24 Junho 2020
A “Suíça da América Latina” orgulha-se de sua resposta à covid-19. Porém quase 80% das uruguaias experimentaram violência de gênero.
A reportagem é de Diana Cariboni, publicada por Democracia Abierta e reproduzida por CPAL Social, 18-06-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
No Uruguai, o pequeno país latino-americano com uma enorme reputação internacional de sociedade progressista, alardeia por esses dias de sua exitosa resposta à covid-19. Desde que explodiu a pandemia registra mais de 800 casos e 23 mortes.
Porém, neste mesmo país as mulheres são sistematicamente golpeadas e assassinadas. A história do Uruguai foi chamada de “pandemia oculta” – a violência machista exacerbada pelos confinamentos impostos pelo coronavírus – não deixa espaço para nenhum orgulho.
No último final de semana de maio, duas mulheres foram assassinadas e outras duas feridas gravemente em diferentes incidentes com esposos e familiares homens, enquanto duas crianças morreram nas mãos de seu pai, que em seguida cometeu suicídio e a quem a mãe denunciou por violência.
Foi um final de semana particularmente sangrento. Três soldados da marinha assassinados, aparentemente por um delinquente que tentava roubar-lhe suas armas. A resposta oficial a essas mortes não demorou.
O presidente declarou dois dias de luto nacional, enviou suas condolências às famílias dos soldados e assistiu a seus funerais. Os ministros do Interior e da Defesa Nacional visitaram a cena do crime, e se organizaram coletivas de imprensa para informar dos operativos para fazer justiça e prevenir futuros crimes como estes.
Nem o presidente, nem seus ministros, deram uma palavra sobre as mulheres e as crianças assassinadas; não houve condolências para as famílias destroçadas; não houve promessas de impedir mais feminicídios e infanticídios.
Enquanto esses fatos ocorriam, um punhado de homens influentes (empresários, profissionais, professores, um ex-juiz de menores e políticos de segundo escalão) eram investigados por compor um círculo de exploração sexual de adolescentes que resultou na morte de uma jovem de 17 anos, em março. E na semana passada, o presidente da Câmara dos Deputados interrompeu e tentou silenciar a deputada Verónica Mato, que denunciava a violência de gênero.
Uruguai foi batizado no século XX como “a Suíça da América”, em parte devido a seus frouxos controles financeiros, mas também por sua estabilidade institucional e seus níveis de desenvolvimento humano relativamente altos em comparação a outros países da região.
Este país de 3,4 milhões de habitantes, rodeado de dois gigantes, foi elogiado nos últimos 15 anos por adotar uma variedade de políticas progressistas. Para mencionar algumas: a legalização do aborto, do casamento igualitário e do comércio de marijuana, ademais de uma lei para proteger os direitos humanos das pessoas trans.
Porém, nada relevante foi feito para enfrentar a violência contra as mulheres. Segundo um estudo de 2018 da Organização das Nações Unidas, o Uruguai tem a segunda maior taxa de mulheres assassinadas por companheiros ou ex-companheiros na América Latina.
Em 2017 foi aprovada uma lei contra a violência de gênero, porém acabou sendo escassamente aplicada e não foi assinado os recursos necessários para prevenir essa violência e assistir as sobreviventes.
O novo governo que assumiu em março prometeu mobilizar todos os recursos necessários para mudar essa realidade. Porém, então a pandemia fechou a população em casa, um lugar muito perigoso para muitas mulheres do Uruguai e do mundo.
Nas últimas semanas, o Uruguai chegou outra vez às notícias internacionais por sua resposta ao coronavírus, triunfando aparentemente onde fracassam países maiores e com mais recursos. O vizinho Brasil tinha no início de junho um surto fora de controle e quase 700 mil casos. Boa parte dessas notícias internacionais sobre o Uruguai elogiam a “quarentena voluntária” que adotou o governo, seu sólido e universal sistema de saúde e o papel de protagonista outorgado a prestigiados cientistas no planejamento das políticas contra a covid-19.
Segundo as autoridades, as denúncias policiais de violência contra as mulheres caíram 8% nos primeiros 45 dias de confinamento em comparação com o mesmo período do ano passado. No entanto, as consultas e pedidos de ajuda via telefone sobre violência de gênero aumentaram de forma drástica em 80%.
Desde janeiro foram cometidos 11 feminicídios e 13 tentativas de feminicídio, segundo a base de dados mais ampla sobre esses crimes, compilada por organizações feministas. O último ocorreu na segunda-feira passada, no departamento de Rivera.
O custo humano da violência de gênero neste país é enorme. Trata-se do segundo delito mais denunciado, depois do surto. Somente no ano passado houve 40 mil denúncias.
Uma pesquisa governamental realizada em 2019 e publicada em abril é desoladora: 76,7% das mulheres disseram ter sofrido violência de gênero ao longo de sua vida, e 47% disseram ter sofrido de companheiros ou ex-companheiros.
Esta “pandemia oculta” é gigantesca, e não há nada para se gabar.
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No Uruguai, a “pandemia oculta” de violência contra as mulheres está fora do controle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU