29 Mai 2020
“Hoje, quando a recuperação da ‘história oculta’ das mulheres é uma parte importante dos estudos históricos e dos estudos femininos, é significativo que a iconografia cristã tenha esquecido – na prática, completamente – a presença das mulheres na representação de Lucas sobre a vinda do Espírito.”
A opinião é de Thomas O’Loughlin, padre da Diocese de Arundel e Brighton e professor de Teologia Histórica da Universidade de Nottingham, na Inglaterra.
O artigo foi publicado em La Croix International, 28-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Imagine alguém fazendo um quiz em uma aula de religião e perguntando: “Onde o confinamento em casa é mencionado na Bíblia?”.
O provável ganhador do prêmio poderia ser quem reagisse assim: “Mas o ‘confinamento’ foi inventado apenas alguns meses atrás!”.
Mas, na verdade, existe um equivalente nos Atos dos Apóstolos. Lucas, o evangelista, nos diz que, no dia da Ascensão, Jesus “deu-lhes esta ordem: ‘Não vos afasteis de Jerusalém, mas esperai a realização da promessa do Pai’” (Atos 1,4).
Lucas, então, nos diz que todo o grupo “deixaram o monte das Oliveiras e voltaram para Jerusalém, à distância que se pode andar num dia de sábado [e] entraram na cidade e subiram para a sala de cima onde costumavam ficar [e] todos eles perseveravam na oração em comum” (Atos 1,12-14).
Isso parece muito com um “confinamento”. Eles estavam todos em uma única sala e rezando!
Mas como você imagina a cena? E quem você imagina que estava no grupo?
Correndo no fundo das nossas mentes enquanto rezamos, pregamos e pensamos, estão as grandes imagens que compartilhamos. Elas são tão comuns que, para a maioria de nós, na maioria das vezes, elas são invisíveis.
No entanto, essas grandes imagens são poderosas, porque podem nos abrir um mundo ou podem nos trancar em caminhos estreitos.
A imaginação é a grande libertadora (é por isso que os ditadores não gostam do espírito livre dos artistas). Mas também pode ser uma carcereira (e é por isso que os tiranos querem uma arte oficial para espalhar a sua mensagem).
Nós, cristãos, temos muitas imagens comuns: por exemplo, a manjedoura e o crucifixo. E, graças à grande figura escrita por Lucas em Atos 1-2, temos também a imagem da descida do Espírito no Pentecostes.
Enquanto nos preparamos para celebrar essa festa no próximo domingo (31 de maio), em vez de refletir sobre o que ela pode “significar” ou alguma parte abstrata da teologia, consideremos o modo como a imaginamos.
Quando ouvimos a palavra “Pentecostes”, que imagem temos em nossas mentes?
Então, pare de ler agora e deixe a imagem vir à sua mente. Anote todos os detalhes da imagem, e talvez desenhe-a em um papel ou liste o que você vê em sua memória.
Eu suspeito que a imagem se parece com isto: há uma sala com muitas pessoas. Maria, provavelmente de azul, está no meio, cercada pelos apóstolos (geralmente com uma certa simetria: seis de um lado e seis do outro). E, sobre cada uma das suas cabeças, uma língua de fogo descida de uma pomba na parte de cima da imagem.
Lembro-me de ver isso em uma foto grande e colorida no corredor da escola quando eu tinha cinco anos e depois em uma foto em um livro de catecismo. E eu vi a mais recentemente em um magnífico vitral.
Você consegue pensar em mais alguma coisa ou em mais alguém?
Agora, imagine outra cena: estão os Doze, Maria, alguns outros homens e mais algumas mulheres – e todo esse grande grupo têm línguas, como que de fogo, repousando sobre eles. Essa imagem parece estranha, na verdade simplesmente “errada”.
Mas pense um pouco: os detalhes de quem estava na sala se baseiam na descrição do grupo que retornou do Monte das Oliveiras para ficar na Sala de Cima, como indicado em Atos 1,12-15.
Agora sabemos que, enquanto eles estavam lá, eles fizeram uma eleição para levar novamente aquele grupo principal – os Doze – de volta à sua força após a partida de Judas Iscariotes. Assim, os homens extras poderiam ser Matias e José Barsabás.
Mas e se imaginarmos que há outras mulheres além de Maria? Você acha que elas deveriam ser incluídas? Se sim, deveriam ser mostradas com as línguas de fogo?
Claramente, a resposta para essas perguntas, na maioria das imaginações, é um firme “não”. Essas personagens não deveriam interferir na cena.
As mulheres simplesmente não estavam lá: nas milhões de representações de Pentecostes, elas não aparecem. Nessas imagens, temos apenas “os apóstolos”, sobre os quais a Igreja foi fundada, e Maria, que é o seu modelo. Não há nem mais nem menos.
As nossas imagens em mosaico e em óleo, nas paredes e nas telas, de grandes artistas que decoram as paredes das igrejas com afrescos e de crianças que fazem o mesmo com giz de cera e papel, todas elas afirmam uma única imagem: apenas uma mulher deveria ser vista na imagem do Espírito que capacita a Igreja em Pentecostes.
Todas as imagens que vão em sentido contrário são apenas mais exemplos da inclusividade “sentimentaloide” dos liberais que querem aplacar as feministas (pelo menos essa foi a resposta de um padre quando eu levantei essa pergunta recentemente em um dia de oração)!
Sed contra: os “fatos” por trás da imagem são um pouco mais estranhos do que normalmente imaginamos!
As primeiras gerações dos seguidores de Jesus continuaram celebrando uma festa com a qual estavam muito familiarizados como judeus. Ela se chamava Pentecostes em grego e Shavuot em hebraico.
Os judeus celebrarão essa festa novamente neste ano entre quinta-feira e sábado (28 a 30 de maio).
Vemos essa continuidade no caso de Paulo, que escreve aos Coríntios:
“Possivelmente, ficarei convosco algum tempo ou, mesmo, passarei o inverno aí entre vós: assim podereis prover-me do necessário para prosseguir viagem. Desta vez, não quero ver-vos apenas de passagem. Espero poder ficar algum tempo convosco, se o Senhor o permitir. Permanecerei em Éfeso até Pentecostes, pois aqui se abriu para mim uma porta larga e promissora” (1Cor 16,6-9).
Perguntar o que isso “significava” para aqueles primeiros cristãos é imaginar que eles tinham a nossa atitude pós-iluminista em relação à religião, em que o “significado” é a categoria mais importante.
A realidade simples era que eles continuavam vivendo dentro de um ano estruturado como sempre fora com festas e jejuns, exceto onde eles haviam deliberadamente mudado em relação à prática dos outros judeus: a mudança do Sábado para o primeiro dia da semana (ou seja, o Domingo) é a mais óbvia delas.
Essa persistência da festa de Pentecostes, com seu vínculo fixo de 50 dias desde o tempo da Páscoa, significava que ela podia ser facilmente vinculada na pregação da história do evento-Cristo.
É exatamente isso que encontramos no início do século II na pregação de Lucas. Em sua ampla apresentação do Evangelho – começando com o nascimento de Jesus no fim do período da preparação de Israel e terminando com o Evangelho que chega aos confins da terra – Pentecostes é uma grande virada na visão de Lucas sobre a história.
Até aquele dia, os seguidores de Jesus estão na presença de Cristo como aprendizes – literalmente “discípulos”. Mas, uma vez que o Espírito vem sobre eles, eles se tornam “testemunhas” e recebem o poder de pregar o Cristo em Jerusalém, na Judeia e em toda a terra.
Essa visão da história, esse momento especial de serem capacitados pelo Espírito depois que o Cristo deixou a terra, se encontra apenas na pregação de Lucas. E Lucas vincula esse novo tempo da história a uma festa estabelecida – o Dia de Pentecostes.
De fato, Lucas estava aproveitando um momento fixo no ano da sua audiência e usando-o para acrescentar um modo particular de entender a relação da Igreja com o Ungido do Pai, que os investe com o Espírito.
A imagem clássica é a de Atos 2,1-4:
“Quando chegou o dia de Pentecostes, os discípulos estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído como de um vento forte, que encheu toda a casa em que se encontravam. Então apareceram línguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia expressar-se.”
Todo mundo que lá estava recebeu o Espírito, pois sobre cada um deles havia uma língua de fogo, e todos eles começaram a falar em línguas. Isso aparece claramente na grande imagem comovente de Lucas.
A questão é: quem são “eles” que estavam “todos reunidos”?
A resposta a essa pergunta já foi dada por Lucas anteriormente nos Atos (1,12-14):
“Então os apóstolos deixaram o monte das Oliveiras e voltaram para Jerusalém, à distância que se pode andar num dia de sábado. Entraram na cidade e subiram para a sala de cima onde costumavam ficar. Eram Pedro e João, Tiago e André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão Zelota e Judas, filho de Tiago. Todos eles perseveravam na oração em comum, junto com algumas mulheres – entre elas, Maria, mãe de Jesus – e com os irmãos dele.”
Então, o Espírito desceu sobre três grupos diferentes de pessoas reunidas na Sala de Cima.
Primeiro, existe esse grupo único chamado “os Doze”, embora agora sem Judas. Há várias listas dos Doze (Mt 10,2-4; Mc 3,16-19; Lc 6,14-16; At 1,13), e cada uma delas contém discrepâncias.
Parece que, quando os Evangelhos foram compostos, a memória da lista havia se desgastado. De fato, os Doze se tornaram discípulos e apóstolos prototípicos. Vemos isso em Mt 10,1-2 e em Lucas 6,13, em que os evangelistas transformam os Doze em um grupo com dois nomes: “os doze discípulos” e “os doze apóstolos”.
No entanto, Lucas quer deixar claro que, no dia de Pentecostes, esse grupo estava de volta com força total. Os Atos (1,23-26) relatam que, enquanto estavam na sala de cima esperando em oração pelo Espírito, eles elegeram e alistaram Matias.
Isso sobre o primeiro grupo – que aparece em todas as imagens de Pentecostes – de doze homens mencionados.
Segundo, temos um grupo de mulheres – muito raro nas nossas imagens tradicionais –, mas não nos é dito quantas são e temos apenas um nome: “Maria, a mãe de Jesus”.
O plural “mulheres” sugere um grupo de mais de duas. Mas quantas estavam lá? Três, quatro, uma dúzia? Não sabemos.
Contar e listar indicam importância, e as mulheres não eram tão importantes no mundo de língua grega de dois milênios atrás. Mas, na nossa iconografia popular, elas caíram ainda mais na invisibilidade da nossa memória comum.
Terceiro, temos outro grupo bem definido desde os tempos de Jesus: os seus irmãos. Esse grupo já estava desaparecendo de vista quando Lucas escreveu. Ele apenas os menciona como um grupo (Lc 8,18-21) sem nomeá-los (ao contrário de Mc 6,3 e de Mt 13,55 – embora a memória já estivesse escorregando, pois um nome mudou).
Mas Lucas teria imaginado um grupo de quatro homens. Esse grupo seria progressivamente apagado do roteiro nas décadas seguintes a Lucas, e vemos isso ocorrer no texto que chamamos agora de “Protoevangelho de Tiago”, que foi escrito em meados do século II.
Esse grupo de quatro homens, surpreendentemente, nunca foi incluído na iconografia do evento de Pentecostes.
Hoje, quando a recuperação da “história oculta” das mulheres é uma parte importante dos estudos históricos e dos estudos femininos, é significativo que a iconografia cristã tenha esquecido – na prática, completamente – a presença das mulheres na representação de Lucas sobre a vinda do Espírito.
Dentro da teologia, a história – o estudo sistemático do passado – realiza muitas tarefas importantes. Ela recupera partes esquecidas da nossa memória que nos permitem apresentar a Tradição de maneira mais completa. E, muitas vezes, nos lembra que formas aparentemente “tradicionais” de apresentar a mensagem cristã podem ter sofrido distorções.
A invisibilidade das mulheres dentro do nosso ícone de Pentecostes é um exemplo disso. Foi toda a Igreja que foi capacitada pelo Espírito na teologia visual de Lucas. Nós, pelo contrário, limitamos isso ao grupo de especialistas dos Doze e àquela cristã singular, Maria.
Talvez esteja na hora de recuperar uma história oculta nos nossos ícones de Pentecostes. Ela deve ter todos os três grupos – portanto, pelo menos um grupo de 20 pessoas – formados por mulheres e homens com uma “língua de fogo” sobre cada cabeça.
Talvez você se lembrará de como as mulheres se tornaram invisíveis em Pentecostes quando você olhar para uma representação da imagem de Lucas. O fato das nossas imagens tradicionais não incluírem mulheres pode explicar outros aspectos do lugar das mulheres na vida e na teologia da Igreja.
Então, temos uma nova questão: onde mais as mulheres ainda são invisíveis na nossa memória eclesial?
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A invisibilidade das mulheres na representação de Pentecostes. Artigo de Thomas O’Loughlin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU