18 Março 2020
A queda do governo do Movimento ao Socialismo – MAS nos permite refletir sobre as esquerdas, as vias de mudança social, a questão da democracia e, não menos importante, como evitar o backlash.
O artigo é de Pablo Stefanoni, jornalista argentino, em artigo publicado por revista Nueva Sociedad, edição Março/2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A renúncia e saída para exílio de Evo Morales, em novembro passado, não só terminou abruptamente com o chamado "processo de mudança" iniciado em 2005, na esteira do ciclo de mobilizações iniciado em 2000 e que teve seu momento mais intenso na "guerra do gás" de 2003. Também significou a queda de um dos governos da "esquerda" que mais atraiu simpatia em escala global. Portanto, desde então, as discussões sobre o que realmente aconteceu na Bolívia continuam atravessando a esquerda internacional. Uma parte mantém uma citação "total" e a outra, uma minoria, mas com números relevantes, de que não houve golpe senão que Evo Morales teria caído sob seu próprio peso.
O problema dessas visões é que elas tornam invisível uma série de questões relevantes e desprezam a sociologia política da crise boliviana: nem a tese do golpe de Estado nem a do "não golpe" são capazes de explicar o desvio reacionário específico em que entrou a Bolívia, que combina um processo de direita "de cima" e, também, "de baixo", isto é, da própria sociedade civil. Nem informa sobre a maneira como os atores de ambos os blocos mudaram naqueles dias e nos posteriores. Nem na complexa sequência de eventos.
Há duas questões que devem ser enfrentadas para fazer qualquer "anatomia da derrubada" do governo do Movimento ao Socialismo (MAS), sem descuidar os "momentos fugazes" que, em contextos de crise, definem a evolução dos eventos.
A primeira é que as organizações sociais, apesar das promessas de seus líderes nas reuniões com Evo Morales, não saíram significativamente para defender o "governo dos movimentos sociais" em momentos decisivos. O segundo: que os militares jogaram suas cartas "como último recurso", ou seja, depois que o governo foi dominado pela reação nas ruas, que incluiu um motim policial em coordenação com os setores mais à direita da oposição, especialmente com o presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, e uma radicalização das mobilizações. Foi este último que teria fracassado as negociações que, de acordo com as referências do MAS, avançaram com Carlos Mesa em favor de uma solução que incluísse a renúncia de Evo Morales e a ascensão da presidente do Senado, Adriana Salvatierra, em uma espécie de governo de consenso de transição para convocar novas eleições.
Tudo isso não anula a tese do golpe. De fato, o fato de os militares "sugerirem" a renúncia do presidente e [colocar a faixa presidencial] em sua sucessora foi bastante semelhante a um golpe de Estado. Como a evidência de que os comandantes, especialmente da força aérea, começaram a agir por conta própria antes da demissão de Evo Morales, isto é, quando ele ainda era comandante em chefe (se deve dizer, também, que os militares foram "politizados" nesses 14 anos, incluindo cursos na Escola Antiimperialista etc., legitimando certa interferência política, embora no caso da Bolívia nunca tenham sido uma parte orgânica do poder como na Venezuela). No entanto, é necessário colocar a questão do golpe em uma estrutura mais ampla: a crise de uma forma de exercer poder cuja origem deve ser buscada no referendo de 21 de fevereiro de 2016, quando o governo consultou a população sobre uma mudança constitucional e o "Não" à reeleição indefinida venceu por 51,3% a 48,7% e, mais amplamente, na impossibilidade de pensar a possibilidade de uma derrota eleitoral.
O MAS - como parte da esquerda global - subestimou o que significa ignorar o resultado de uma consulta com o povo e apelou a uma miríade de argumentos para relativizar os resultados. A partir de então, e pela primeira vez desde 2006, a bandeira democrática foi deixada nas mãos da oposição, com importantes consequências para o futuro.
Após o 21-F, o governo dedicou todas as suas energias à criação de caminhos para a reeleição. Quase não havia outro item na agenda. É nesse contexto que, no final de 2017, o Tribunal Constitucional autorizou Evo Morales. Foi o que acabou criando o terreno fértil para a (re)emergência e legitimação de figuras radicais, como o próprio Camacho, que assumiu a liderança do Comitê Cívico com a bandeira do 21-F e denunciou um "pacto" do Elites de Santa Cruz com o governo do MAS.
A campanha eleitoral, como refletida no documentário de Diego González, "Antes do golpe", não foi épica, baseou-se na mobilização de recursos estatais, e não na mobilização social, e pressionou bastante o clima político. Nessa tensão, as alegações de "fraude" foram montadas em 20 de outubro, que tiveram respostas descoordenadas e às vezes não credíveis do governo, que acabaram por minar a legitimidade presidencial. Tudo isso ajudou com o tempo preciso da Organização dos Estados Americanos (OEA) para avançar seu relatório.
Com o paradoxo de que, no início da campanha eleitoral, Luis Almagro havia sido denunciado como capanga de Evo pela oposição e o ex-presidente Jorge Tuto Quitoga chegou a acusá-lo de "vender sua alma" ao governo do MAS.
É claro que Evo Morales não caiu em seu próprio peso, como Rita Segato sustentava. O MAS caiu devido à mobilização de setores urbanos, auxiliado por um tumulto policial nos 9 departamentos do país e, finalmente, pelas Forças Armadas, em um contexto de extrema violência contra qualquer pessoa identificada com o partido no poder que beira um clima de fascistização social. Essas mobilizações denunciaram déficits democráticos reais, mas, como já aconteceu com outros levantes "anti-populistas", como o ocorrido em 1946, que terminou com o assassinato e enforcamento brutal do presidente Gualberto Villarroel, o resultado não foi mais democracia, mas um tipo de reacionário e revanchismo impopular.
Essa dimensão era um ponto cego para a esquerda crítica, que, apesar das evidências iniciais, diluiu a faceta restauradora do "novo bloco de poder" e focou apenas na "dissolução do domínio do MAS". Apesar de as mobilizações incluírem diversos atores e sensibilidades ideológicas (ambientalistas, progressistas, feministas etc.), a direita conservadora prevaleceu sem dificuldades. Um caso excepcional é o da feminista libertária María Galindo, que, apesar de suas fortes críticas ao MAS, se posicionou fortemente contra a virada conservadora e reacionária. Deve-se dizer que uma reviravolta incluiu vários tipos de grupos civis que assediaram embaixadas, especialmente a mexicana onde existem asilos e casas particulares, e adotaram a estética da extrema direita e formas de mobilização.
No caso do exterior, grande parte da esquerda, principalmente a nacional-popular, assumiu um tipo de solidariedade internacionalista que teve pouco efeito na Bolívia, onde não havia resistência anti-golpe no sentido estrito. Enquanto o núcleo no exílio denunciou o golpe de Buenos Aires com uma radicalidade que não percebia as possibilidades de ação na situação boliviana, o próprio bloco parlamentar do MAS, que controla dois terços do Congresso, entrou em uma dinâmica de " pacificação »e negociação com a presidente interina Jeanine Áñez e ela se afastou das instruções da ex-presidente. Existem vários elementos para explicar essa situação. Uma é a falta de organicidade do MAS e do decisionismo presidencial: após a renúncia de Evo Morales e a saída do poder de outras figuras "fortes" do governo anterior, parlamentares que consideravam que não tinham o lugar que mereciam eram vistos de maneira inédita. situação de poder (como a alteña Eva Copa) e começou a jogar na nova quadra com a legitimidade de "colocar o corpo". Por outro lado, ao permanecer na Bolívia, esses parlamentares estavam mais conscientes das novas relações de força e da amplitude da rejeição do MAS, especialmente nos dias após a saída de Morales do país. (E, possivelmente, alguns também cuidam apenas de seus salários e posições).
Por sua vez, as organizações sociais lutaram por algumas questões delicadas, como a defesa dos Wiphala, mas não pediram a volta de Evo Morales ao poder. Isso mostrou a distância entre o exílio e a Bolívia, mas também reflete a situação dos movimentos sociais enfraquecidos, paradoxalmente? por anos de "governo de movimentos sociais": falta de pluralismo e imposição de decisões governamentais, perda de intensidade da vida interna, camadas de liderança interessadas demais em ocupar posições no Estado, etc. De muitas maneiras, e com o alto pragmatismo que muitas vezes os caracteriza, as organizações se prepararam para o cenário pós-Evo (o que não significa que o ex-presidente não seja mais uma figura popular ou que sua carreira política tenha terminado). Um exemplo disso foi o apoio a David Choquehuanca como candidato à presidência - figura agora resistida por Morales, que finalmente permaneceu como parceiro do ex-ministro da Economia Luis Arce Catacora, apoiado desde Buenos Aires - e o entusiasmo gerado pelo jovem plantador de coca Andrónico Rodríguez, hoje, de fato, chefe das Seis Federações do Trópico de Cochabamba, que ainda são presididas por Morales.
De fato, o núcleo de Buenos Aires, o comitê parlamentar e as organizações sociais (especialmente aquelas com uma matriz camponesa) são as três galáxias que hoje representam o que é o MAS, uma organização que sempre carecia da verdadeira organicidade e cuja a expectativa era de acesso ao Estado para setores populares há muito tempo excluídos do poder. Embora Evo Morales tenha sido central para manter o MAS unido, ele nunca foi estritamente um líder carismático. Progressivamente, devido às necessidades de reeleição, ele assumiu o papel de "líder insubstituível", mas sua legitimidade sempre se baseou na "ideia de auto-representação camponesa", que é um mito de origem do MAS e na imagem que "Evo é um de nós".
Os caminhos seguidos pelo processo de mudança boliviano traz várias questões à mesa. Uma delas é a possibilidade de pensar de maneira não catastrófica a saída do poder e as consequências de forçar repetidamente, contra todas as probabilidades, a reeleição presidencial; e junto com essas visões excessivamente instrumentais da democracia. A outra é como combinar a busca por mudanças profundas com um exercício pluralista de governo e uma melhoria na vida cívica. (A menos que alguém pense, como de fato alguns "bolivarianos" pensam, que a queda do MAS foi porque o governo não teria apertado suficientemente os parafusos - como Nicolás Maduro e os militares venezuelanos - e que o problema teria sido, então, o "excesso de democracia"). Além disso, um aspecto fundamental é como impedir que a reação reacionária seja legitimada.
Como pode ser visto na revisão da história recente, Evo Morales venceu em 2014 com mais de 60% dos votos e, nessa ocasião, até triunfou na relutante Santa Cruz, graças à boa situação econômica. O jornalista Fernando Molina chegou a falar, com provas, do "fim da polarização". Na época, ninguém falava em "tirania", como os colunistas da classe média fazem hoje em dia na mídia que não cessa em seus esforços para injetar misticismo na "revolução da pititas" (pelos cordões usados no bloqueio das ruas), lida como uma "revolução libertadora". Chegou-se a falar até em "14 anos de penumbra": o sol não parecia nascer sob o evismo. Mas, contrariamente à crença de alguns setores populares nacionais, o que repolarizou a Bolívia não foram medidas radicais do governo (não existiam desde 2014), mas a insistência na reeleição indefinida, em um país que ao longo de sua história foi anti-reelecionista e foi atormentado por motins contra aqueles que tentavam permanecer no poder. Nesse caso, uma reação mais ampla contra a emergência plebéia surgiu sobre esse movimento, que nesses anos corroeu o poder "nobre" do país como nunca antes.
Nesse contexto, o MAS entra em um novo estágio de recomposição, após o golpe que significou a saída do poder, e talvez a autocrítica. Em qualquer cenário, o MAS será fundamental na governança futura. Mesmo se ele perder a presidência, ele ainda poderá ter uma maioria parlamentar. Pesquisas mostram que ele mantém uma base sólida de apoio popular de cerca de 30% e hoje é a única força de esquerda com projeção política no país e a mais importante no mundo rural boliviano.
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As lições que nos deixa a Bolívia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU