04 Junho 2020
"É evidente uma divisão interna no catolicismo estadunidense: não apenas entre os eleitores, mas também - o que é essencial para entender a dinâmica dessa igreja e seu entrelaçamento com o mundo do grande business - entre alguns bispos como Gregory, Cupich e McElroy, por um lado e os lobbies católicos que expressam vastos interesses financeiros, políticos e midiáticos (no caso específico, os Cavaleiros de Colombo), pelo outro", escreve Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por The Huffington Post, 03-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Em dois dias, 1 e 2 de junho de 2020, Trump e seu governo conseguiram expor o obsceno entrelaçamento entre política e religião nos EUA contemporâneos. Primeiro enfurecendo a igreja episcopaliana (anglicana, de orientação liberal-progressista) por organizar uma photo opportunity com a Bíblia na mão em frente a uma das igrejas históricas da capital, a Igreja de St. John, depois de dispersado via militar a manifestação em frente à Casa Branca.
No dia seguinte, foi a vez dos católicos, com outra foto, dessa vez no santuário em Washington dedicado a João Paulo II: construído e financiado por círculos católicos que sempre estiveram politicamente próximos do partido republicano, os Cavaleiros de Colombo (cujo fundador Michael McGinvey será proclamado beato pelo Papa Francisco nos próximos meses.)
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Donald Trump e Melania Trump no Santuário São João Paulo II. Foto: CNS
A reação ultrajada contra Trump da bispa episcopaliana de Washington, Mariann Budde, era previsível, dada a orientação política da igreja que ele representa. Menos previsível era o comunicado claríssimo do arcebispo católico da capital, Wilton Gregory - um dos poucos altos prelados católicos de ascendência afro-americana nos EUA, nomeado para Washington pelo papa Francisco em 2019.
Gregory definiu como "desconcertante e reprovável" o uso do santuário de João Paulo II por um presidente como Trump, que não demonstrou qualquer consideração em dispersar manifestações pacíficas com a força apenas para poder posar diante da câmera, na tentativa de construir ou recuperar alguma credencial junto ao eleitorado religioso em vista das eleições de novembro.
A intervenção de Gregory era menos previsível, porque não se lembra nenhuma tomada de posição tão forte do arcebispo católico da capital contra um presidente em exercício. Ao escolher o arcebispo de Washington (e a capital de uma nação em geral), a Santa Sé e os núncios sempre levam em conta a capacidade do prelado de administrar prudentemente o relacionamento com o mundo institucional e político que atua e orbita em torno dos palácios do poder. Embora este seja um ano eleitoral, com Trump essas considerações não funcionam, dada a escalada da situação geral. (Minha família e eu moramos perto da Filadélfia, uma cidade onde o toque de recolher foi declarado nas últimas quatro noites.)
Mas a intervenção de Gregory era menos previsível também à luz das relações internas dentro da Igreja Católica, com diferentes almas que têm diferentes relações com Trump e o Partido Republicano. Wilton Gregory certamente não é um ativista ou um extremista, mas representa a ala da Igreja Católica nos Estados Unidos que agora se opõe (junto com o cardeal de Chicago, Blase Cupich, e o bispo de San Diego, McElroy) àquela parte do episcopado que nos últimos meses estreitou - apesar de tudo - uma aliança com Trump, com o objetivo de defender os interesses da Igreja Católica nos EUA: liberdade religiosa (no sentido não apenas da reabertura das igrejas após as medidas contra a pandemia, mas também como isenções das igrejas da lei sobre o respeito aos direitos dos homossexuais no local de trabalho), financiamentos para escolas católicas e, por fim, aborto - que continua sendo a questão principal para o alinhamento político dos católicos nos EUA.
O defensor máximo dessa atitude condescendente tem sido, nas últimas semanas, o cardeal de Nova York, Timothy Dolan, que agora talvez se arrependa por ter elogiado apenas algumas semanas atrás, do púlpito da Catedral de St. Patrick, "a liderança" do presidente Trump. É evidente uma divisão interna no catolicismo estadunidense: não apenas entre os eleitores, mas também - o que é essencial para entender a dinâmica dessa igreja e seu entrelaçamento com o mundo do grande business - entre alguns bispos como Gregory, Cupich e McElroy, por um lado e os lobbies católicos que expressam vastos interesses financeiros, políticos e midiáticos (no caso específico, os Cavaleiros de Colombo), pelo outro.
Nesse ponto, já não se trata mais de algum intelectual ou revista progressista à busca de um socialismo cristão. O próprio establishment católico está enfrentando uma encruzilhada, dividido ao meio por Trump, inclusive nos níveis mais altos, que não precisa do Papa Francisco para ficar horrorizado diante do uso cínico e cruel da religião, não apenas pelo presidente, mas também por membros católicos de sua administração (na qual, por exemplo, desempenha papel importante o procurador-geral William Barr, católico orgânico da Opus Dei).
Não é apenas uma questão católica. Mesmo dentro do mundo protestante branco, Trump ameaça arrastar consigo, entre as chamas de uma presidência dedicada a uma agenda mais racista do que nacionalista, mais eversiva que conservadora, também aqueles setores do protestantismo branco evangélico que nada têm em comum com o secularismo do Partido Democrata, mas que têm medo de se tornar párias - quase como as igrejas protestantes da África do Sul durante o apartheid. Ontem chamava a atenção ver, misturado com a multidão de manifestantes pacíficos em Houston, Joel Osteen, o maior evangelista (branco) do "evangelho da prosperidade".
O presidente mais amado pelos neoconservadores, George W. Bush, divulgou ontem uma mensagem de distanciamento de Trump, mas também um apelo a se reunir para a sobrevivência de uma tradição política em risco de implosão. O partido republicano, de Nixon a Bush II, certamente se beneficiou, mas ao mesmo tempo também manteve sob controle os fluidos racistas que são parte integrante de um certo tipo de conservadorismo político-religioso dos Estados Unidos. Trump abriu o porão e desencadeou uma crise não apenas política e constitucional, mas também moral e religiosa que traz o país de volta aos tempos da guerra civil, quando todas as igrejas nos EUA estavam divididas interna e transversalmente na questão da escravidão. Hoje, a questão é a supremacia branca, entrelaçada com uma questão de justiça social e econômica inseparável do declínio geopolítico do projeto EUA.
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Trump divide as igrejas dos EUA. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU