30 Abril 2020
"Agora é hora de tirar lições, já que a realidade nos trouxe uma situação totalmente inédita. É hora questionar o nosso percurso feito até aqui como Igreja no mundo", escreve Emanuel Afonso da Silva, franciscano conventual, mestrando em teologia fundamental na Universidade Gregoriana em Roma, em artigo, 29-04-2020.
Nestes tempos incertos de pandemia não faltam reflexões das mais variadas de como este vírus tem afetado a vida em sua totalidade; sim, porque não podemos esquecer que a vida não se resume à economia, que por certo está sendo afetada e continuará a ser por muito tempo até que se encontre não somente a vacina, mas também estratégias concretas e solidárias para viver este tempo e superá-lo.
Uma dessas reflexões está no campo da religião, aliás uma reflexão que porta consigo tantas outras, haja vista a variegada onda de opiniões. Na Igreja Católica, graças a Deus, concordando ou não, com opiniões contrárias ou a favor em relação a certas medidas restritivas, prevalece o bom senso, e é aqui que entra uma questão, que apesar de óbvia quase sempre é dada por descontada.
Prolifera-se um discurso de que a fé é suficiente para sobreviver ao vírus e que as igrejas devam ser abertas subitamente gerando divergências de opiniões. Ao mesmo tempo em que muitos discutem e até se desentendem sobre este tema, outros entram na paranoia de uma religião mágica ou da punição, onde Deus ou tudo resolve através da grande quantidade de oração ou castiga pela falta dela; e por consequência, por causa dos grandes pecados da humanidade.
Por esses dias, alguns chegam até ao absurdo de acusar o atual Papa de apostasia por causa do Sínodo da Amazônia, e que por causa disso o mundo está sofrendo tal pandemia como castigo divino, num claro desconhecimento da tradição bíblico-teológica, segundo à qual “Deus é amor” (Cf. 1Jo 4,8), e certamente não castiga seus filhos.
Por isso, aqui é questionado o rosto/imagem de Deus que temos anunciado e transmitido, que tipo de eclesiologia temos praticado e insistido em continuar praticando, restando apenas uma realidade “nua e crua” como costumamos dizer, que desmascara todos os nossos esquemas por melhores e bem intencionados que sejam; porém uma coisa ao alcance de todos este tempo não nos tirou: a GRAÇA de Deus!
A ela podemos ter acesso sem restrições porque é dada para todos e sem distinções. Através da ORAÇÃO nos conectamos com a Graça e com todos os irmãos de fé, inclusive com aqueles que não a tem, pois somos todos filhos do mesmo Pai; aliás outra caraterística deste tempo: nos igualou – clichê ou não – o fato é que agora não existe mais distinção, apesar de que ainda continue a ser praticada, inclusive na hora de acessar os serviços de saúde, sobretudo nos países pobres.
Pois bem, através da oração à qual todos podem ter acesso entramos em comunhão com Deus, e fazemos comunhão uns com os outros, ainda que à distancia, por hora. Uma oração originada da vida, vivida no chão da cidade dos homens, uma oração nascida da dor ou da alegria, do agradecimento ou simplesmente do fato de sentir-se sustentando e acompanhado por ALGUÉM que vai além das nossas expectativas.
Por isso como afirma o teólogo Francesco Cosentino: “Essa oração concebida na dor também nos torna mais humanos e, portanto, mais compassivos e solidários com os outros. A dor escava dentro de nós. Na dificuldade e na escuridão, experimentamos a nossa fragilidade, de modo que abandonamos as máscaras fabricadas artisticamente para escondê-la e os substitutos da nossa sociedade de consumo para exorcizá-la” (COSENTINO, 2020) [1]. A mesma fragilidade ou vulnerabilidade, portanto, que no início da Quaresma recordamos ao colocar as cinzas nas nossas cabeças: “Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar”.
Para nós cristãos e a mística esta realidade aparentemente tremenda esconde uma esperança abissal. É ali que igualados podemos nos reconhecer frágeis, mas ao mesmo tempo amados ternamente, porque o Filho de Deus quis assumir nosso destino do começo ao fim, afim de não nos restringir nada que esteja sob o olhar da Graça de Deus.
Por isso, na tentação de nos acharmos imunes e cairmos na paranoia de que tudo falta porque não estamos tendo acesso por hora aos sacramentos, como se somente eles nos dessem acesso à Graça, apesar de serem canais desta, devemos experimentar que a oração incessante não é menos eficaz. Como acenado antes, a doença privou a todos dos sacramentos, sejam aquelas pessoas que o Direito Canônico e a moral consideram “aptos” para recebê-los, sejam aquelas que o mesmo Código considera “inaptos”. Lembrando que aqui nem sequer se menciona os privados dos sacramentos por viverem longe geograficamente.
Portanto, agora é hora de tirar lições, já que a realidade nos trouxe uma situação totalmente inédita. É hora questionar o nosso percurso feito até aqui como Igreja no mundo. É hora de ler os “sinais dos tempos” como nos pediu o Concílio Vaticano II. É hora de interrogar a realidade sabendo traduzi-la não somente através de conceitos, mas com um estilo de vida evangélico capaz de nos dizer que aquele cristianismo que tem vivido de meritocracia e elitismo já não tem mais sentido, aliás nunca teve.
Agora é hora de olhar nossa vulnerabilidade como dom, e por isso a necessidade de cuidarmos uns dos outros neste momento. Devemos tê-la debaixo dos nossos olhos porque nos ajuda a sermos mais gratos e a fugirmos da religião mágica, que no final das contas resulta excludente, porque ao invés de viver como servidora Graça, vive como sua proprietária.
[1] FRANCESCO CONSENTINO, O vírus, a dor e o silêncio de Deus: quando a oração se torna um grito, disponível aqui. - acesso em 28 de abril de 2020.
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Da imunidade à paranoia – lembrança/esquecimento da nossa vulnerabilidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU