Por: João Vitor Santos | 16 Setembro 2016
O ensino social é o conjunto dos ensinamentos organizados a partir de uma série de documentos magisteriais da Igreja Católica. É a partir do final do século XIX, na emergência da sociedade industrial, que o papa Leão XIII sente a urgência dos novos tempos e a importância de se entender essas “coisas novas”. Com sua encíclica Rerum Novarum, inaugura esse movimento da Igreja em compreender o mundo social em que está inserida. Desde então, inúmeros documentos são publicados em diversos pontificados com esse intuito de conectar o mundo católico às questões sociais de todo planeta. É nessa perspectiva que o papa Francisco publica, em 2015, a encíclica Laudato Si’. Para Gaël Giraud, economista e jesuíta, esse texto apostólico não só atualiza o ensino social para católicos que querem compreender as emergências do século XXI. Ele fala e inspira a todos dispostos a olhar com mais atenção o estado de crises sociais, econômicas e políticas em que o mundo parece mergulhado. “Por isso digo que é importante ver a encíclica fora, além do contexto eclesial. Ela repercute e é acolhida em toda a comunidade internacional”, analisa Giraud.
Na manhã de quinta-feira, 15-09, numa promoção do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o economista analisou em que medida Bergoglio atualiza esse ensino social da Igreja e o que esses movimentos trazem de novo através da conferência “O Ensino Social da Igreja à luz do pontificado do Papa Francisco”. Segundo Giraud, não é novidade um documento apostólico falar não somente para católicos e dentro do contexto clerical. João XXIII, em 1961, na Mater et magistral, e Paulo VI, em Populorum Progressio, de 1967, já se dirigiram a “todos os homens de boa vontade”. “O que acho novidade é o momento político em que Francisco se dirige a todo ser humano. Na França, por exemplo, muitas pessoas dizem que não votam por descrédito nos políticos. Mas, se tivesse algum político com a lucidez que o papa tem em Laudato Si’, votariam nele”, destaca.
Não é à toa que o documento é publicado antes da realização de uma série de fóruns que tem como pauta central o desequilíbrio climático, entre eles a COP 21. Isso, na opinião de Giraud, faz com que muitos setores da comunidade internacional recebam a Laudato como a contribuição da Igreja Católica acerca do debate sobre aquecimento global. “E assim, as instituições religiosas assumem um papel nesse debate de âmbito internacional. É a primeira vez que isso ocorre. Outras, mais tarde, seguem esse caminho aberto pela Igreja. Antes, Banco Mundial, Organização das Nações Unidas, entre outras organizações internacionais, achavam que as instituições religiosas não tinham muito o que falar”, pontua.
Francisco demonstra ao longo do documento que as mudanças climáticas dizem respeitos a todos os seres vivos do planeta. Ou seja, todos sofrerão as consequências do desequilíbrio ambiental causado pelo aquecimento global. Logo, é de responsabilidade de todos pensar em saídas e alternativas para minimizar os efeitos ou até frear o aquecimento. “Quando ele fala na eminência de um desastre, não é exagero”, pontua Giraud. Assim, a mudança de hábitos é necessária, pois a situação em que se está é fruto de como o ser humano vem se relacionando o planeta.
Nessa relação, Francisco questiona pontos como o consumismo, o tecnocentrismo e o antropocentrismo que põem o ser humano como um senhor que expropria os recursos naturais em nome de suas necessidades, do desenvolvimento, etc. É a denúncia que o papa faz ao estilo de vida consumista e produtivista. “E instituições internacionais, entre elas o Banco Mundial, e tudo que representa em termos de liberalismo, são bem mais diplomáticos nas previsões sobre os efeitos do desequilíbrio do clima. Ainda assim, acolhem bem as críticas de Francisco”.
Giraud analisa como, nesses movimentos, o pontífice traz valor as questões locais. Até então, acordos climáticos eram assunto de países desenvolvidos que traçavam metas a serem cumpridas por países sub ou em desenvolvimento. A comunidade internacional cria uma espécie de relação intrínseca entre as metas para desenvolvimento, onde todos são chamados a pensar em metas e ações a serem realizadas. “Assim, nesse contexto que surge na Encíclica a ideia de crise sistêmica e a necessidade de ações globais para enfrentá-la”, pontua. “É interessante observar como a Igreja acaba assim assumindo a vanguarda e sendo seguida por toda comunidade internacional em pontos que nem a comunidade internacional tinha a ousadia de tocar”, completa.
Giraud: "É importante ver a encíclica além do contexto eclesial. Ela repercute e é acolhida em toda a comunidade internacional” (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Gaël Giraud entende que esse movimento leva a Igreja para uma posição de vanguarda, fazendo o que ele chama de denúncia da financeirização. Para o economista, a questão de fundo trazida por Francisco é a lógica financeirista que passa a expropriar bens comuns. “Essa denúncia que o papa faz sobre a financeirização não se encontra em nenhum outro documento das instituições internacionais”, destaca, ao lembrar que isso, em Francisco, tem relação com a ideia que faz de povo. O economista ainda lembra que a comunidade internacional tem a “cabeça na classe média urbana ocidental”. É assim que observam o pobre. Logo, esse pobre precisa receber dinheiro para passar a consumir e ser como essa classe médica burguesa urbana ocidental. “E Francisco consegue entender o pobre com suas necessidades locais e não a partir da cabeça burguesa ocidental. Assim, o pobre é visto como potencial agente de transformação. É a Teologia do Povo”.
Porém, tanta repercussão e ambiente de vanguarda fora da Igreja não assegura unanimidade no ambiente clerical. Há, inevitavelmente, narizes torcidos, entendimentos de que a Igreja deveria falar mais em questões de religiosidade e fé e muito menos em críticas aos sistemas de produção, econômico-sociais. “Na França, essas resistências se dão especialmente por católicos conservadores que atuam no mercado”, revela o economista. Essas resistências, recorda Giraud, emergem ainda quando o cardeal Peter Turkson, no âmbito do Pontifício Conselho Justiça e Paz, no Vaticano, levanta a discussão sobre a necessidade de diminuir o protagonismo dos bancos. “E falava, inclusive, da necessidade de se pensar em impostos sobre transações financeiras”. Turkson teve de lidar com duras reações, sendo chamado a se deter mais em questões de fé e religiosidade e menos nessas outras questões. “Ele foi sufocado, colocaram como que sua cabeça num balde para que não falasse nisso”, recorda o economista.
Gaël Giraud destaca como impressionante o fato de que Francisco agora, então, fala exatamente daquilo que o cardeal Turkson foi tolhido. “Há muitas resistências ao papa, mas é importante observar como ele diz aquilo que o cardeal não pode dizer”, reitera. Mas como consegue isso em meio às resistências? E mais: como ainda consegue extrapolar com suas perspectivas para além dos muros da Igreja? É da resposta que o economista da a um questionamento da plateia que Giraud indica uma chave de leitura. “Se o papa é um animal político? Sim, mas não como os políticos que temos referência. É muito mais como os profetas do antigo Testamento ou como o próprio Cristo”, diz.
O que quer chamar atenção é para os atos políticos de Bergoglio, que inferem e provocam muito mais do que qualquer discurso político. Giraud lembra o fato de, na ida a Israel, o papa ter se posto a orar em silêncio no muro que divide judeus e palestinos. “Ele não fala nada, mas se percebe aí um grande ato político. Isso é o mesmo que faziam os antigos profetas e o próprio Jesus quando expulsou os comerciantes do templo”, explica. Assim, são atos que o fazem se colocar no contato direto com o outro e todo juntos numa mesma perspectiva que busca o equilíbrio entre humanos e o planeta. Da conferência com Giraud, fica a todos o desafio para pensar na provocação que Francisco faz em sua encíclica, já que não apenas se preocupa em atualizar o ensino social da Igreja aos católicos e sim pensar uma outra humanidade capaz de relacionar todas as formas de vida numa sistema harmônico, equilibrado, capaz de subverter as crises sistêmicas.
Giraud: "“Se o papa é um animal político? Sim, mas não como os políticos que temos referência". (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Jesuíta, pesquisador em economia do CNRS, membro do conselho científico do Laboratório sobre a regulação financeira e do Observatório Europeu Finance Watch, Gaël Giraud é também docente no Centre Sèvres e membro do conselho científico da Fundação Nicolas Hulot para natureza e o homem. É graduado pela Ecole Nationale de la Statistique et de l’Administration Economique - ENSAE e pela Ecole Normale Supérieure. Realizou mestrado em Modelagem e Métodos Matemáticos en Economia, Ecole Polytechnique/University Paris-1.
Atualmente é professor de l’Ecole Nationale des Ponts et Chaussées, em Paris. Também é economista chefe da Agência Francesa de Desenvolvimento, a l’Agence Française de Développement, e diretor da “Chaire Energie et Prosperité” (Ecole Normale Supérieure, Ecole Polytechnique, ENSAE).
Atua, ainda, como diretor de pesquisa no Centro Nacional de Investigaciones Científicas.
Dentre inúmeros textos já publicados chamamos atenção para as obras Vingt propositions pour réformer le capitalisme, codirigido com Cécile Renouard (Flammarion, 2012), e Le facteur 12 (Carnets Nord, 2012) e, em português, o livro Ilusão Financeira. Dos subprimes à transição ecológica (São Paulo, Loyola, 2015).
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A Laudato Si' e o Ensino Social da Igreja. Impactos e desafios para o mundo contemporâneo, segundo um economista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU