10 Julho 2020
"O presidente López Obrador, assim como o presidente americano, recusa-se a usar máscara e começou a viajar pelo país novamente. Ele manteve a realização de seus comícios em março, período em que o coronavírus começava a invadir o México: eventos cheios de cumprimentos e poses para selfies. O seu assessor na área da saúde, Hugo-López Gatell, disse que López Obrador esteve seguro nessas viagens: “A força do presidente é moral, não é uma força de contágio”, escreve David Agren, jornalista, cobre o México desde 2005 para o Catholic News Service e outras publicações como os jornais The Guardian e USA Today e a revista Maclean, em artigo publicado por America, 08-07-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em uma coletiva de imprensa concedida no mês passado em Chiapas – a quarta escala em uma excursão por sete cidades no sudeste do país –, perguntaram ao presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador sobre como ele se mantém seguro durante a pandemia de coronavírus. AMLO, como é conhecido popularmente, disse que praticava o distanciamento social, lavava as mãos e evitava comer junk food. Ele então aconselhou o país a “nos aquietarmos em nossas consciências. Não mentir, não roubar, não trapacear. Isso ajuda muito, assim não espalhamos o coronavírus”.
O presidente, que na última quarta-feira esteve reunido com Donald Trump em Washington, fez da moral e da “remoralização da vida pública” temas de sua presidência. Ele assumiu o poder há dois anos prometendo conter a corrupção, diminuir a desigualdade e colocar os pobres em primeiro lugar. Ele também promoveu a publicação de um guia de cidadania e valores conhecido como “Cartilla Moral”; mais tarde, conseguiu que as congregações evangélicas protestantes distribuíssem-na. Ele chegou a prometer publicar uma “constituição moral”, prescrevendo princípios que deveriam guiar a nação.
O presidente mexicano fez da moralidade em um pilar de sua resposta à pandemia, enfatizando uma vida limpa e a retidão moral em discursos frequentes à nação. Ele também fez da moralidade a base de suas frequentes respostas aos opositores: zomba dos críticos – que consideram sua resposta à pandemia como barata e inepta – como perdedores magoados, raivosos por não poderem mais continuar tecendo as suas críticas fajutas. “São pessoas moralmente derrotadas”, diz ele sobre os oponentes.
A resposta de López Obrador à pandemia inclui conversas diárias, a começar com uma coletiva de imprensa de duas horas de duração pelas manhãs, enquanto as autoridades de saúde e outros funcionários do governo conversam por três horas às noites. O presidente gosta de apontar as suas esperanças: “Temos visto a luz no fim do túnel”, disse ele em maio. “Conseguimos achatar a curva”, acrescentou, mesmo com o número de mortos no México subindo rapidamente.
Esta sua resposta moral também inclui sermões. López Obrador cita as Escrituras, usa panfletos com orações e cita o Papa Francisco. Analistas mexicanos se perguntam se é um pastor ou um presidente quem está à frente do país durante esta crise de covid-19.
“Com esses princípios morais, ele nos empresta uma certa força. Mas o que López Obrador não tem dado ao país é um discurso de enfrentamento a essa situação que é precária; ele não nos diz para onde a atual pandemia nos levará”, diz Ilán Semo, historiador da Universidade Ibero-Americana, na Cidade do México, instituição jesuíta.
“Preencher esse vazio com princípios morais e pregação é bom para um pastor, mas não para um presidente”.
A crise de covid-19 atingiu em cheio o México. O país já registra mais de 32 mil mortes e mais de 268 mil casos de coronavírus. Recentemente, passou a Espanha e a França em fatalidades totais e está se aproximando da Itália.
A resposta à crise de parte do México vem sendo comparada com a resposta dada pelos Estados Unidos por causa do seu atraso e pela maneira como o presidente parece colocar a política e a economia à frente da ciência. Mas, diferentemente dos Estados Unidos, que intensificaram os esforços os quais, segundo muitos dizem, permanecem insuficientes, as testagens de coronavírus no México têm ficado aquém: até 6 de julho, apenas 560 mil testes foram realizados em um país de quase 130 milhões de habitantes. Esse número é 65 vezes maior nos Estados Unidos.
O presidente López Obrador, assim como o presidente americano, recusa-se a usar máscara e começou a viajar pelo país novamente. Ele manteve a realização de seus comícios em março, período em que o coronavírus começava a invadir o México: eventos cheios de cumprimentos e poses para selfies. O seu assessor na área da saúde, Hugo-López Gatell, disse que López Obrador esteve seguro nessas viagens: “A força do presidente é moral, não é uma força de contágio”.
Analistas mexicanos não sabem explicar a abordagem do presidente dada à pandemia, embora a maioria cite o seu ceticismo quanto à ciência e ao assessoramento técnico como fatores importantes, juntamente com o apreço do presidente pela piedade popular. Em entrevista coletiva em março, o presidente apresentou um par de imagens do Sagrado Coração de Jesus, figuras que ele chamou de guarda-costas.
“Pare, inimigo, o Coração de Jesus está comigo”, disse, lendo a breve oração inscrita em uma das imagens.
A invocação do Sagrado Coração de Jesus foi um apelo inconfundível aos pobres e desprotegidos: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus tem raízes profundas no México. Essa invocação falou também a uma população acostumada a ficar abandonada em tempos de crise.
“É a fé de um povo que sabe que o Estado não pode protegê-lo”, diz Bernardo Barranco, analista e comentarista mexicano de assuntos religiosos. “É uma população que foi excluída, que sobreviveu a inundações, secas, terremotos, que sobreviveu à corrupção e ao crime organizado, e cujo único apoio que tem é a fé na proteção divina. É algo que López Obrador sabe muito bem”.
De fato, as mensagens do presidente geralmente trazem mais fé do que obras, ou pelo menos mais autoajuda do que qualquer outra coisa. Ele emitiu um “Decálogo para a superação do coronavírus e o enfrentamento da nova realidade”, que pede que os mexicanos adotem atitudes positivas, que comam coisas saudáveis – “milho, feijão e legumes” – e abandonem vícios como consumismo, racismo e egoísmo.
O 10º ponto do decálogo diz: “Se você tem religião ou não, seja crente ou não, busque por um caminho de espiritualidade, um ideal, uma utopia, um sonho, um propósito na vida – algo que o fortaleça interiormente, na sua autoestima e que o mantenha ativo, animado, feliz, na luta, trabalhando e amando os que estão perto de você”.
Os críticos perceberam semelhanças deste decálogo com instruções elaboradas por um instrutor de ioga. Mas, combinado com o discurso quase religioso do presidente, o texto envia uma mensagem sutil: tomem cuidado, vocês estão por sua conta.
“Certamente, ele deve ser uma voz de esperança quando as coisas ficam feias, mas o presidente vai longe demais nesse sentido. Acaba sendo uma abordagem voluntarista, e isso é perigoso”, disse Rodolfo Soriano-Núñez, sociólogo que estuda o catolicismo mexicano.
Soriano-Núñez compara a resposta dada pelo presidente à pandemia àquela de São João Bosco, que aconselhava evitar o pecado e rezar mais durante um surto de cólera. “No século XIX, era fácil recorrer a Deus como a única solução”, diz Soriano-Núñez. “Nem o papa Francisco nem seus assessores mais próximos usam esse tipo de linguagem atualmente, e ninguém fora das escolas salesianas fala mais sobre isso”.
Equipes médicas e de enfermagem organizaram protestos pela falta de equipamentos de proteção individual e pela escassez de suprimentos enquanto a pandemia se espalha. Especialistas em saúde pública pediram ao presidente que desse exemplo, usando uma máscara e evitasse viajar. Xavier Tello, médico não praticante e consultor na área da saúde, perguntou:
“De que princípios morais ele fala, quando permite que médicos morram por não receberem equipamentos de proteção?”
López Obrador, que ridiculariza seus oponentes como “conservadores” e que tece críticas sem cessar contra o neoliberalismo, vem promovendo ativamente a austeridade como resposta às consequências econômicas da pandemia. Ele cortou os gastos do governo, recusou-se a ajudar empresas à beira da falência e a fornecer isenção de impostos; limitou também os empréstimos financeiros somente para as menores empresas.
“Agora quebramos o molde usado para aplicar as chamadas medidas anticíclicas, que apenas aprofundam a desigualdade e incentivam a corrupção, coisas que beneficiam alguns poucos”, disse ele em abril.
Alguns analistas traçaram comparações pouco lisonjeiras de López Obrador com líderes políticos que adotaram a austeridade durante as crises do passado.
“Ele se parece muito com Herbert Hoover e não acredita em Keynes”, disse Federico Estévez, professor de ciências políticas do Instituto Tecnológico Autônomo do México.
Em lugar de uma resposta robusta do Estado ao impacto econômico da pandemia, o Sr. López Obrador tem apoiado que as famílias cuidem umas das outras. No passado, em tempos de crise as famílias mexicanas funcionaram como uma rede de proteção social, algo que López Obrador espera que ocorra de novo. “A família mexicana é o instituto de segurança social mais importante que existe”, disse. Porém, os bispos do México observaram, em nota publicada recentemente, que muitas famílias carecem de recursos. Os religiosos expressaram a preocupação com o aumento da violência doméstica.
López Obrador também pede regularmente que os mexicanos levem uma vida mais simples, exortando-os a seguir a dieta mexicana tradicional (e mais barata), a evitar gastos desnecessários e a distanciarem-se das dívidas. Ele diz que há tempos vem fazendo o mesmo, a ponto de afirmar que nunca teve cartão de crédito e que possui poucos ativos – algo raro no México, onde os políticos acumulam fortunas inexplicáveis. Aqui também, os analistas veem uma mensagem na advertência proferida, já que a pobreza provocada pela pandemia deve aumentar grandemente e a economia já está em crise.
“Ele nos prepara para que consigamos tolerar um país em situação difícil – isto é, mais pobre – que pode aspirar menos ainda, que verá um futuro mais difícil. É isso o que ele faz”, diz Estévez. “No vale de lágrimas, como conduzimos nossa vida?”
López Obrador elegeu-se presidente apresentando-se como líder populista de esquerda, e esses instintos populistas estão influindo em sua resposta à pandemia, segundo analistas.
Bernardo Barranco, analista social e comentarista mexicano, enxerga outros líderes latino-americanos a adotar abordagens semelhantes às do presidente mexicano, voltando-se à religião, à oração e à piedade popular. “Não temos só uma epidemia de coronavírus, mas uma epidemia religiosa entre os líderes latino-americanos”, escreve Barranco.
“Estes presidentes agem de uma forma semelhante porque o problema é o mesmo: os sistemas de saúde estão sobrecarregados, totalmente obsoletos, sem investimentos e são totalmente inúteis diante da pandemia”, diz ele, “então os presidentes recorrem à religião”.
Isso significa que, no combate ao coronavírus, o México não tem chances de sucesso
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Enquanto os números do coronavírus sobem no México, López Obrador dá prescrição moral - Instituto Humanitas Unisinos - IHU