27 Abril 2020
Só podemos ser genuinamente eucarísticos quando celebramos ao redor da Mesa do Senhor, compartilhando um pão real e bebendo de um cálice comum.
A opinião é de Thomas O’Loughlin, padre da Diocese de Arundel e Brighton, e professor de Teologia Histórica na Universidade de Nottingham, no Reino Unido.
O artigo foi publicado em La Croix International, 24-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As religiões são inerentemente otimistas. É por isso que, apesar da confusão no mundo, elas proclamam uma ordem e a celebram com rituais repetidos.
Mesmo em uma pandemia, as religiões veem um mundo onde “os fatos são amigáveis”.
Os cristãos, junto com judeus e muçulmanos, veem o Criador como infinitamente – e até literalmente – maior do que a criação. Toda a criação, mesmo o vírus, é obra das mãos do Criador.
Os cristãos costumam pensar que a frase “creatio ex nihilo” é apenas um rótulo para incomodar jovens teólogos. Mas, de fato, é uma abreviação estranha para a dependência completa da criação em relação ao Criador, que é sempre maior.
Isso significa que as religiões abraâmicas não se afundam em um desejo nostálgico de retornar à era de ouro quando tudo era amável. O mundo pelo qual todos rezamos ao dizer “venha a nós o vosso Reino” ainda está por vir!
Nós, cristãos, vemos a vitória de Cristo sobre a morte como uma base a mais para uma vida de esperança. Portanto, não importa quão ruim seja a situação, os olhos da fé podem ver o outro lado, alguns benefícios e algumas lições a serem aprendidas. E sabemos que vale a pena continuar lutando!
A crise atual não é uma exceção. Em muitos lugares, o clero das paróquias – que agora exibe imagens de si mesmos enquanto celebram a Eucaristia – observa que mais pessoas se sintonizam para assistir a uma celebração do que aquelas que realmente apareciam para celebrar em um domingo normal.
Elas imediatamente recorrem à frase de Santo Agostinho – “nossos corações estão inquietos até descansarem em Ti” – e veem a epidemia como um chamado de volta à fé.
Viva! Vai ficar tudo bem! Em breve haverá igrejas cheias, e o vírus terá ensinado a todos uma lição!
Agora, demos um passo atrás, por um momento.
Acima de tudo, há mais pessoas virtualmente do que aquelas das quais temos lembranças vivas, provavelmente. Bom. E é bom que o Povo de Deus esteja trazendo alegria e esperança às vidas daqueles que nos rodeiam – essa é uma parte básica da nossa missão como cristãos, sendo o meio pelo qual levamos conforto àqueles que choram e estão aflitos (cf. Mt 5,4, por exemplo).
Mas – hora de checar a realidade –, em todo momento de choque, há uma corrida para a religião. Todos conhecemos o chavão: “Não há ateus nas trincheiras!”.
No entanto, a experiência nos diz que isso desaparece rapidamente. Embora um choque de complacência possa despertar uma nova visão da realidade, também pode produzir uma visão de um deus que negocia com o medo – e essa visão tem pouco a ver com o Deus que é o Pai amoroso de Jesus.
A “missão pelo medo” – e toda denominação cristã já a usou às vezes – trai a própria natureza do Deus que pregamos. Em uma crise, todos fazemos coisas estranhas. E as pessoas recorrem com rapidez à superstição, magia, teorias da conspiração e pseudomedicina da internet, tanto quanto recorrem à fé. Esse vírus não vai substituir o trabalho árduo e lento da evangelização e da educação.
Vale a pena refletir que, para todos aqueles para os quais uma descoberta da fé ou um retorno à fé é um lado positivo dessa crise, há outros para os quais isso é uma parte da evidência de que o universo é apenas uma sequência aleatória de eventos.
Que um trabalhador médico morra enquanto procura tratar outro ser humano que sofre é simplesmente sofrimento demais para que alguém possa se reconciliar com um Deus amoroso!
Essa reação pode não fazer justiça à nossa teologia clássica. Nós não sabemos o que queremos dizer com “D - e - u - s”, mas pregamos tantas baboseiras piedosas e encorajamos tanto uma mentalidade mercantil com o divino que nós, pregadores, devemos simplesmente levantar as mãos e admitir que somos responsáveis por grande parte dessas tolices.
Uma afirmação mais específica que pode ser ouvida amplamente é que as pessoas se sentem “consoladas” ao “terem a missa transmitida”. Isso é curioso, porque, em muitas paróquias, a missa é o único rito que foi transmitido.
Mas aqueles que criaram grupos de oração no Zoom ou que celebram a Liturgia das Horas notaram que, dado que as pessoas têm tempo neste momento, essa foi uma nova descoberta de uma parte da vida da Igreja que lhes era desconhecida.
Mas alguém pode realmente transmitir uma missa?
Pode-se transmitir uma imagem de uma celebração, mas o núcleo desse tipo de reunião em particular é o que Jesus nos pediu: tomar um pão e um cálice, dar graças a Deus, partir e compartilhar, comendo e bebendo. Não se pode celebrar assistindo: é preciso mais do que isso!
Além disso, não se trata apenas “do padre” e “da congregação”. Todos, qualquer que seja seu papel na Igreja, são a assembleia, a congregação. E todos são convidados à mesa. Compartilhar esse evento à mesa diante de uma tela é tão impossível quanto ir a um restaurante diante de uma tela.
Mas, de fato, os católicos têm uma longa tradição de “ir à missa”, mas não à comunhão. Com efeito, em muitas culturas, nós ainda separamos isso: falamos de “missa” e de “comunhão”.
Sim – fizemos isso durante séculos. De fato, entre pelo menos 900 e 1900, comungar era algo excepcional para um leigo, exceto quando necessário (ou seja, normalmente uma vez por ano, como decretado pelo IV Concílio de Latrão, em 1215).
Mas não esqueçamos que isso era um abuso e que, desde o tempo do Papa São Pio X, estamos trabalhando para corrigi-lo. Um abuso, não importa o quanto a antiguidade possa ser usada como justificativa! Aquela que era uma má teologia na época – e vista assim por todo papa durante mais de 100 anos – não se torna uma teologia aceitável simplesmente porque não podemos nos reunir em uma igreja de pedra.
Algumas coisas são ideais para a internet. Para qualquer coisa que requeira a transferência de muitos dados, por exemplo. A informação viaja bem no ciberespaço. É por isso que ela é chamada de “revolução da informação” – a pista está no nome!
E a nossa fé exige muita transferência de informações – é por isso que temos catecismos, programas de formação, escolas dominicais, aulas noturnas e teólogos que escrevem livros! Mas nunca devemos confundir a realidade da vida – vida que é muito mais do que informação – com os dados.
É muito fácil pensar em Jesus simplesmente como um canal de comunicação com Deus e imaginar que ele veio nos dar um download especial de conhecimento. Essa tem sido uma tentação (rotulada de gnosticismo) desde o século II. A Palavra “armou sua tenda entre nós” (Jo 1,14). Ele compartilhou toda a nossa humanidade.
Assim como você não pode enviar uma maçã por e-mail – e o mesmo se aplica para tudo o que comemos, bebemos e de que precisamos para viver – você também não pode compartilhar o pão e o cálice por e-mail. Uma reunião real entre pessoas reais precisa de contato real.
Se vendermos a ilusão de que a transmissão é um substituto (e muitos dos que estão transmitindo imagens de um clérigo celebrando seu ato eucarístico estão dizendo algo assim), podemos não apenas confundir o povo em um nível prático, mas também estar desviando nossos irmãs e irmãos: dando a ilusão de que a celebração é uma questão de compartilhar informações!
Isso pode parecer um lado positivo para alguns, mas a longa experiência chama isso de gnosticismo.
Eu vi pela primeira vez o slogan “você não pode enviar uma maçã por e-mail” em um caminhão de transporte de alimentos numa rodovia francesa e percebi que ele transmitia uma profunda verdade humana na era digital.
Nós somos mais do que os nossos dados. Nossas celebrações são mais do que o consentimento ou a assimilação de informações. Se esquecermos isso, perderemos algo precioso.
Só podemos ser genuinamente eucarísticos quando celebramos ao redor da Mesa do Senhor, compartilhando um pão real e bebendo de um cálice comum.
Isso não pode ser feito agora, mas não confundamos aquilo que é real com imagens transmitidas de outros (mesmo que sejam de bispos) fazendo isso.
Recordar a corajosa realidade material de ser realmente eucarístico é, em si mesmo, um lado positivo!
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