Quando se tem presente a renda, os efeitos da pandemia da Covid-19 foram menos desfavoráveis entre os catadores de material reciclável do que o verificado em outras categorias de trabalhadores, escreve Cesar Sanson, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Os resultados são oriundos de uma pesquisa junto à Associação de Catadores de Material Reciclável Novo Amanhecer da periferia de Curitiba – PR durante a pandemia Covid-19.
Os catadores e as catadoras de material reciclável, também conhecidos/as como carrinheiros/as ou carroceiros/as, dependendo da localidade, podem ser considerados os mais precários dentre os trabalhadores precários em função de uma tripla condição: primeiro, estão distantes da possibilidade de qualquer direito laboral; segundo, recebem baixíssima remuneração; terceiro, são invisibilizados socialmente ou quando enxergados são vistos com desconfiança e remetem para um olhar que oscila entre a compaixão, o medo e o desprezo.
Os catadores e as catadoras estão entre os mais precários do precariado. O conceito de precariado é amplo na literatura sociológica, particularmente na sociologia do trabalho e nem sempre assume o mesmo significado. Numa perspectiva ampla denota a condição de vulnerabilidade no trabalho em função das condições de trabalho submetidas aos riscos permanentes da intermitência, remuneração baixa, flexibilização ou retirada de direitos. Ruy Braga (2016, p. 52) [1] define o precariado da seguinte forma:
"O precariado é a classe trabalhadora formada por aqueles grupos mais submetidos à exploração. São os setores sub-remunerados, inseridos em condições precárias de trabalho, que não conseguem ter acesso aos seus direitos trabalhistas e que se encontram permanentemente entre dois polos: de um lado, o aprofundamento da exploração do trabalho e, de outro, a possibilidade e iminência de ser excluído do mercado de trabalho, seja por meio do subemprego, da informalidade ou do desemprego mesmo".
Note-se que a definição de Braga sequer inclui os catadores e catadoras como precariado, uma vez que não se encontram nos polos citados: o do “aprofundamento da exploração do trabalho” e o de estarem na “iminência de ser excluído do mercado de trabalho”. Primeiro, esses trabalhadores não vivem o “aprofundamento da exploração do trabalho” porque encontram-se na pior e mais aviltante condição de trabalho, já não há mais o que “aprofundar” e, segundo, não estão na “iminência de serem excluídos” porque já estão na exclusão.
Tendo presente os efeitos devastadores da pandemia da Covid-19 era de se esperar que os catadores e catadoras de material reciclável tivessem as suas condições de renda pioradas. Uma pesquisa, entretanto, junto a Associação Novo Amanhecer de catadores e as catadoras de material reciclável situada na periferia de Curitiba – PR levaram a resultados surpreendentes. No período analisado de maio a agosto de 2020, auge da crise sanitária, esses trabalhadores aumentaram a sua renda mensal.
Associação Novo Amanhecer - periferia de Curitiba-Pr (Foto: Edson Sanson)
Apresentamos na sequência uma análise do impacto da pandemia da Covid-19 na vida dos trabalhadores da referida Associação, particularmente sobre a renda auferida durante a pandemia e a jornada de trabalho. Os dados apresentados tomam como referência a situação dos trabalhadores, o seu trabalho e renda antes da pandemia e durante a pandemia, permitindo assim um comparativo das consequências da crise sanitária.
(Tabela elaborada por Edson Sanson)
A tabela acima demonstra o valor dos produtos (colunas à esquerda), a quantidade de material coletado em quilogramas (colunas à direita) e a renda (colunas horizontais abaixo da tabela) no período de 15 de fevereiro a 20 de março de 2020 antes, portanto, da pandemia e de 18 de julho a 21 de agosto 2020, durante a pandemia. Os dados têm como referência o total de 37 catadores, àqueles que realizam a catação por meios próprios como carrinhos e carretinhas. A coleta é realizada nas ruas, residências individuais e condomínios residenciais e no pequeno comércio.
Na coluna à esquerda observa-se que o valor por quilo dos respectivos materiais pouco se alterou no “antes” e no “durante” a pandemia. Com exceção da sucata mista que teve um aumento de 175% (efeito China), o restante do material majoritariamente permaneceu estável. Nota-se uma pequena variação do papelão (aumento de valor de 16%) e decréscimo de valor do plástico fino (- 11,1%) e do plástico cristal (-18,2). Em relação ao quantitativo de material coletado “antes da pandemia” e “durante a pandemia” observa-se que a variação da quantidade de material é residual (-3,46); ou seja, o evento da pandemia não alterou substancialmente a quantidade de material coletado.
Uma primeira constatação possível tendo como referência os valores unitários dos materiais coletados é que não houve alteração entre a oferta e a demanda em função do evento da Covid-19, ou seja, o mercado de material reciclável continuou estável. Pelos dados se percebe que provavelmente não houve falta de oferta, tampouco excesso, de material reciclável no mercado. Com exceção da sucata, os materiais restantes ficaram estáveis. Uma explicação para a estabilidade dos valores é que não houve mudança substancial no consumo e descarte desses materiais.
Uma indagação plausível é: considerando-se o isolamento social e o fechamento parcial dos estabelecimentos comerciais não seria esperada uma redução de descarte de material reciclável? A princípio a resposta deveria ser afirmativa, porém, uma explicação para a não redução do descarte pode ser compreendida a partir do fato de que muitas famílias, principalmente aquelas que não tiveram a condição de renda afetada, aumentaram o consumo exatamente em função da reclusão em seus domicílios. Permanecendo mais tempo em casa, passaram a consumir mais, compensando o possível descarte do comércio em geral.
Outra conclusão a que se pode chegar é que a pandemia Covid-19 não alterou a dinâmica da coleta diária, ou seja, depreende-se isso a partir da averiguação da tabela do quantitativo de quilos coletados e de conversas realizadas que os catadores continuaram a sua atividade normalmente uma vez que o volume de material coletado é praticamente o mesmo para o período anterior à pandemia e durante a pandemia. Essa afirmação, entretanto, precisa ser melhor matizada.
Em conversas com o coordenador administrativo da Associação e com alguns catadores percebe-se que muitos deles de fato reduziram o tempo da coleta nas ruas; outros, entretanto, permaneceram na catação diária sem alterar de forma significativa a sua jornada trabalho. A quantidade de material coletado em seu conjunto permaneceu a mesma porque aqueles que não alteraram a dinâmica de trabalho diário em função da pandemia acabaram coletando mais material do que o normal, equilibrando assim a redução da coleta daqueles que reduziram o tempo de saída às ruas.
Nas conversas realizadas com catadores e catadoras percebe-se que parte considerável deles, embora tenham acompanhado o noticiário e tivessem conhecimento das mortes, acreditavam e, até hoje acreditam, que “não pegam” o Covid-19. Perguntados se tomaram conhecimento de que algum colega de trabalho tenha contraído o vírus, as respostas foram sempre negativas. Na Associação ninguém tinha conhecimento de que alguém tivesse sido vítima da Covid-19. É possível, não se sabe, que possa ter havido omissão nessa informação. Nenhum deles assumiu, ao menos publicamente ou em conversas reservadas, que tenha contraído o vírus. Há suspeitas de que “sumiços” de alguns catadores por determinado período da Associação possam ter sido em razão da Covid-19. Mas são apenas suspeitas que não se podem confirmar.
Com o crescimento de casos e óbitos muito deles passaram a utilizar máscaras, mas apenas nas ruas. No espaço da Associação onde manejam os materiais recicláveis são poucos os que utilizam máscaras. Em que pese muitos deles terem optado por reduzir o tempo de permanência nas ruas em função da pandemia, nunca o deixaram de fazê-lo. Não se verificou a paralisação total de atividades como ocorreu em tantas outras categorias de trabalhadores.
Registre-se também que não existe a opção de home office para essa atividade e que o preconizado isolamento social faz pouca diferença na vida da maioria desses trabalhadores considerando-se as condições de moradia. A maioria reside em moradias precárias, barracos mal ajambrados, quase sempre em áreas de ocupação, com pouco acesso a água potável e energia elétrica nem sempre disponível. Há ainda outro aspecto, extremamente relevante, a ser considerado: a paralisação total na coleta significa ficar sem renda. Logo, foi também a necessidade que forçou a não interrupção das atividades. Tanto isso é fato que a partir da possibilidade do acesso ao Auxílio Emergencial e da doação de cestas básicas, muitos deles reduziram o tempo de trabalho. O Auxílio e as cestas básicas passaram a compensar a renda das ruas. Muitos dos e das catadores e catadoras tiveram até mesmo um aumento em sua renda porque além dos ganhos auferidos pela atividade da catação passaram a receber o Auxílio Emergencial. Registre-se que o Auxílio é superior à renda média mensal que os catadores da Associação ganham.
Como se pode verificar na tabela, a média mensal de renda dos catadores ficou na ordem R$ 506,33 antes da pandemia e na ordem de R$ 488,35 durante a pandemia, ou seja, a diferença de valores, tendo presente a média, para o “antes” e o “depois” da pandemia foi praticamente inexistente em função das razões já expostas anteriormente acerca da quantidade de material reciclável coletada e da estabilidade de preços no mercado.
Considerando-se que o auxílio foi de R$ 600,00 num total de cinco parcelas, verifica-se que a renda dos catadores aumentou no período. É importante destacar que a maioria deles acessou automaticamente o Auxílio Emergencial pelo fato de que já são cadastrados para o recebimento do Bolsa Família e os beneficiários desse programa foram contemplados com o auxílio emergencial. Destaque-se que o valor do Auxílio é bem superior ao valor do Bolsa Família. Outro aspecto relevante é que as famílias pertencentes à Associação receberam no período da pandemia cestas básicas de instituições e empresas como OAB-PR, RPC-Globo, Maristas, CLS Reciclagem, JBS e Trombini.
Integrantes da Associação Novo Amanhecer recebem cestas básicas e alimentos. (Foto: Edson Sanson)
Tendo em vista, portanto, o fato de que os catadores não pararam de realizar a atividade da catação de material reciclável, no máximo reduziram o tempo de saída às ruas, e no período mais crítico da pandemia receberam o Auxílio Emergencial e as cestas básicas, chega-se à conclusão que, do ponto de vista da alimentação e da renda a situação melhorou para os catadores. Nesse crítico período viram a renda aumentar como também aumentou a oferta de produtos alimentar.
As conclusões de que os catadores de material reciclável aumentaram a renda e melhoraram a dieta alimentar no período de extrema gravidade da Covid-19 que atingiu duramente o conjunto dos trabalhadores no país, são aparentemente surpreendentes. Uma análise, porém, mais cuidadosa e tendo presente o que já foi exposto anteriormente explica o porquê desses trabalhadores terem sido impactados de forma diferenciada em relação à maioria da população.
Como foi explicitado esses trabalhadores vivem no limite da exclusão social. São desempregados estruturais, ou seja, há muito tempo estão fora do mercado formal de trabalho e muitos nunca chegaram a sequer ter um emprego com vínculo empregatício. A renda auferida pelos trabalhadores da Associação em sua atividade mensal de catação de material reciclável é na ordem de 50% do salário mínimo que já é um salário baixo e insuficiente, ou seja, trata-se de uma renda que os coloca entre aqueles que vivem na extrema pobreza, considerando-se que o governo federal adota como medida de extrema pobreza renda domiciliar mensal per capita abaixo de R$ 89,00 por pessoa em valores de 2019.
Baixíssima renda, dieta alimentar nem sempre suficiente incluindo qualidade e quantidade de nutrientes, condições de moradia precária e esforço físico permanente fazem parte do cotidiano desses trabalhadores. Já vivem, portanto, numa situação excepcional quando se considera a realidade de outras categorias. A exclusão social é regra e não exceção na vida dessas pessoas.
Considerando-se que a crise sanitária instalada pela Covid-19 desestruturou sobretudo os estáveis, àqueles com emprego formal e o comércio em geral, a mesmo coisa não se sucedeu entre os catadores em função de que já vivem na excepcionalidade. Tendo em vista que não interromperam a sua atividade de catação e a essa renda foi acrescentada a renda do Auxílio Emergencial e o recebimento de cestas básicas é pertinente a conclusão que durante a pandemia da Covid-19 ao menos no que diz respeito à renda e alimentação, os catadores da referida Associação, se saíram bem melhor do que o conjunto dos trabalhadores brasileiros. A hipótese é de que o fator aumento de renda desses catadores e dessas catadoras tenha se reproduzido em outras regiões no país. Apenas um estudo mais amplo, porém, poderia evidenciar o fato.
1 - BRAGA, Ruy (2016). “A volta da barbárie? Desemprego, terceirização, precariedade e flexibilidade dos contratos e da jornada de trabalho”. Revista IHU On-Line, Edição 484. São Leopoldo: Unisinos, 02 maio. 2016, p. 50-54.