20 Abril 2020
Há um princípio que o papa repetiu várias vezes, que a realidade é mais importante do que a ideia. Isso não significa que a ideia deva ser morta e esquartejada sobre o altar do realismo vil e cínico, mas dá conta daquilo que toda dona de casa faz na cozinha todos os dias: leva em conta a realidade.
O artigo é do sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin, em Pequim, na China. O artigo foi publicado em Settimana News, 19-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Diz Agamben no seu artigo: “Uma norma, que afirme que se deve renunciar ao bem para salvar o bem, é tão falsa e contraditória quanto aquela que, para proteger a liberdade, impõe que se renuncie à liberdade”.
Esse é um ponto fundamental em torno do qual gira grande parte do pensamento ocidental há séculos, senão até desde as suas origens, de Parmênides e Zenão. O problema é imenso, formidável e sacode a nossa alma, talvez também porque sentimos o peso desses milênios de reflexão nas duas linhas.
Mas esse também é um curto-circuito interessantíssimo, fundamental para milhares de desenvolvimentos ideais e práticos, e devemos valorizá-lo por isso. Mas talvez também devamos ter em mente que é um curto-circuito.
Na prática, o que professor Agamben gostaria de fazer?, perguntariam os meus amigos chineses com dois milênios de tradições culturais muito diferentes sobre os ombros. Ele gostaria de celebrar funerais públicos, conceder o último adeus aos parentes dos doentes e assim multiplicar o número das vítimas por cem ou por mil? Porque, na prática, isso aconteceria.
Em Veneza, o primeiro Lazzaretto em 1423 separava à força os doentes dos sãos, os enfermos dos seus parentes. Pisoteava as tradições cristãs fortíssimas daquela época pela salvação da comunidade.
Hoje, fomos além, sim, mas também as tradições agora são diferentes, e provavelmente o salto que foi feito em 1423 contra as tradições predominantes sobre a sacralidade dos defuntos em Veneza foi muito maior do que o de hoje.
Aquilo que salvou Veneza naquela época, com a fundação daquela que depois se tornou uma instituição fundamental até a atual peste da Covid-19, foi o senso prático e de realidade que prevaleceu sobre o princípio, a ideia importantíssima, mas, na prática, letal no momento, do cuidado e da sacralidade dos mortos.
Aqui há um princípio que o papa repetiu várias vezes, que a realidade é mais importante do que a ideia. Isso não significa que a ideia deva ser morta e esquartejada sobre o altar do realismo vil e cínico, mas dá conta daquilo que toda dona de casa faz na cozinha todos os dias: leva em conta a realidade. Se você quer fazer uma massa à matriciana e não encontra guanciale, use bacon ou presunto, ou coma simplesmente aquilo que tem.
Isso não significa que a receita não serve, porque, sem receitas, comemos mal, mas sim que as ideias devem encontrar uma encarnação razoável de acordo com as circunstâncias.
Portanto, isso tem uma extensão sobre o papel da Igreja na sociedade e na política. Ela não pode se deter a afirmar princípios sacrossantos, mas dificilmente aplicáveis. Naturalmente, ter um senso de realismo também não significa transformar São Pedro em um banco para o tráfico das indulgências.
Mas, em um momento em que a política mundial parece oscilar entre a afirmação abstrata de princípios e a quase especular rendição total ao cinismo mais torpe, talvez se crie um espaço enorme, um vazio de razoabilidade que deveria ser ocupado.
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Agamben, uma resposta. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU