25 Setembro 2020
"Resumido dessa forma, pareceria um processo contra Bergoglio. Não é. Francisco continua sendo, em muitos aspectos, um Pontífice excepcional. O livro é uma confirmação disso. O próprio Papa vai acabar lendo. E será interessante ver o que ele vai pensar a respeito", escreve Aldo Cazzullo, jornalista e escritor italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 23-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Bergoglio provou ser um mestre na desconstrução de uma Igreja já em crise, provavelmente menos hábil na construção de outra. E no plano do poder, por adversários, mas também por amigos, é apresentado com uma faceta privada que contrasta com aquela pública. Nos últimos anos, a longa teoria de ‘leigos’ e eclesiásticos promovidos e depois de repente tirados e sumidos atesta um governo do Vaticano feito de blitz e uma seleção da classe dirigente confiada a critérios às vezes misteriosos ... Estende-se sobre o papado a sombra de uma incompletude certamente não atribuível apenas a ele. ‘Este pontificado’, confidenciou-me um amigo de Bergoglio, ‘parece já ter dito tudo’. Trata-se de um juízo de encerramento e talvez exagerado, que a crise de época do coronavírus contradiz, pelo menos temporariamente. Mas, se assim fosse, no final o contragolpe poderia resultar tão negativa quanto e mais do que a renúncia de Bento XVI: como muitas vezes acontece quando as esperanças têm de fechar as contas com a desagradável impressão de ter perdido uma oportunidade histórica”.
L’enigma Bergoglio. La parabola di un papato
Massimo Franco entrevistou dezenas de amigos do Papa: cardeais, bispos, banqueiros, diplomatas, homens dos serviços de segurança. Ele obviamente também falou com os seus críticos. Também se encontrou com o próprio Papa. E com o seu antecessor Ratzinger. Disso tudo elaborou um livro indispensável para quem pretende entender este Pontífice e antecipar o que poderá acontecer à Igreja nos próximos anos (L’enigma Bergoglio. La parabola di un papato, O enigma Bergoglio. A parábola de um papado, em tradução livre, que a editora Solferino coloca à disposição amanhã nas livrarias). Massimo Franco não escreveu um livro contra o Papa, mas reconstruiu, com a precisão e a medida de análise que os leitores do Corriere conhecem, um quadro muito dificilmente contestável deste período de sete anos e dos que virão. Reconhecendo os grandes méritos de Bergoglio. Mas também mostrando seus limites; e os perigos que podem derivar disso. Vamos reconhecer isso: esperávamos mais de Francisco. Todos ficamos comovidos com as suas primeiras palavras: “Como gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres”. Todos ficamos impressionados com a mudança de estilo, com a escolha do nome, com os primeiros gestos; a começar pela opção de não morar no suntuoso apartamento apostólico, mas num cômodo da residência destinada aos cardeais do conclave. Mas, precisamente essa escolha, apreciada sobretudo pelos leigos, marcou tanto uma difícil relação com a Cúria como o início de um estilo de governo e de vida que expõe o Papa a mais de um risco.
“Francisco aboliu a Corte pontifícia para substituí-la pelo pátio da Casa Santa Marta” é a piada feroz que o autor ouviu. Em essência, os cardeais – que estudaram por décadas para estar onde estão – são alcançados, superados e substituídos por personagens às vezes improváveis. A corrida para ir ao refeitório com o Papa, para sentar-se com o Papa, para almoçar com o Papa quase havia se tornado uma modalidade esportiva, com cenas embaraçosas e irritantes a longo prazo. Depois, quando chegou a emergência Covid, inicialmente na Casa Santa Marta a dimensão do fenômeno não foi imediatamente compreendida, não foram tomadas imediatamente todas as precauções necessárias para garantir a segurança do Santo Padre. Massimo Franco, no entanto, lembra que a pandemia também marcou um relançamento de sua figura.
A imagem de Francisco sozinho em uma Praça São Pedro castigada pela chuva permanecerá na história do cristianismo. Em um momento de incerteza e fragilidade, o mundo não apenas católico recomeçou a olhar para a janela do Vaticano; e Francisco estava lá. Durante algumas semanas, Bergoglio voltou a ser o pastor da formidável estreia de seu pontificado: o grande comunicador, e também o primeiro líder planetário a perceber que “se as periferias não são integradas e governadas, tendem a devorar por dentro as sociedades, os direitos e a democracia". No entanto, isso não apagou seus erros. Ele não esclareceu alguns traços elusivos de seu caráter. Não dissipou as dúvidas sobre sua capacidade de governar.
Como escreve Massimo Franco, “de 2013 a 2020 Jorge Mario Bergoglio fez e desfez as conferências episcopais, os órgãos financeiros da Santa Sé, os vértices da Cúria. Ele nomeou novos cardeais em seis consistórios. Ele escolheu e demitiu bispos e banqueiros, chefes da Gendarmaria e funcionários simples. Cercou-se dos colaboradores e colaboradoras de sua preferência. A chuva de reformas e de comissões nascidas e desaparecidas em seus sete anos sugere, portanto, observar a epopeia do pontificado argentino com maior distanciamento”. O livro examina uma a uma as grandes questões que foram abertas nestes sete anos. A tendência de rebaixar qualquer crítica à calúnia, toda reserva a ataque pessoal. A presença constante em Santa Marta de prelados polêmicos e às vezes sob investigação por graves acusações em seus países.
O declínio da Igreja italiana (pela primeira vez na história, o patriarca de Veneza e os arcebispos de Turim, Gênova, Palermo e até mesmo Milão não são cardeais); como se ser italianos fosse quase um pecado. A relação com o Papa Emérito nem sempre é fácil. Os problemas de comunicação: Francisco fala muito, às vezes talvez demais, com "a perspectiva de que o verbo papal apareça inflacionado e, portanto, seja despotencializado e no final até ignorado". As desventuras do cardeal George Pell, chamado para trazer ordem com suas maneiras rápidas nas finanças do Vaticano. Infortúnios objetivos, como a nomeação da lobista Francesca Immacolata Chaouqui. O pastiche dos investimentos imobiliários em Londres.
A maneira repentina com que Bergoglio desautorizou os bispos italianos, que protestavam contra o governo Conte e a recusa em reabrir as igrejas nos dias em que a pandemia havia começado a diminuir. O mistério da viagem não realizada à Argentina. O relatório escrito em 1991 pelo superior dos Jesuítas, com considerações muito duras sobre o coirmão Bergoglio, ressurge justo agora.
E depois, principalmente, "a grande sombra chinesa", com um acordo cujos termos são desconhecidos, e "o fantasma de um cisma", evocado pelo embate tanto com os progressistas alemães como com os conservadores estadunidenses ("os estadunidenses me atacam? É uma honra"). Resumido dessa forma, pareceria um processo contra Bergoglio. Não é. Francisco continua sendo, em muitos aspectos, um Pontífice excepcional. O livro é uma confirmação disso. O próprio Papa vai acabar lendo. E será interessante ver o que ele vai pensar a respeito.
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Radiografia de um pontificado. Sucessos e acidentes de Bergoglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU