01 Outubro 2020
O nosso contexto cultural, social e eclesial atual certamente apresenta novos processos de definição da identidade de homens e mulheres, e novas necessidades pastorais e ecumênicas: a ponto de tornar necessária a pergunta sobre qual transformação possível se tornou hoje não só plausível, mas precisamente necessária para a Igreja.
Publicamos aqui a introdução ao livro “Le donne nel Nuovo Testamento e nella Chiesa” [As mulheres no Novo Testamento e na Igreja] (Bolonha: EDB, 2020), de autoria de Paolo Ricca, Cristina Simonelli e Rosanna Virgili.
A introdução foi escrita pelo teólogo italiano Brunetto Salvarani, professor da Faculdade Teológica da Emília-Romanha, que editou o livro.
O artigo foi publicado por Settimana News, 29-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Foto: Settimana News
Quem teve a sorte de conhecer o Pe. Pietro Lombardini, padre e biblista de Reggio Emilia, Itália, considera-o, com todo o direito, uma das inteligências mais vivas e originais do catolicismo pós-conciliar italiano. No entanto, o seu nome é ainda menos conhecido hoje do que o de outros que viveram um caminho eclesial e intelectual semelhante ao seu; até porque uma série de escolhas de vida, uma modéstia natural e – sempre considerei de minha parte – um respeito profundo pela página impressa não o impeliram a publicar nenhum livro com o seu nome.
Após a sua dolorosa e prematura morte, ocorrida em 2007, foram publicadas algumas coletâneas das suas intervenções dispersas, testemunhando uma competência rara e um olhar afiado, sobretudo sobre temas bíblicos e judaicos. Entre elas, há dois volumes dedicados ao tema da mulher, bem editados pelo Pe. Filippo Manini, que foi amigo de Lombardini, mas também discípulo, sobre a mulher na Bíblia e no cristianismo primitivo [1].
Mesmo que se trate de intervenções orais não elaborados para a publicação pelo autor, são textos preciosos para quem lida com temáticas semelhantes. Eles nos mostram como o Pe. Pietro é capaz de compor diferentes perspectivas de leitura, permitindo-nos encontrar autores e autoras diversos: do comentário tradicional à exegese histórico-crítica, da teologia à filosofia, até a literatura.
Foi esse o horizonte que levou a fundação que leva o seu nome a dedicar o terceiro congresso anual, hospedado, como os outros, por aquela Fundação San Carlo, em Modena [2], que o viu por muito tempo como responsável pelo Centro de Estudos Religiosos, à questão da mulher no Novo Testamento e na história das Igrejas.
O evento, realizado no dia 16 de novembro de 2019, contou com a participação de Rosanna Virgili, biblista, professora do Istituto Teologico Marchigiano, sobre “Silentes amantes e vozes narrantes”; Paolo Ricca, professor emérito da Faculdade Valdense de Roma, sobre “Mulheres e ministério cristão”; e Cristina Simonelli, teóloga, professora do Instituto Superior de Ciências Religiosas São Pedro Mártir, de Verona, sobre “As mulheres nas comunidades cristãs”.
O congresso, partindo do sentido das presenças femininas nos Evangelhos e em todo o Novo Testamento, repassou as passagens históricas mais significativas a esse respeito, para se concluir com uma série de aberturas que ainda aguardam, em grande parte, uma resposta factual na vida cotidiana das Igrejas.
De fato, o problema do lugar que cabe às mulheres na Igreja Católica tem se apresentado de uma forma cada vez mais frequente nos últimos tempos – do Sínodo sobre a Amazônia às duas comissões desejadas pelo Papa Francisco sobre a possibilidade de instituir diáconas –, e é possível imaginar que será cada vez mais levado em consideração em um futuro próximo [3].
Com efeito, é inevitável que a emancipação realizada pelas mulheres na sociedade civil tenha finalmente as suas repercussões no âmbito religioso. A legislação tem consagrado progressivamente a igualdade dos sexos: a conquista do direito ao voto e de uma cidadania plena, o desenvolvimento cultural, o acesso cada vez mais numeroso ao Ensino Superior, a multiplicação das tarefas profissionais exercidas pelas mulheres trazem à tona atitudes femininas que haviam sido ignoradas nos séculos anteriores.
Um panorama em andamento que nos força a nos perguntar se tais atitudes foram suficientemente apreciadas e utilizadas até agora nas Igrejas e se não se deve rever todo o ordenamento religioso da mulher. Na tradição judaica, diz-se que Deus reúne todas as lágrimas das mulheres; Paulo de Tarso, em uma das suas passagens mais inspiradas, proclama que, graças a Jesus, todas as diferenças desapareceram, inclusive entre o homem e a mulher.
Então, por que é tão difícil para os homens não entender, mas sentir que homem e mulher são a mesma coisa, uma dupla versão do único Adam, do único Terrestre?
Ao refletir sobre esses assuntos, lembro-me do parágrafo de um livro – publicado há mais de 40 anos – que, ainda hoje, não perdeu seu frescor original, intitulado “I nomi dimenticati di Dio”, “Os nomes esquecidos de Deus” [4].
Por “nomes esquecidos”, Letty Russell se refere àqueles em que Deus não é apresentado como homem, observando que, na realidade – refletindo sobre o próprio Senhor Deus –, o antigo Israel fez confluir sobre ele características tanto de divindades masculinas quanto de divindades femininas. Tratou-se, segundo ele, de uma operação teológico-cultural provavelmente inconsciente, mas também muito profunda.
Seguindo tal sugestão, creio que é lícito afirmar que – para responder ao chamado a ser uma “Igreja em reforma” que o Papa Francisco lançou desde a sua estreia como bispo de Roma (13-03-2013) – seria necessário recuperar os nomes muitas vezes esquecidos das mulheres.
Como há muito tempo defende uma teóloga sólida como Serena Noceti, que tivemos o prazer de acolher por ocasião da Lettura Lombardini do dia 8 de junho de 2019 em Reggio Emilia, sobre o tema “Mulheres, Igreja, Reformas”, “graças também ao reconhecimento da subjetividade ministerial das mulheres podem-se desdobrar modelos de Igreja capazes de futuro” [5].
Além disso, é sabido que a contribuição de palavras e de serviço que provém das mulheres, já hoje, qualifica e possibilita a vida das Igrejas em todo o mundo: uma palavra capaz de um pensamento teológico original, de competências nascidas da experiência e da vivência, de carga profética, reconhecidas com base no cotidiano das Igrejas.
Além disso, o estudo cada vez mais aprofundado dos modelos interpretativos do ministério ordenado que se sucederam na história poderia ajudar a delinear quais transformações são necessárias hoje nesse nível, no que diz respeito às figuras portadoras de tal ministério.
Ao longo dos séculos, sempre se conservou a razão teológica, mas mudaram as figuras; as mudanças no ministério, além disso, nunca parecem ser definidas por princípios, mas exigidas pelas transformações culturais e eclesiais que as Igrejas estavam enfrentando.
A história nos confronta com uma Igreja que teve e tem a possibilidade – e o dever – de remodelar as figuras ministeriais ordenadas, de acordo com o devir eclesial e as necessidades que vão surgindo, para se manter fiel, no devir da história humana, à sua apostolicidade fundante.
Uma mudança estrutural e de formas de exercício, portanto, é possível no plano teórico e poderá, às vezes, ser necessária por ser suscitada por novas exigências pastorais, em relação às quais se considere indispensável promover novas configurações das relações institucionalizadas na Igreja.
O nosso contexto cultural, social e eclesial atual certamente apresenta novos processos de definição da identidade de homens e mulheres, e novas necessidades pastorais e ecumênicas: a ponto de tornar necessária a pergunta sobre qual transformação possível se tornou hoje não só plausível, mas – precisamente – necessária para uma Igreja que vai se redescobrindo hoje, com uma consciência inédita, como “comunhão de homens e mulheres, um só em Cristo” (Gl 3, 28).
Parece-me, com efeito, que hoje estão superadas as lógicas de subordinação e de um androcentrismo indiscutível que acompanharam a interpretação das relações homem-mulher nas Igrejas por muitos séculos, ainda que o apelo à complementaridade entre masculino e feminino ainda continue sendo para muitos (e muitas) um ponto de referência para pensar a vida eclesial; enquanto, mesmo quando a expressão utilizada é reciprocidade, o modelo subjacente tende mais para a complementaridade de características psicológicas e atitudes humanas de um ou outro sexo do que para uma parceria efetiva, marcada pela corresponsabilidade e autonomia reconhecidas reciprocamente de homens e mulheres.
No entanto, ainda persiste um espesso muro de vidro que predetermina os campos de ação das mulheres, limitando a pouquíssimas delas o acesso a papéis e contextos decisórios. Veja-se bem: aqui não está em jogo uma reivindicação de poderes, mas sim uma imprescindível pergunta sobre a subjetividade de palavra que faz a Igreja, e é em particular a Igreja Católica que é chamada a aprender a se reconhecer, como qualquer outra instituição humana, no fato de ser estruturada de acordo com perspectivas de gênero [6].
De fato, é inegável que a liturgia, a catequese, a teologia [7], a organização eclesial como um todo ainda padecem de uma cultura fortemente patriarcal e androcêntrica: enquanto o masculino não é pensado, a presença das mulheres – sempre majoritária, apesar de tudo [8] – é o início indiscutível, enquanto as consequências da feminilização de alguns setores pastorais (pense-se, por exemplo, na catequese, mas não só) nunca são debatidas.
Em vista da desejada reforma acima mencionada, trata-se de encontrar a coragem para remodelar a linguagem, os critérios de avaliação e de ação, a abordagem às tradição e as formas rituais nas quais o corpo eclesial se expressa e se realiza. Até quando poderemos nos dar ao luxo de fazer de conta que nada acontece?
1. P. Lombardini, Figure femminili nella Bibbia, editado por F. Manini, Reggio Emilia: Edizioni San Lorenzo, 2009; Id., Le donne nel cristianesimo delle origini, editado por F. Manini, Reggio Emilia: Edizioni San Lorenzo, 2011.
2. Cf. B. Salvarani (org.), I Cristiani e le Scritture di Israele, Bolonha: EDB, 2018; Id. (org), Il Cristianesimo e l’idea di sacrificio, Bolonha: EDB, 2019.
3. Cf., por exemplo, C. Simonelli – M. Scimmi, Donne diacono? La posta in gioco, Pádua: EMP, 2016; e S. Noceti (org.), Diacone. Quale ministero per quale chiesa?, Bréscia: Queriniana, 2017.
4. L. M. Russell, Teologia femminista, Bréscia: Queriniana, 1977, 1992.
5. S. Noceti, «Nuovi ministeri per una riforma viva», in CredereOggi, n. 4 (2019), pp.75-76.
6. Ibid., pp.76-77.
7. Remeto ao valioso quadro oferecido sobre as teologias feministas por E. E. Green – C. Simonelli, Incontri. Memorie e prospettive della teologia femminista, Cinisello Balsamo: San Paolo, 2019.
8. Veja-se A. Matteo, La fuga delle quarantenni. Il difficile rapporto delle donne con la Chiesa, Soveria Mannelli: Rubbettino, 2012. Segundo o autor, já conhecido pela detalhada denúncia lançada no seu “La prima generazione incrédula” [A primeira geração incrédula] (Rubbettino, 2010), para a geração dos anos 1970 – as “quarentonas”, justamente – é muito difícil se reconhecer em uma Igreja cujo rosto público é “claramente ‘masculino’, senão até ‘episcopal’” (p. 73); um rosto que “custa a se medir com as mudanças reais do mundo e a ter uma percepção diferenciada [...] do novo papel e lugar que a mulher ocupa nas dinâmicas familiares e sociais” (ibid.).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As mulheres e uma Igreja capaz de futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU