21 Setembro 2020
“Se alguém quiser argumentar em a favor de fratelli e fraternidade sendo inclusivos, talvez possamos dar uma olhada em outros documentos magisteriais e no Código de Direito Canônico. Que tal, para começar, considerarmos que 'homem' no Direito Canônico inclui mulheres? Isso seria interessante. O cânone 1024 diz: 'Somente um homem batizado recebe a sagrada ordenação validamente'”, escreve Phyllis Zagano, teóloga estadunidense, pesquisadora associada da Universidade Hofstra, em Hempstead, Nova York, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 21-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Esqueça o tema das lideranças femininas na Igreja. Você pensa que o Vaticano contrataria algumas mulheres para serem editoras?
O último embaraço: “Fratelli tutti”, o título da próxima encíclica papal significa em italiano “todos irmãos”. A assessoria do Vaticano diz que inclui mulheres.
Oh, eles dizem, o título vem dos escritos de São Francisco de Assis. Sim, certo. Exceto que as Admoestações de São Francisco foram escritas todas para seus colegas frades: “omnes fratres” ou, em italiano, “fratelli tutti”.
Agora, a assessoria do Vaticano defendeu o título e agravou o problema, apontando que o subtítulo da próxima encíclica é dedicado à “fraternidade” e “amizade social”.
Então, não só as mulheres são eliminadas pelo título, como nem sequer são consideradas no subtítulo.
Não é necessário um doutorado em linguística para apontar a diferença entre palavras que denotam homens e palavras que denotam mulheres. Nem requer um doutorado em psicologia para reconhecer o dano potencial, em muitas culturas e em muitas nações, de um importante documento papal que, aparentemente, elimina as mulheres.
Oh, dizem, as pessoas educadas podem entender que o Santo Padre nunca eliminaria as mulheres de seu trabalho. Certamente, você se lembra que ele se dirigiu a “irmãos e irmãs” quando saiu pela primeira vez na varanda após sua eleição como papa.
Sim, é claro que as pessoas instruídas podem entender que o Santo Padre nunca eliminaria as mulheres do pensamento ou da ação. Mas muitos no Vaticano podem ficar muito felizes com isso. Ninguém pensou em sugerir que as palavras nas Admoestações de São Francisco (de novo, dirigidas apenas aos seus frades) não incluem as mulheres?
Há dois problemas aqui:
1. Ninguém disse ao Santo Padre que “Fratelli tutti” era uma frase ruim antes de a encíclica ser aprovada e traduzida;
2. Ninguém parece estar dizendo ao Santo Padre que o próprio título põe em perigo as mulheres em todo o mundo.
Os lugares do mundo onde os níveis de educação e alfabetização são mais baixos - países da África e da Ásia e do Terceiro Mundo em geral – são os países onde as mulheres já estão em maior risco.
Em muitas culturas, as mulheres ainda são consideradas bens móveis, ainda estão sujeitas a estupros e assassinatos, ainda são forçadas a ir para cabanas menstruais, ainda são mortas na queima de noivas. Em muitas culturas, especialmente aquelas nos escalões econômicos superiores do mundo e nos círculos clericais da Igreja Católica, os homens ainda consideram as mulheres cabeças de vento e objetos sexuais.
Os riscos e perigos, para não falar dos repetidos abusos, desrespeito e desprezo das mulheres, continuam inabaláveis em todo o mundo.
A questão não é sobre “compreender” – como pede a assessoria do Vaticano – que a intenção de um documento chamado “Fratelli tutti” é sobre “fraternidade”. A questão é colocar as mulheres em perigo, agora com documentos do Vaticano.
Claro, podemos discutir interminavelmente sobre linguagem e gênero. Por exemplo, a bela “Querida Amazônia” de Francisco indica a igreja como “ela” nas traduções para o inglês e afirma que o Espírito Santo é “ele”. Os fios emaranhados aqui estão ligados ao fato de que o latim ecclesia é um substantivo feminino e spiritus é masculino. Mas inglês não é latim e não há necessidade de transportar o que parece ser uma afirmação subjetiva de gênero nas traduções para o inglês (Espírito em grego é neutro).
Se vamos nos restringir a trazer gênero para o inglês, então precisamos afirmar que “fratelli tutti” não inclui mulheres, nem “fraternidade”.
Não se pode ter as duas coisas, mas se alguém quiser argumentar em a favor de fratelli e fraternidade sendo inclusivos, talvez possamos dar uma olhada em outros documentos magisteriais e no Código de Direito Canônico.
Que tal, para começar, considerarmos que “homem” no Direito Canônico inclui mulheres? Isso seria interessante. O cânone 1024 diz: “Somente um homem batizado recebe a sagrada ordenação validamente”.
A assessoria do Vaticano insiste que “Fratelli tutti” de forma alguma pretende excluir as mulheres, isto é, mais da metade da raça humana.
Ok. Portanto, aqui estão duas sugestões:
1. Que tal a assessoria do Vaticano revisar todas as leis e todos os documentos e dizer ao mundo que onde quer que a referência seja obviamente masculina, a referência é realmente para homens e mulheres;
2. O Papa contrata algumas mulheres para ajudar a escrever e revisar seus documentos.
Muito mais está em jogo. Muitas mulheres estão sendo insultadas. Muitas vidas femininas estão em risco.
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“Fratelli tutti” não inclui as mulheres, e tampouco a “fraternidade”. Artigo de Phyllis Zagano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU