, sobre a encarnação do Filho de Deus em nossa realidade humana: todos podemos ser, à própria maneira, também Cristo (p. 65).
O quinto capítulo é dedicado à questão pneumatológica – O Espírito Santo, Doador da Vida e o feminino. O Espírito Santo enche e move o universo (p. 68- 69); a relação de Jesus e o Espírito Santo: Jesus irrompe como o principal portador do Espírito (p. 69-70); o Espirito Santo, a comunidade e os pobres (p. 70-72); o Espírito Santo, Maria e o feminino (p. 73- 76).
O sexto capítulo ocupa-se da questão eclesiológica. Eis o título: A Igreja carisma e poder, e o povo de Deus. Inicialmente, o Autor convida a distinguir entre Reino de Deus e o que veio em seu lugar, a Igreja. Esclarece que antes de mais nada, precisamos enfatizar que a intenção originária de Jesus não era fundar uma Igreja, mas anunciar e antecipar o Reino de Deus, seu sonho maior. Com sua rejeição e sua execução na cruz, o Reino se antecipou somente em sua pessoa ao ser ressuscitado dos mortos e irrompendo-o como o novo homem, transfigurado, mostrando o que todos nós um dia seremos (p. 77).
Assim sendo, a reflexão deste capítulo consta de cinco (5) momentos: Reino de Deus e Igreja não se recobrem (p. 77-78); o cristianismo como movimento e caminho espiritual; a dimensão paulina (carisma) e a petrina (poder) da Igreja (p. 80-83); o poder como serviço em Jesus e como domínio no modelo petrino-romano da Igreja (p. 83-86); a Igreja Povo de Deus, as Comunidades Eclesiais de Base e a eclesiogênese (p. 86-96).
O sétimo capítulo – Libertar a Mãe Terra: uma Ecoteologia da Libertação – explora a ecologia. O Autor esclarece o que é propriamente ecologia; (p. 97-99); destaca que a vida é parte essencial do Planeta Terra (p. 99-100); aborda o confronto entre duas cosmologias: a cosmologia da conquista, do poder e da dominação e a cosmologia da transformação e da libertação (p. 101-106). Analisa a raiz última da crise ecológica: a ruptura com a religação universal (p. 106-109) e apresenta quais seriam os caminhos da ecologia integral (p. 109-115) e de uma Ecoteologia da Libertação (p. 115-118).
O oitavo capítulo – Uma ética universal e para a Casa Comum – aborda a ética. O autor defende que o que se faz necessário e urgente é construir uma base comum a partir da qual podemos articular um consenso mínimo que salvaguarde e regenere a Casa Comum, hoje assolada pela devastação ecológica e pela injustiça social internacional, e também garanta um futuro comum: Terra humanidade (p. 120).
Esclarece que vivemos uma nova etapa da história da humanidade e da própria Terra: a etapa planetária (p. 120-122). Apresenta três propostas de ética planetária: 1) baseando-se em Hans Küng, a religião como base para um ethos mundial (p. 122-129); 2) em Enrique Dussel, um ethos mundial a partir dos pobres e de sua libertação (p. 126-129); 3) A Carta da Terra (p. 129-131). O Autor apresenta sua própria proposta, fundada num outro tipo de racionalidade: o ethos fundado no cuidado essencial (p. 131-136) e elenca qual é o conteúdo básico desse tipo de ética: 1) o cuidado de si; 2) a responsabilidade; 3) a solidariedade; 4) a compaixão (p. 136-142). A partir disso, destaca que “as exigências éticas propostas exigem reconstrução de nossa humanidade e de nossa civilização, com outro tipo de relacionamento com a Terra, para que ela mantenha sua biocapacidade de continuar sendo nossa boa e generosa Mãe, que tudo nos dá, e nossa Casa Comum” (p. 143-149). Conclui, mostrando que a Mãe Terra é portadora de subjetividade e dignidade (p. 149-153) e tecendo reflexões sobre a possibilidade de o ser humano desaparecer da face da terra (p. 153-158) e sobre quem seria seu sucessor (p. 158-161).
O nono capítulo – Espiritualidade, o profundo do ser humano – aborda a espiritualidade. Busca entender qual a razão da busca por espiritualidade (p. 163-165); esclarece o que é espiritualidade (p. 165-166); faz distinção e mostra qual é a relação entre espiritualidade e religião (p. 166-171); mostra como a religião pode se tornar um obstáculo para a espiritualidade (p. 171-172); apresenta a razão cordial como pré-condição para a espiritualidade (p. 172-174); expõe dois caminhos da espiritualidade: o ocidental e o oriental (p. 174-185); define a mística como a mais alta espiritualidade (p. 185-189) e conclui, afirmando que “somos uma qualidade mística da Terra” (p. 189-190).
Na Conclusão, apresenta uma espiritualidade mínima da Mãe Terra (p. 191-192). O poeta Fernando Pessoa, num de seus poemas, diz que: “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. A trajetória de vida de Leonardo Boff na celebração de seus 82 anos mostra que ele esforça-se para que sua existência não seja pequena. Reflexões de um velho teólogo e pensador traz um balanço de sua contribuição teológica e intelectual, captando o que é essencial e relevante. Aqui podemos colher suas reflexões sobre antropologia, trindade, cristologia, pneumologia, eclesiologia, questões éticas, ecológicas e espirituais. Talvez um capítulo específico sobre a escatologia coroasse a obra. Embora o Autor faça uma breve menção a este assunto na página 159, poderia ter aprofundado esta ideia: “a vida não é estruturada para terminar na morte, mas para se transfigurar através da morte. Morremos para viver mais e melhor, para mergulhar na eternidade e encontrar a última realidade, feita de amor e de misericórdia. Aí, saberemos, finalmente, quem somos e qual é o nosso verdadeiro nome”.
Podemos saborear os frutos maduros desse ministério intelectual. É, portanto, bem-vindo este trabalho provocante do teólogo catarinense, sobretudo para as novas gerações. Neste sentido, são válidas as palavras do Papa Francisco que recomenda aos jovens na Exortação apostólica pós-sinodal Christus Vivit: A Bíblia sempre convida a um profundo respeito aos idosos, porque abrigam um tesouro de experiência, experimentaram êxitos e fracassos, alegrias e grandes angústias da vida, ilusões e desencantamentos, e, no silêncio de seu coração, guardam tantas histórias que podem ajudar a não nos equivocar ou nos enganar com falsas miragens. A palavra de um velho sábio convida a respeitar certos limites e a saber dominar-se no momento certo: ‘Exorta também os jovens a serem sensatos’ (Tt 2,6). Não faz bem cair em um culto à juventude que despreza os outros por seus anos, ou porque são de outra época. Jesus dizia que a pessoa sábia é capaz de tirar do baú tanto o novo e o velho (Mt 13,52). Um jovem sábio se abre ao futuro, mas sempre é capaz de resgatar algo da experiência dos outros (n. 16).
Fazemos nossas as palavras da teóloga Maria Clara Bingemer dirigidas a Leonardo Boff: “82 anos de fecundidade. É bonito ver você continuando a dar frutos, desafiando o kronos e habitando o kairos, tempo de Deus. Que Ele continue a abençoá-lo e a fazer de sua vida um verdadeiro milagre de fecundidade”.