25 Março 2020
Em diário, sob quarentena radical, filósofo indaga: “Como sairemos desta crise? Sós, competitivos, enxergando o corpo do outro como terror? Ou reimaginando a igualdade (que voltou ao centro da cena) como ponto de partida para o que virá?”
O artigo é de Franco "Bifo" Berardi, filósofo, escritor e agitador cultural italiano. Oriundo do movimento operaísta, foi professor secundário em Bolonha. Publicado por OutrasPalavras, 23-03-2020. A tradução é de Simone Paz.
You are the crown of creation
And you’ve got no place to go
Jefferson Airplane, 1968
“A palavra é um vírus. Talvez, o vírus da gripe já foi algum dia uma célula sadia. Agora é um organismo parasitário que invade e danifica o sistema nervoso central. O homem moderno não conhece mais o silêncio. Tenta deter o discurso subvocal. Experimenta dez segundos de silêncio interior. Você vai se deparar com um organismo resistente que te obriga a falar. Esse organismo é a palavra.”
William Burroughs, The Ticket That Exploded (1962)
21 de fevereiro
Voltando de Lisboa, uma cena inesperada no aeroporto de Bolonha. Na entrada, dois seres humanos completamente cobertos com um uniforme branco, com um capacete luminoso e um estranho aparelho em suas mãos. O aparelho é um termômetro-pistola de altíssima precisão e que emite luzes violeta por todas as partes.
Eles se aproximam de cada passageiro, fazem-no parar, apontam a luz violeta para sua testa, controlam sua temperatura e, depois disso, deixam-no continuar
Um pressentimento: será que estamos atravessando um novo marco no processo da mutação tecno-psicótica?
28 de fevereiro
Desde que voltei de Lisboa, não posso fazer mais nada: comprei umas vinte telas de proporções pequenas, e pinto-as com tintas coloridas, fragmentos fotográficos, lápis, carvão. Não sou artista, mas quando fico ansioso, quando sinto que está acontecendo alguma coisa que põe meu corpo em vibração dolorosa, faço uns rabiscos para relaxar
A cidade está silenciosa, como se fosse Ferragosto [nota da tradutora: No Ferragosto, em 15/8, comemora-se na Itália a Festa da Assunção de Maria. É também ponto de partida das férias na Itália]. Nenhum estudante no entorno, nem turistas. As agências de viagens cancelam regiões inteiras do mapa. Talvez, as recentes convulsões do corpo planetário estejam provocando um colapso que force a paralisação do organismo, que o obrigue a desacelerar seus movimentos, a abandonar os lugares aglomerados e as frenéticas negociações cotidianas. E se essa fosse a saída que não conseguíamos encontrar — e que agora se abre para nós numa forma de epidemia psíquica, de um vírus linguístico gerado por um bio vírus?
A Terra chegou a um grau de irritação extremo, e o corpo coletivo da sociedade padece há muito tempo de um intolerável estado de estresse: a doença manifesta-se nesse ponto, modestamente letal, porém, devastadora no plano social e psicológico, como uma reação de autodefesa da Terra e do corpo planetário. Para os mais jovens, não passa de uma gripe fastidiosa.
O que gera pânico é o fato de o vírus escapar de nossos saberes: a medicina mal o conhece, muito menos o sistema imunológico. E o desconhecido, de repente, é que faz a máquina parar. Um vírus semiótico na psicosfera bloqueia o funcionamento abstrato da economia ao privá-la dos corpos. Querem vê-lo?
2 de março
Um vírus semiótico na psicosfera bloqueia o funcionamento abstrato da máquina porque os corpos desaceleram seus movimentos, finalmente, renunciam à ação, interrompem a pretensão do governo sobre o mundo e deixam que o tempo retome seu fluxo, no qual nadamos de forma passiva: seguindo a técnica de natação chamada “fazer-se de morto”. O vazio engole uma coisa atrás da outra, mas, por enquanto, dissolveu-se a ansiedade de manter unido o mundo que mantinha o mundo unido
Não há pânico, nem medo, mas silêncio. Rebelar-se revelou-se é inútil; então, apenas paremos
Qual será o tempo destinado à duração do efeito desta fixação psicótica que ganhou o nome de coronavírus? Dizem que a primavera vai aniquilar o vírus, mas, pelo contrário, poderia exaltá-lo. Não sabemos nada a respeito. Como saber qual temperatura ele prefere? Pouco importa a sua letalidade: parece ser modesta — e esperamos que se desvaneça logo
Mas o efeito do vírus tem pouco a ver com o número de pessoas que enfraquece ou com o pequeno número de pessoas que mata. O efeito do vírus radica na paralisia de relações que propaga. Faz tempo que a economia mundial concluiu sua curva de parábola expansiva, mas não conseguíamos aceitar a ideia da estagnação como novo regime de longo prazo. Agora, o vírus semiótico nos ajuda nessa transição à parálise.
Querem vê-lo?
3 de março
Como reagem o organismo coletivo, o corpo planetário, a mente hiperconectada subjugada por três décadas à tensão ininterrupta da competição e da hiperestimulação nervosa, à guerra pela sobrevivência, à solidão metropolitana e à tristeza, incapaz de se libertar da ressaca que lhe rouba a vida e a transforma num estresse permanente, como um viciado que nunca consegue chegar à heroína, enquanto ela dança diante de seus olhos, sujeitando-o à humilhação da desigualdade e da impotência
Na segunda metade de 2019, o corpo planetário entrou em convulsão. De Santiago a Barcelona, de Paris a Hong Kong, de Quito a Beirute, multidões de milhões de jovens muito jovens saíram às ruas, com ira. A revolta não tinha objetivos específicos, ou melhor: tinha objetivos contraditórios. O corpo planetário estava preso de espasmos que a mente não sabia guiar. A febre cresceu até o fim do ano dezenove
Então Trump assassina Soleimani, durante a celebração de seu povo. Milhões de iranianos desesperados saem às ruas, choram e prometem uma vingança estrondosa. Nada acontece, bombardeiam um pátio. Em meio ao pânico, derrubam um avião civil. E então, Trump ganha tudo: sua popularidade aumenta. Os estadunidenses ficam excitados com o sangue, os assassinos sempre foram seus favoritos. Enquanto isso, os democratas começam as eleições primárias numa situação de divisão tão terrível, que só um milagre poderia resultar na nominação do bom ancião Sanders, única esperança de uma vitória improvável.
Então, nazismo trumpista e miséria para todos junto de uma superestimulação crescente do sistema nervoso planetário. É essa a moral da história?
Mas, eis a surpresa, o giro de 180º, o imprevisto que frustra qualquer discurso sobre o inevitável. O imprevisto que esperávamos: a implosão. O organismo superexcitado do gênero humano, depois de décadas de aceleração e de frenesi, depois de meses de convulsões sem perspectivas, fechado num túnel cheio de raiva, de gritos e de fumaça, finalmente é atingido pelo colapso: propaga-se uma “gerontomaquia” que mata principalmente os octogenários, mas que bloqueia, peça por peça, a máquina global da excitação, do frenesi, do crescimento, da economia…
O capitalismo é um axioma, ou seja, funciona baseado numa premissa não comprovada (a necessidade do crescimento ilimitado que torna possível a acumulação de capital). Todas as construções lógicas e econômicas são coerentes com esse axioma — e não se pode tentar ou conceber nada fora dele. Não existe uma saída política no axioma do Capital, não existe uma linguagem capaz de anunciar o exterior da linguagem, não existe nenhuma possibilidade de destruir o sistema, porque todo processo linguístico encontra-se dentro desse axioma que não permite a possibilidade de afirmações extrassistêmicas eficazes. A única saída é a morte, como aprendemos com Baudrillard.
Somente depois da morte será possível começar a viver. Depois da morte do sistema , os organismos extrassistêmicos poderão começar a viver. Sempre e quando eles sobreviverem, é claro — e não há jeito de comprovar isso.
A recessão econômica que está sendo gestada poderá nos matar, poderá provocar conflitos violentos, poderá desencadear epidemias de racismo e de guerra. É bom saber disso. Não estamos preparados culturalmente para pensar na estagnação como condição de longo prazo, não estamos preparados para pensar na frugalidade, em compartilhar. Não estamos preparados para desassociar o prazer do consumo.
4 de março
Será que agora vai? Não sabíamos como nos libertar do monstro, não sabíamos como sair do cadáver do Capital; viver nesse cadáver apodrecia a existência de todos, mas agora o choque é o prelúdio da deflação psíquica definitiva. No cadáver do Capital éramos obrigados à superestimulação, à aceleração constante, à concorrência generalizada e à superexploração com salários decrescentes. Agora, o vírus faz murchar a bolha da aceleração
Há tempos o capitalismo encontrava-se num estado de estancamento sem volta. Porém, continuava a açoitar os animais de carga que somos, para nos forçar a não parar de correr, embora o crescimento já tivesse se transformado numa miragem triste e impossível.
A revolução já nem era considerável, pois a subjetividade está confusa, deprimida, convulsiva, e o cérebro político não possui mais controle da realidade. E, assim, eis então uma revolução sem subjetividade, somente implosiva, uma revolta da passividade, da resignação. Vamos nos resignar. De repente, a resignação parece ser uma resolução ultra-subversiva. Já chega das agitações inúteis que deveriam melhorar nossa qualidade de vida, mas que, muito pelo contrário, só conseguem produzir sua piora. Literalmente: não há mais nada a fazer. Então não façamos nada.
É difícil que o organismo coletivo se recupere deste choque psicótico-viral e que a economia capitalista, agora reduzida a uma paralisação irremediável, retome o seu caminho glorioso. Podemos nos afundar no inferno de uma prisão técnico-militar onde só a Amazon e o Pentágono tenham as chaves. Ou também poderíamos esquecer da dívida, do crédito, do dinheiro e da acumulação.
O que a vontade política não conseguiu realizar, poderia ser feito pela potência mutagênica do vírus. Mas essa fuga deve ser preparada imaginando o que é possível, agora que o imprevisível rasgou a tela do inevitável.
5 de março
Começam a se manifestar os primeiros sinais de afundamento do sistema das finanças e da economia, os especialistas em questões econômicas observam que desta vez, diferentemente de 2008, as intervenções dos bancos centrais e de outros organismos financeiros não serão de grande utilidade.
Pela primeira vez, a crise não vem de fatores financeiros, nem de fatores exclusivamente econômicos, do jogo da oferta e da demanda. A crise vem do corpo.
Foi o corpo quem decidiu diminuir o ritmo. A desmobilização geral do coronavírus é um sintoma da recessão, até antes de ser a causa dela mesma.
Quando falo em corpo, refiro-me à função biológica em todo seu conjunto, refiro-me ao corpo físico que adoece, embora de maneira leve — mas também, e principalmente, quero me referir à mente, que, por razões que nada têm a ver com a razão, com a crítica, com a vontade, com a decisão política, entrou numa fase de profunda passividade.
Cansada de processar sinais demasiado complexos, deprimida após a super excitação, humilhada pela impotência de duas decisões perante a onipotência do autômato técnico-financeiro, a mente diminuiu sua tensão. Não é que a mente tenha decidido qualquer coisa: é a queda repentina da tensão que decide por todos. Psicodeflação.
6 de março
Naturalmente, é possível argumentar exatamente o oposto do que eu disse: o neoliberalismo, em seu casamento com o etnonacionalismo, deve dar um salto no processo de abstração total da vida. Eis, então, o vírus que obriga todo mundo a ficar em casa, mas que não bloqueia a circulação das mercadorias. Aqui, estamos no marco inicial de um sistema tecnototalitário no qual os corpos serão para sempre distribuídos, controlados e dominados à distância.
Na Internazionale, publica-se um artigo de Srecko Horvat. Segundo ele, “o coronavírus não representa uma ameaça para a economia neoliberal, pelo contrário: cria o ambiente perfeito para tal ideologia. Mas, da perspectiva política, o vírus é um perigo, porque uma crise sanitária poderia favorecer o objetivo etnonacionalista de reforçar as fronteiras e exigir a exclusividade racial, de interromper a livre circulação de pessoas – principalmente, aquelas vindouras de países em desenvolvimento – mas sem deixar de garantir uma circulação controlada de bens e capitais.
“O medo de uma pandemia é mais perigoso do que o próprio vírus. As imagens apocalíticas da mídia escondem o profundo vínculo entre a extrema-direita e a economia capitalista. Como um vírus que precisa de uma célula viva para se reproduzir, o capitalismo também vai se adaptar à nova biopolítica do século XXI.
“O novo coronavírus já afetou a economia global, mas não irá deter a circulação e a acumulação de capital. De qualquer jeito, logo menos nascerá uma forma mais perigosa de capitalismo, com maior controle e purificação dos povos.”
Naturalmente, a hipótese formulada por Horvat é realista.
Mas também acho que esta hipótese mais realista não é realista, por subestimar a dimensão subjetiva do colapso e dos efeitos da deflação psicológica sobre a recessão econômica, no longo prazo.
O capitalismo sobreviveu à crise de financeira de 2008 porque as condições do colapso eram todas internas à dimensão abstrata da relação entre a linguagem, as finanças e a economia. Pode muito bem não sobreviver à epidemia porque agora entrou um fator extrassistêmico no jogo.
7 de março
Alex, meu amigo matemático, me escreveu: “Todos os recursos super-informáticos estão engajados na busca do antídoto para o corona. Essa noite sonhei com a batalha final entre o biovírus e os vírus simulados. De qualquer jeito, o ser humano já está do lado de fora, eu acho.
A rede informática mundial está à caça da fórmula capaz de enfrentar o infovírus contra o biovírus. É preciso decodificar, fazer simulações matemáticas, construir tecnicamente o corona-killer, para depois difundi-lo.
Enquanto isso, a energia é retirada do corpo social e a política mostra sua impotência constitutiva. A política é cada vez mais o espaço do anti-poder, porque a vontade não tem controle nenhum sobre o vírus.
O biovírus prolifera no corpo estressado da humanidade global.
Os pulmões são o ponto fraco, ao que tudo indica. As doenças respiratórias têm se propagado proporcionalmente com a propagação de substâncias irrespiráveis na atmosfera. Mas o colapso ocorre quando, ao se encontrar com o sistema midiático e se misturar com a rede semiótica, o biovírus transfere sua potência enfraquecedora ao sistema nervoso, ao cérebro coletivo, obrigando-o a desacelerar seus ritmos.
8 de março
No transcurso da noite, o primeiro-ministro Conte comunicou a decisão de por em quarentema um quarto da população italiana. Piacenza, Parma, Reggio e Módena estão sob quarentena. Bolonha ainda não, por enquanto.
Nos últimos dias, falei com Fábio, falei com Lúcia, tínhamos marcado de jantar juntos esta noite. Fazemos isso de vez em quando, nos encontramos em algum restaurante ou na casa de Fábio. São jantares um pouco tristes, mesmo não falando nisso, porque nós três sabemos que se trata de um resíduo artificial do que antes ocorria naturalmente, várias vezes por semana, quando nos reuníamos com mamãe.
Esse hábito de nos encontrarmos para almoçar – e, com menos frequência, para jantar – com mamãe, tinha resistido, apesar de todos os eventos, movimentos e mudanças depois da morte de papai: encontrávamos mamãe para almoçar sempre que possível.
Quando minha mãe não conseguiu mais ser capaz de preparar o almoço, esse hábito acabou. E, aos poucos, a relação entre nós três mudou. Até então, apesar de termos sessenta anos, continuávamos nos encontrando quase todo dia, de forma natural, sentando nos mesmos lugares da mesa que ocupávamos quando tínhamos dez anos. Ao redor da mesa persistiam os mesmos rituais. Mamãe sentava-se ao lado do aquecedor, pois isso lhe permitia continuar tomando conta da cozinha enquanto comia. Lúcia e eu falávamos de política como falávamos há mais ou menos cinquenta anos, quando ela era maoísta e eu operaíssta.
Esse hábito acabou quando minha mãe iniciou sua longa agonia.
Desde então, temos de nos organizar para jantar. Às vezes, vamos num restaurante asiático localizado lá pra baixo das colinas, perto do teleférico que fica na estrada para Casalecchio; às vezes, vamos ao apartamento de Fábio, no sétimo andar de um prédio popular ao atravessar a ponte longa, entre Casteldebole e Borgo Panigale. Da janela, é possível ver os jardins que cercam o rio e, lá longe, conseguimos enxergar o Morro San Luca — e à esquerda dele, vemos a cidade.
Então, há alguns dias, tínhamos combinado de nos encontrar esta noite para jantar. Eu tinha que levar o queijo e o sorvete. Cristina, mulher de Fábio, ia preparar a lasanha.
Tudo mudou hoje de manhã e, pela primeira vez, como agora percebo, o coronavírus entrou em nossas vidas, não mais como um objeto de reflexão filosófica, política, clínica ou psicoanalítica, mas como um perigo pessoal.
Primeiro, foi a ligação de Tânia, a filha de Lúcia que mora com Rita em Sasso Marconi já faz algum tempo.
Tânia me telefonou para me dizer: fiquei sabendo que você, mamãe e Fábio querem jantar juntos, não faça isso. Estou de quarentena porque uma das minhas alunas (Tânia dá aulas de ioga), é médica em Sant’Orsola e faz alguns dias o teste dela deu positivo. Eu sofro um pouco de bronquite, motivo pelo qual decidiram fazer o teste em mim também, e enquanto aguardo, não posso sair de casa. Eu respondi bem cético, mas ela foi implacável e me disse uma coisa que até então eu não tinha pensado.
Me disse que a taxa de transmissão de uma gripe comum é de 21%, enquanto a taxa de transmissão do coronavírus é de 80%. Para ser mais preciso: no caso de uma gripe comum, é necessário se encontrar com quinhentas pessoas para contrair o vírus, enquanto que, com o corona, basta encontrar cento e vinte pessoas para pegar. Interessante.
Na sequência, ela, que parece estar muito bem informada porque foi fazer o teste e, portanto, falou com os médicos que estão na linha de frente do combate ao contágio, me disse que a média de idade dos mortos é de 81 anos.
Bom, disso eu já desconfiava, mas agora tenho certeza. O coronavírus mata os idosos, mas, principalmente, os idosos asmáticos, como eu.
Em seu último comunicado, Giuseppe Conte, que parece ser uma boa pessoa, um primeiro ministro meio que por acaso, que nunca deixou de ter o ar de quem tem pouco a ver com a vida política, disse: “vamos pensar na saúde de nossos avós”
Comovedor, visto que me encontro no desconfortável papel do avô a ser protegido.
Assim, abandonei minha postura de cético, disse a Tânia que eu a agradecia muito e que obedeceria suas recomendações. Liguei para Lúcia, falamos um pouco e decidimos adiar o jantar.
Percebo que acabo de entrar no clássico vínculo duplo batesoniano. Se eu não ligar por telefone para cancelar o jantar, coloco-me na posição de ser um hospedeiro físico, de poder ser um vetor de transmissão do vírus que poderia matar meu irmão. Por outro lado, se eu ligar, como estou fazendo agora, para cancelar o encontro, caio na posição de ser um hospedeiro psíquico, ou seja, de propagador do vírus do medo, o vírus do isolamento.
E se essa história durar tempo demais?
9 de março
O pior problema é o do excesso de carga ao qual está submetido o sistema de saúde: as unidades de terapia intensiva estão à beira do colapso. Existe o risco de não conseguir curar todos aqueles que precisam de uma intervenção urgente, fala-se até da possibilidade de ter que escolher entre pacientes que podem ser curados e pacientes sem chance.
Nos últimos dez anos, foram cortados 37 bilhões de euros do sistema de saúde pública, as UTIs foram reduzidas e o número de clínicos gerais caiu radicalmente.
Segundo o site quotidianosanità.it, “em 2007, o Serviço Sanitário Nacional público contava com 334 Departamentos de Emergência (DEA) e 530 de primeiros socorros. Pois bem, dez anos depois, a redução foi extrema: foram fechados 49 DEAS (-14%) e 116 primeiros socorros (-22%). Entretanto, o maior e mais evidente corte ocorreu com as ambulâncias, tanto do tipo A (para emergências), como do tipo B (transporte sanitário). Em 2017, temos que as do tipo A sofreram uma redução de 4%, se comparadas com dez anos atrás, mas as do tipo B foram cortadas pela metade, com uma diminuição de -52%.
Também, é preciso ter em conta como diminuíram extremamente as ambulâncias com um médico a bordo: em 2007, o médico estava presente em 22% dos veículos; em 2017, em apenas 14,7%. As unidades móveis de reanimação foram reduzidas em 37% (de 329 para 205 — desde 2007 até 2017). O reajuste afetou os asilos particulares de idosos que, de todo modo, têm bem menos estruturas e ambulâncias do que os hospitais públicos.
“Com esses dados, é possível perceber que houve uma contração progressiva dos leitos em escala nacional, muito mais evidente e relevante no número de leitos públicas em comparação com a proporção dos administrados de forma privada: o corte de um total de 32.717 leitos em sete anos, remete principalmente ao sistema público, com 28.832 leitos a menos do que em 2010 (-16,2%); enquanto foram 4.335 leitos a menos no sistema particular (-6,3%).”
10 de março
“Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim”.
Isso está escrito nas dezenas de caixas de máscaras, vindas da China. As mesmas máscaras que a Europa nos negou.
11 de março
Não fui para Via Mascarella, como costumo fazer no dia 11 de março de cada ano. Lá, costumamos nos encontrar de frente pra lápide que celebra a morte de Francesco Lorusso, alguém pronuncia um discurso breve, é depositada uma coroa de flores ou uma bandeira da Lotta Continua que alguém tinha guardada no sótão, e nos abraçamos, nos beijamos num forte abraço.
Desta vez não tive vontade de ir, porque não gostaria de ter que dizer a nenhum de meus velhos companheiros que não podemos nos abraçar.
De Wuhan, chegam fotos de pessoas comemorando, todas rigorosamente com a máscara verde. O último paciente com coronavírus teve sua alta de um dos hospitais construídos rapidamente para conter o afluxo.
No hospital de Huoshenshan, primeiro ponto da visita, Xi elogiou médicos e enfermeiras, chamando-os de “os mais belos anjos” e de “mensageiros da luz e da esperança”. Os profissionais da saúde da linha de frente assumiram as missões mais difíceis, disse Xi, chamando-os de “as pessoas mais admiráveis da nova era, e que merecem os maiores elogios”.
Entramos, oficialmente, na era biopolítica, na qual os presidentes não conseguem fazer nada, e somente os médicos podem — embora também não possam tudo.
12 de março
Itália. O país inteiro entra em quarentena. O vírus avança mais rápido do que as medidas de contingência.
Billi e eu vestimos nossas máscaras, pegamos as bicicletas e vamos às compras. Somente as farmácias e mercados de alimentos podem continuar abertos. O mesmo para os quiosques. Compramos os jornais. E também as tabacarias. Compro papel de seda, mas o haxixe começa a minguar em sua caixa de madeira. Logo menos ficarei sem droga e na Piazza Verdi já não é mais possível encontrar nenhum dos rapazes africanos que vendem para os estudantes.
Trump usou a expressão “foreign virus” [vírus estrangeiro].
All viruses are foreign by definition, but the President has not read William Burroughs. [Todos os vírus são estrangeiros por definição, mas o presidente não leu William Burroughs].
13 de março
No Facebook, tem um cara espertinho que publicou em meu perfil: “olá, Bifo, aboliram o trabalho”.
Na verdade, o trabalho só é abolido para alguns poucos. Os operários das indústrias estão em pé de guerra porque precisam continuar indo à fábrica como sempre, sem máscaras nem outras proteções, a meio metro de distância um do outro.
O colapso e, depois, as longas férias. Ninguém sabe dizer como sairemos desta.
Poderíamos sair, como alguns predizem, sob as condições de um Estado tecno-totalitário perfeito. No livro Black Earth, Timothy Synder explica que não existe melhor condição para a formação de regimes totalitários do que as situações de emergência extrema, quando a sobrevivência de todos está em jogo.
A AIDS criou a condição para a diluição do contato físico e para o lançamento de plataformas de comunicação sem contato: a internet foi preparada pela mutação psíquica denominada AIDS.
Agora poderíamos passar para uma condição de isolamento permanente dos indivíduos, e as novas gerações poderiam internalizar o terror ao corpo dos outros.
Mas, o que é o terror?
O terror é uma condição na qual o imaginário domina a imaginação por completo. O imaginário é a energia fóssil da mentalidade coletiva, as imagens que a experiência depositou nela, a limitação do imaginável. A imaginação é a energia renovável e livre de preconceitos. Não utopia, mas uma recombinação dos possíveis.
Existe uma divergência sobre o tempo que virá — poderíamos sair desta situação imaginando uma possibilidade que até ontem parecia impensável: redistribuição de renda, redução do tempo de trabalho. Igualdade, simplicidade, abandono do paradigma do crescimento, investimento de energias sociais em pesquisa, educação e saúde.
Não temos como saber de que jeito sairemos da pandemia, cujas condições foram criadas pelo neoliberalismo, pelos cortes à saúde pública, pela superexploração psíquica. Poderíamos sair dela definitivamente sós, agressivos, competitivos.
Mas, pelo contrário, também poderemos sair dela com um grande desejo de abraçar: solidariedade social, contato, igualdade.
O vírus é a condição de um salto mental que nenhuma pregação política teria conseguido gerar. A igualdade voltou ao centro das atenções. Pensamos nela como o ponto de partida para os tempos que virão.
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A pandemia como chave do futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU