03 Dezembro 2020
“Eu vejo a encíclica Fratelli Tutti como um testamento do papa Francisco. Ele trouxe todas as coisas que quis dizer ao longo dos sete anos, e há uma óbvia conexão com o documento de Fraternidade Humana que ele assinou com o Grande Imã de al-Azhar Al Sharif em 04 de fevereiro de 2019, em Abu Dhabi”, falou o cardeal Michael L. Fitzgerald, em entrevista à America durante sua visita a Roma.
A reportagem é de Gerard O’Conell, publicada por America, 01-12-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O cardeal inglês de 83 anos é um especialista em islã e relações cristãs-muçulmanas e membro da sociedade de Missionários da África – popularmente conhecida como Padres Brancos. Ele discutiu a encíclica e o documento da Fraternidade Humana com America no Pontifício Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos em Roma, onde já foi reitor. Depois dessa função, ele foi chamado pelo papa João Paulo II para trabalhar no Pontifício Conselho pelo Diálogo Inter-religioso, primeiro como secretário e depois como prefeito por quatro anos até Bento XVI, em um movimento inesperado, o delegar à nunciatura apostólica no Egito e à Liga Árabe (2006-2012). O papa Francisco o fez cardeal em 2019, e falou aos jornalistas que “era por um ato de justiça”.
O cardeal Fitzgerald observou que Francisco se inspirou apenas em São Francisco de Assis para escrever Fratelli Tutti, mas também no Grande Imã de al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb. De fato, “Francisco revela que foi ‘estimulado’ – é a palavra que ele usa em italiano – pelo Grande Imã”, disse o cardeal. “E essa expressão chamou minha atenção, porque não há precedente na história da Igreja para um Papa se inspirar em um muçulmano ao escrever uma encíclica”. Ele lembrou as próprias palavras de Francisco sobre o encontro com Al-Tayyeb sobre o documento da Fraternidade Humana, que ele menciona oito vezes na encíclica: “Este não foi um mero gesto diplomático, mas uma reflexão nascida do diálogo e do compromisso comum”. O cardeal observou “que tudo é significativo”, assim como “o fato de que um muçulmano – o juiz Ahmed Al-Salam – foi um dos apresentadores de Fratelli Tutti, em seu lançamento no Vaticano”.
O purpurado, que estudou na Tunísia e no Egito, e trabalhou no Sudão do Sul, Cairo e Jerusalém, considerou “importante” que tanto a encíclica quanto o documento da Fraternidade Humana enfatizassem que “somos todos uma família e que este fato se baseia em nossa origem comum de Deus, porque Deus criou todas as pessoas juntas”. Ele observou: “Isso é algo que o papa Francisco e o Grande Imã de al-Azhar concordam. Este é um princípio teológico, então eles estavam fazendo teologia juntos”.
Ele lembrou que “o Alcorão [diz] que todos nós viemos de uma única origem, e estamos todos em Adão e toda a humanidade, antes de sermos realmente criados, aceitamos Deus como Deus, como seu Senhor. Mas eles precisam ser lembrados disso, e esse é todo o impulso do Islã. Somos todos muçulmanos quando nascemos porque todos aceitamos Deus como nosso Senhor”, mas, ele observou: “Isso não vem na encíclica, é claro”.
Ele observou que “embora os muçulmanos se refiram a Deus como o Deus criador, o Deus misericordioso, eles não se referem a Deus como pai. Eles se oporiam a isso, porque a palavra ‘pai’ para eles tem uma espécie de conotação sexual, e então isso não seria digno de Deus”. Mas, ele observou, o fato de que o papa Francisco e o Grande Imã “terem sido capazes de produzir este documento sobre a fraternidade humana sem se referir a Deus como pai mostra que isso é bom”.
Ele chamou a atenção para as semelhanças no documento da Fraternidade Humana e Fratelli Tutti, e observou que, enquanto o Papa fala de uma consciência humana “dessensibilizada” na encíclica, Francisco e Al-Tayyeb usam o termo ainda mais forte “anestesiado” no Texto de Abu Dhabi (Nota: na versão em inglês da Fratelli Tutti, n. 275, escreve-se “desensitized”, mas na versão em português consta como “anestesiada”).
O cardeal missionário na África enfatizou que, no documento da Fraternidade Humana, o papa Francisco e o Grande Imã emitiram “a condenação do terrorismo em todas as suas formas e expressões”. Ele disse que é “significativo” que Francisco tenha citado essas mesmas palavras em Fratelli Tutti (parágrafo n. 283), que deixam claro que “não devemos apoiar o terrorismo de forma alguma, nem financeiramente nem por tentativas de justificá-lo na mídia”.
O cardeal acrescentou: “Eu penso que o fato de o Papa e o Grande Imã estarem dizendo coisas juntos é bom; isso é importante porque é notado”. Ele afirmou: “há muitos, muitos líderes muçulmanos que estão condenando o terrorismo, condenando o mau uso da religião para justificar a violência. Mais que isso, muitos líderes muçulmanos estão dizendo isso, mas isso não está sendo mostrado pela imprensa, mas quando o Papa e o Imã estão dizendo juntos, tem muito mais peso e é noticiado”.
Ele presta atenção ao fato que “no mundo cristão, o papa Francisco não é o líder de todos os cristãos. Ele é o líder da Igreja Católica, mas ele tem relações muito boas, relações pessoais, com líderes de outras comunidades cristãs e então, por essa razão de sua própria personalidade, ele tem uma ampla audiência”. Mas a situação do Imã é diferente: “O Grande Imã de al-Azhar não tem autoridade sobre todos os muçulmanos, e mesmo entre os sunitas (que são em torno de 85% dos muçulmanos do mundo) há os que são críticos de al-Azhar, então eu penso que o fato de o Papa e ele estarem falando juntos dá uma força à voz do Grande Imã”. Ele considera um sinal positivo o fato de Mohammad Ali-Shomali, um líder xiita do Irã, que vive na Inglaterra, tenha escrito positivamente sobre o documento da fraternidade humana em uma edição recente da revista PISAI.
Solicitado pela America a comentar sobre esta boa relação entre o papa Francisco e o Grande Imã de al-Azhar, e na verdade a relação positiva de Francisco com o mundo muçulmano em geral, o cardeal Fitzgerald começou enfatizando que “a base de tudo isso é o Concílio Vaticano II, e seu documento inovador ‘Nostra Aetate’, a Declaração sobre a Relação da Igreja com as Religiões Não-Cristãs, que o papa Paulo VI promulgou em 28 de outubro de 1965”. Ele acrescentou: “Todos os Papas desde então têm aplicado isso de maneiras diferentes”.
O cardeal disse: “achava que João Paulo II estava muito à frente da Igreja ao estender a mão às pessoas de outras religiões, incluindo os muçulmanos, e não tinha medo porque ele era muito católico. Essa coisa de estar aberto a pessoas de outras religiões não traz dúvidas sobre sua própria fé. Ele está seguindo sua fé para ser aberto”. Mas, ele disse, “a posição de Bento XVI foi um pouco retirada porque ele parecia olhar para o mundo de um ponto de vista europeu mais do que universal”.
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O que a amizade do papa Francisco com o Grande Imã de Al-Azhar significa para as relações cristãs-muçulmanas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU