10 Setembro 2020
Uma nova polêmica surgiu em torno da tradução da próxima encíclica do Papa Francisco sobre a fraternidade humana.
A reportagem é de Elise Ann Allen, publicada por Crux, 09-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Fratelli tutti” tem sido traduzido literalmente do italiano como “Irmãos todos”, e alguns argumentam que a frase exclui as mulheres. No entanto, uma pessoa que trabalha na tradução de documentos vaticanos e papais disse que a escolha do título tem pouco a ver com as sensibilidades, mas é o resultado do protocolo vaticano padrão.
A pessoa não trabalhou na Fratelli tutti, mas está familiarizada com o processo de tradução de uma encíclica.
Falando ao Crux sob condição de anonimato, por não estar autorizado a falar com a imprensa, o tradutor vaticano disse: “O título está dentro de um contexto, não é como se você escrevesse algo e depois escolhesse o título do seu livro. Eles sempre usam as primeiras duas ou três palavras; três se for um artigo ou uma conjunção”.
Apontando para exemplos anteriores, essa pessoa citou a exortação Evangelii gaudium do Papa Francisco, de 2013, para textos do Concílio Vaticano II, como a Gaudium et spes e a Lumen gentium, e a encíclica de 2015 de Francisco sobre o ambiente, Laudato si', observando que, em cada caso, o título veio das primeiras palavras do documento.
“Eles não vão editar ou mudar essa prática”, disse a pessoa, acrescentando que, no contexto da nova encíclica Fratelli tutti, “é muito menos provável que eles mudem as palavras de Francisco de Assis”, que é o homônimo do Papa Francisco.
O que provavelmente acontecerá, disseram, é que “eles dirão que essas são as palavras de São Francisco de Assis, mas certamente não têm a menor intenção de ser antifeministas”.
Embora essa pessoa não tenha visto a versão em inglês da Fratelli tutti, ela disse que seu entendimento do documento “é exatamente o oposto, que se trata da solidariedade humana, e eu acho que vai ser uma continuação da Laudato si’”.
Foi anunciado no dia 5 de setembro que a nova encíclica seria assinada pelo Papa Francisco durante uma visita a Assis no dia 3 de outubro, véspera da festa do santo. A previsão é que a encíclica seja publicada nos dias imediatamente posteriores à assinatura do papa.
O título da encíclica aparece em uma passagem das “Admoestações” de São Francisco, no número seis, que diz: “Consideremos, irmãos todos, o Bom Pastor, que para salvar suas ovelhas sofreu a paixão da cruz” [Attendamus, omnes fratres, bonum pastorem, qui pro ovibus suis salvandis crucis sustinuit passionem].
“As ovelhas do Senhor seguiram-no na tribulação e perseguição, na vergonha e na fome, na enfermidade e na tentação e tudo o mais; e por isso receberam do Senhor a vida sempiterna”, continua a passagem. “Por isso, é grande vergonha para nós, servos de Deus, que os santos fizeram as obras, e nós, lendo-as, queremos receber glória e honra.”
Imediatamente após o anúncio, surgiu uma polêmica entre certas alas da Igreja que argumentaram que o título “Irmãos todos” era excludente, apontando-o como mais um exemplo da atitude misógina da Igreja Católica em relação às mulheres.
No entanto, em relação ao fato de essa frase ter sido escolhida como o título de um documento papal, o tradutor vaticano disse que, ao olhar para o texto original italiano das admoestações de Francisco de Assis, “naquele contexto, é claro que Francisco está falando dos frades menores como um microcosmos da Igreja”.
O tradutor observou que, em italiano, a palavra plural “fratelli” é “inclusiva” e se refere tanto aos “irmãos” quanto às “irmãs”. No entanto, o tradutor também observou que se tornou uma prática comum para o papa saudar os peregrinos dizendo: “Cari fratelli e sorelle”, ou seja, “caros irmãos e irmãs”, o que significa que ele entende a sensibilidade subjacente.
No contexto da citação da encíclica, a pessoa disse que o aspecto crucial na tradução da frase vem do seu contexto, e, nesse caso, São Francisco estava falando com seus irmãos frades.
“Há outros documentos em que Francisco se dirige tanto aos frades quanto às freiras, mas, neste em específico, ele está apenas advertindo os homens. É algo como: ‘É assim que vocês deverão viver quando eu morrer’”, disse.
A pessoa também observou que também é uma prática comum usar traduções pré-existentes ao traduzir citações, em vez de propor uma versão original.
“É um uso arcaico” da frase, disse essa pessoa, “mas, como o Santo Padre fez durante todo o seu pontificado, é claro que ele se refere tanto aos homens quanto às mulheres”.
Citando a Laudato si’ como exemplo, essa pessoa observou que a primeira frase da versão em inglês começava com a frase italiana “Laudato si’, mi Signore”, e só depois a frase traduzida “Louvado sejas, meu Senhor”.
“Meu palpite é que eles vão citar corretamente o documento, e a minha esperança é de que haja uma nota de rodapé dizendo que esse é o contexto. Provavelmente haverá uma nota”, disse a pessoa, acrescentando: “Não acho que eles vão mudar as palavras de São Francisco de Assis (...) Eles não vão mudar as palavras de um santo”.
Independentemente do que aconteça, “eles não deixarão que os irmãos e as irmãs se separem”, disse a pessoa, observando que há um extenso processo de avaliação de documentos de alto perfil como uma encíclica, o que significa que, se houver algo em um tradução que possa ser potencialmente problemático, isso será detectado.
“Existem padrões diferentes para coisas diferentes no Vaticano. Alguns deles são levados cuidadosamente em consideração, como uma encíclica, porque é o nível mais alto, e eles são muito, muito cuidadosos”, disse a pessoa, observando que tanto a Secretaria de Estado do Vaticano quanto a renomada Congregação para a Doutrina da Fé vão olhar as traduções antes de elas serem publicadas.
Essa pessoa disse que, quando solicitados a fazer traduções, eles normalmente formam uma comissão designada para a tarefa, o que significa que vários tradutores trabalham em partes diferentes do documento, para evitar vazamentos e também para agilizar o processo. Depois, alguém lê a versão final para garantir a coesão.
As pessoas solicitadas a fazer as traduções “geralmente têm alguma sofisticação teológica”, disse a pessoa, referindo-se ao fato de que os tradutores geralmente concluíram pelo menos a graduação em teologia e também são fluentes em italiano, assim como no idioma para o qual estão traduzindo.
Um aspecto importante das encíclicas do Papa Francisco, segundo essa pessoa, é que, embora a maioria dos documentos papais sejam intitulados em latim, as encíclicas do papa até agora foram todas intituladas em italiano, exceto a primeira, Lumen fidei, publicada em 2013, mas que era um projeto do Papa Emérito Bento XVI que Francisco concluiu após a renúncia do seu antecessor.
Em vez da questão da inclusão e das mulheres, a questão muito mais interessante em relação a essa encíclica, segundo essa pessoa, é a razão pela qual o Papa Francisco tomou a decisão de também a intitular com uma citação de São Francisco de Assis, e por que ele optou em manter os títulos em italiano, ao invés do latim: “Laudato si’” vem da oração do “Cântico do Sol” do santo, e “Fratelli tutti”, das suas Admoestações.
O Papa Francisco, disse essa pessoa, está “claramente ligando essas duas coisas, e isso é muito importante”.
Apontando para o fato de que a Laudato si’ e a Fratelli tutti são encíclicas sociais, essa pessoa disse que outra questão sobre a tradução delas é se a prática de traduzir encíclicas sociais, que são dirigidas ao mundo exterior, para o italiano, em vez de para o latim, se tornará um novo padrão daqui para a frente.
Voltando ao debate atual sobre o título da Fratelli tutti e a sua potencial tradução para o inglês, o tradutor insistiu que “a ideia de que o título pretende ser provocativo não tem fundamento”.
“Olhe para a Laudato si’ como um exemplo de como isso será feito, e provavelmente não haverá nada lá que seja misógino”, disse a pessoa, acrescentando: “Há boas pessoas que viram o texto e vão se certificar de que não se trata disso. Francisco nomeou algumas mulheres teólogas incríveis para a Congregação para a Doutrina da Fé, então alguém vai ver isso e, se for um problema, vai dizer para não seguir em frente”.
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“Irmãos todos”: uma encíclica “antifeminista”? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU