31 Agosto 2020
Jeffrey Sachs é um dos economistas mais conceituados do mundo. Atualmente, é o diretor da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, bem como uma autoridade global em questões de pobreza.
Talvez não haja um único período na história em que a discussão dessas questões não tenha sido uma prioridade. E, ao mesmo tempo, poucos outros momentos exigiram enfocar esses tópicos com tanta urgência como o do mundo da pandemia que habitamos.
A entrevista é de Óscar Gamboa Zúñiga, publicada por El Espectador, 22-08-2020. A tradução é do Cepat.
Mesmo antes da pandemia da Covid-19, o mundo experimentava níveis preocupantes de pobreza. Em quanto é possível aumentar esse indicador agora?
A pobreza aumentará em centenas de milhões de pessoas por causa da Covid-19. E não apenas a pobreza, mas também a fome e as doenças não virais. Já existe uma perda massiva de empregos, remessas, falências, cortes no orçamento, dívidas incobráveis e muitas outras consequências da profunda crise. Ao mesmo tempo, a super-riqueza no setor de tecnologia e em alguns outros está crescendo espetacularmente. O Sr. Jeffrey Bezos, proprietário da Amazon, experimentou um aumento na riqueza pessoal, em 2020, de 80 bilhões de dólares.
Passaram-se 15 anos desde a publicação de seu livro “O fim da pobreza” e a meta proposta de eliminar a pobreza extrema até 2025 não parece mais alcançável. O que aconteceu?
O livro estava correto. Com a solidariedade global, com os ricos ajudando os pobres, facilmente existem os recursos e tecnologia suficientes para acabar com a pobreza extrema. Não contava com o incrível egoísmo dos Estados Unidos, especialmente sob Trump, mas também em geral. A ajuda dos Estados Unidos para desenvolvimento é de apenas 0,16% do PIB. Isso é um quarto da meta recomendada. Os Estados Unidos, com o que tinham a contribuir, ficaram aquém em cerca de 100 bilhões de dólares por ano. Trump representa a porção branca e supremacista da sociedade americana. Talvez seja 25% dessa população, mas a maioria é do Partido Republicano.
Vimos muitas críticas ao ‘Milenium Villages Project’ (MVP), implementado em 14 aldeias, em 10 países na África Subsaariana. Se pudesse estruturar este projeto novamente, faria algo diferente?
O Projeto Millennium Villages foi um grande sucesso. Mostrou como avançar a um custo muito baixo para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
Suas propostas foram criticadas porque se baseiam fundamentalmente na ajuda internacional ao desenvolvimento. Seus oponentes dizem que os planos de países em desenvolvimento não devem ser formulados a partir de escrivaninhas em Nova York ou Washington, já que o desenvolvimento é uma questão complexa, sempre local e comunitária, ou seja, cada país deve encontrar seu próprio caminho partindo da idiossincrasia, cultura e valores locais. Como responde a essa crítica?
Acredito na solidariedade global. Se os ricos estão nos Estados Unidos, Europa e China, é cruel dizer aos pobres da África, Ásia e América Latina que resolvam seus próprios problemas. Claro, as soluções devem ser adaptadas localmente, mas o financiamento deve ser global. Sim, sou criticado por esse ponto de vista. Mais uma vez, critico meu próprio país por seu notável egoísmo para com o resto do mundo.
Acredita que a pandemia e seu devastador impacto social e econômico podem ser o início de uma nova ordem mundial, uma nova consciência em que a sustentabilidade ambiental e social supera a ganância e a concentração de riqueza?
Sim, os super-ricos devem ser tributados e os lucros devem ser compartilhados globalmente, não apenas dentro do país onde os impostos são pagos. Trump é o protetor dos super-ricos. É um demagogo corrupto. O primeiro passo é destituí-lo do cargo nas eleições de novembro.
Acredita que a quarentena que muitos países passaram contribuiu para a resiliência de muitos ecossistemas?
A crise atual não está salvando o meio ambiente. Em muitos países, como Brasil e Estados Unidos, regimes corruptos estão usando a crise para desregulamentar o meio ambiente e até mesmo acelerar a destruição ambiental. Vamos salvá-lo por meio de uma ação coletiva, não como um efeito colateral de uma pandemia horrível.
Acredita que as expectativas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) devem ser ajustadas, em razão da pandemia?
As instituições globais devem se ajustar. Precisamos de mais solidariedade internacional, mais alívio da dívida, mais impostos sobre os ricos e o setor corporativo. Devemos também adicionar o ODS 18, Acesso Universal às Tecnologias Digitais, para garantir que todas as famílias e comunidades possam colher os benefícios da Internet e do comércio, saúde, educação eletrônica e outras tecnologias digitais.
Acredita que os ODS relacionados à transformação da sociedade permitem alcançar os outros?
Precisamos de seis transformações principais: Educação para Todos, Saúde para Todos, Energia Limpa, Uso Sustentável da Terra, Cidades Sustentáveis e Acesso Digital para Todos.
Na América Latina, 30% dos habitantes vivem em condições de pobreza, ou seja, cerca de 190 milhões de pessoas. Estima-se que a pobreza aumentará de 8 a 10%, como consequência da pandemia. Quais seriam suas principais recomendações?
A região está em uma crise massiva. Há uma enorme desigualdade e, portanto, enormes divisões na sociedade de acordo com a classe e a etnia. A qualidade educacional é baixa. A região está atrasada em tecnologia, incluindo tecnologias digitais. Depende muito de combustíveis fósseis. E é muito malgovernada em alguns países, como o Brasil. Tudo isso requer uma ampla revisão em torno dos pilares das seis transformações que acabei de mencionar.
Na Colômbia, os municípios com maioria da população afro concentram os maiores níveis de pobreza e desigualdade. O que recomendaria a esses governos locais?
Deveriam desenvolver uma estratégia de subsistência sustentável, baseada em energias renováveis (solar e eólica), educação para todas as crianças, produção de alimentos nutritivos, acesso digital para todos e segurança física para todos. É um mandato de alta dimensão, estou de acordo. Mas não vejo outra maneira.
E ao Governo Nacional?
Todo governo deve considerar como prioridade máxima a eliminação da epidemia de Covid-19. Isso significa priorizar as medidas de saúde pública (máscaras, rastreamento de contatos, testes, distanciamento físico, proibição de grandes eventos) até a chegada de uma vacina, em 2021 ou mais tarde. Todo governo deve monitorar e responder às crises humanitárias decorrentes da pandemia, incluindo a pobreza de renda, a fome e os problemas de saúde mental. Os governos devem fazer esforços urgentes para expandir o acesso às tecnologias digitais, incluindo educação e administração eletrônica (como os pagamentos por transferências) e a e-saúde (como telemedicina), como respostas-chave para enfrentar a Covid-19.
E os empresários e o setor privado em geral?
As empresas devem determinar como sobreviver à pandemia, incluindo:
(1) trabalhar em casa;
(2) locais de trabalho seguros;
(3) novos modelos de negócios mistos que combinem atividades online e no local de trabalho e
(4) cadeias de fornecimentos resistentes.
Como corrigir injustiças contra grupos étnicos?
A chave é o acesso universal aos serviços básicos, incluindo saúde, educação, lazer, etc. Isso exige que os governos mobilizem mais receitas e forneçam mais serviços. Esse é o caminho da social-democracia, o modelo econômico mais eficaz do mundo atual.
Atendem a esse propósito as ações afirmativas?
O importante é o acesso universal a serviços de qualidade, com atenção especial para eliminar a discriminação e ajudar a superar as sequelas da injustiça. Por exemplo, programas de desenvolvimento da primeira infância, educação de qualidade para todos e apoio familiar para grupos de baixa renda.
Alcançar os ODS depende em grande medida da implementação. Como coordenar a participação de tantos atores interessados?
Os ODS exigem um melhor planejamento que integre, em um prazo de 10 anos, as necessidades de investimento público e privado com métodos de financiamento. Mas não é suficiente expressar apoio aos ODS. Para alcançá-los, é necessário um plano, por meio de um projeto de investimento detalhado, específico e financiado.
O que considera que deveria estar presente em um plano de recuperação econômica da Colômbia para irradiar setores historicamente excluídos?
A Colômbia e o resto da América do Sul precisam de um novo modelo econômico baseado na diversificação da economia por meio de melhores tecnologias, melhor educação para todos, energia renovável, uso sustentável da terra e um sistema de arrecadação de impostos e renda com os quais o Governo possa apoiar investimentos públicos, incluindo serviços. Isso exigirá políticas consistentes ao longo de uma geração. Eu sei que não será fácil.
Acredita-se que ter um litoral é uma condição vantajosa para promover o desenvolvimento, mas no mapa social mais deprimido da Colômbia confluem a população afro-colombiana e a localização nas regiões litorâneas de dois oceanos. O que pode estar acontecendo?
A Colômbia deve rever sua geografia na perspectiva do turismo, energias renováveis (eólica e solar), serviços portuários e outras indústrias potenciais (saúde, educação, etc.). O governo central e os governos locais devem identificar as prioridades de infraestrutura (como 5G, eletrificação, energia renovável, aeroportos, estradas, ferrovias...) que podem ser estratégicas para o desenvolvimento regional.
Visto que na Colômbia as regiões habitadas pela população afrodescendente combinam pobreza, desigualdade, vulnerabilidade e o impacto no meio ambiente, poderiam esses municípios agrupados na Amunafro [Associação Nacional de Prefeitos de Municípios com População Afrodescendente] ser um laboratório para implementar novas estratégias frente aos ODS?
O fundamental dos ODS é planejar com antecedência e investir de maneira prospectiva. A Amunafro pode ajudar a desenvolver estratégias inovadoras para alcançar os principais ODS, incluindo agricultura sustentável, acesso à saúde e educação, o uso de tecnologias digitais e a promoção de novos setores da economia. A Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (SDSN), que lidero em nome da Organização das Nações Unidas, pode trabalhar com a Amunafro nessas estratégias.
O narcotráfico é a causa de graves problemas em países como a Colômbia, como gangues criminosas irregulares, guerrilhas, corrupção, perda de valores em países como a Colômbia. Acredita que é o momento de regulamentar/descriminalizar o consumo e a distribuição de drogas como a maconha e a cocaína?
Grande parte do problema vem da demanda dos Estados Unidos e da militarização da guerra contra as drogas, que foi um terrível fracasso em muitos aspectos. Não existem respostas fáceis, mas definitivamente precisamos de uma estratégia nova e mais criativa. Os Estados Unidos devem reconhecer suas falhas fundamentais a esse respeito e se oferecer para trabalhar de maneira construtiva com a região em uma nova abordagem. Primeiro, devemos ter um novo presidente, e espero que Trump seja derrotado em novembro.
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“Os super-ricos devem ser tributados e os lucros devem ser compartilhados globalmente”. Entrevista com Jeffrey Sachs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU