28 Janeiro 2020
"O que Francisco deseja despertar em um mundo marcado pela mentira e pela falsificação são 'histórias que edifiquem, e não as que destruam; histórias que ajudem a reencontrar as raízes e a força para prosseguirmos juntos'. O papa convida a buscar 'narrações construtivas, que solidificam os laços sociais e o tecido cultural'. Narrativas embebidas pela beleza, pela bondade, pela verdade. Textos que teçam relações. Tessituras de vida que recomponham os 'rasgões' sociais, culturais, políticos e econômicos cada vez mais evidentes e profundos."
A opinião é de Moisés Sbardelotto, jornalista e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. É também autor dos livros "E o Verbo se fez rede: religiosidades em reconstrução no ambiente digital" (Paulinas, 2017) e "E o Verbo se fez bit: a comunicação e a experiência religiosas na internet" (Santuário, 2012).
Desde o início de seu pontificado, Francisco tem ressaltado que não há futuro sem um enraizamento na história vivida. Em sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais deste ano, ele ressalta ainda mais a importância do patrimônio da memória e da história também na comunicação. O tema escolhido pelo papa é: “‘Para que possas contar e fixar na memória’ (Ex 10, 2). A vida faz-se história”. A mensagem foi divulgada nessa sexta-feira, 24 de janeiro, memória de São Francisco de Sales, padroeiro das comunicadoras e dos comunicadores.
Relação, narração, memória e história são os grandes eixos que compõem o horizonte comunicacional da mensagem papal. “O ser humano é um ser narrador”, afirma o papa. Ele tem “necessidade de narrar-se a si mesmo”, de “tecer” histórias, para se “revestir” delas e cuidar e guardar a própria vida.
A própria palavra “texto”, aliás, vem do latim “textus”, que significa justamente tecido. Ser é tecer relações e sentidos.
Entretanto, o papa reconhece que vivemos uma realidade marcada pela “confusão das vozes e mensagens que nos rodeiam”, ou, nas palavras de um relatório do Conselho da Europa de 2017, uma verdadeira “desordem informacional”. Quase não nos damos conta, reconhece Francisco, da quantidade de “fofocas e intrigas”, “violência e falsidade”, “histórias devastadoras e provocatórias, que corroem e rompem os fios frágeis da convivência, “informações não verificadas”, “discursos banais e falsamente persuasivos”, “proclamações de ódio” que consumimos a todo instante na nossa dieta midiática cotidiana.
Todo esse fenômeno de “falsificação” da comunicação – que Francisco já abordou na mensagem de 2018 ao falar de “fake news e jornalismo de paz” – alcança hoje “níveis exponenciais”, de acordo com o papa, como o chamado “deepfake”, imagens ou sons humanos manipulados e combinados por sistemas de inteligência artificial sobre outros vídeos ou sons já existentes, com tamanha qualidade que sua falseabilidade se torna extremamente difícil.
Junto a isso soma-se a “guerra de narrativas” que marca o jogo político-midiático contemporâneo. A verdade dos fatos – ou mesmo apenas a sua veracidade – não tem mais valor algum: interessa apenas a “minha” versão dos fatos, a “minha” opinião sobre eles. “Minha versão é melhor do que a sua!”, “minha mentira é maior do que a sua!” Fenômeno que, no Brasil, nos trouxe à situação cada vez mais bizarra e surreal em que nos encontramos politicamente.
A narração a que Francisco convida, além disso, também não se assemelha a outra modalidade de falsificação contemporânea, talvez menos intensa, mas igualmente prejudicial, como o chamado storytelling. Ou seja, a apropriação de técnicas narrativas por parte do mercado para fins publicitários e de marketing. Busca-se “vender uma boa história”, porque, no fim das contas, “uma boa história vende”. E muitas dessas histórias hoje tentam nos “narcotizar”, afirma o papa, para nos convencer de que, “para sermos felizes, precisamos continuamente de ter, possuir, consumir”. Essa “tentação da serpente”, como o livro do Gênesis já alerta, continua forte e atuante também hoje: “Se comeres, tornar-te-ás como Deus” (cf. Gn 3, 4).
Ao contrário, o que Francisco deseja despertar em um mundo marcado pela mentira e pela falsificação são “histórias que edifiquem, e não as que destruam; histórias que ajudem a reencontrar as raízes e a força para prosseguirmos juntos”. O papa convida a buscar “narrações construtivas, que solidificam os laços sociais e o tecido cultural”. Narrativas embebidas pela beleza, pela bondade, pela verdade. Textos que teçam relações. Tessituras de vida que recomponham os “rasgões” sociais, culturais, políticos e econômicos cada vez mais evidentes e profundos.
Tarefa nada fácil, e Francisco sabe que “é preciso paciência e discernimento para descobrirmos histórias que nos ajudem a não perder o fio”. Por isso, ele oferece como exemplo o “Narrador por excelência” – o próprio Deus encarnado em Jesus – e a “História das histórias” – a Escritura. Aqui, vale a pena citar o próprio Francisco na íntegra, em um parágrafo que é a melhor “síntese narrativa” de toda a mensagem:
“O título desta Mensagem é tirado do livro do Êxodo, narrativa bíblica fundamental que nos faz ver Deus a intervir na história do seu povo. Com efeito, quando os filhos de Israel, escravizados, clamam por Ele, Deus ouve e recorda-Se: ‘Deus recordou-Se da sua aliança com Abraão, Isaac e Jacó. Deus viu os filhos de Israel e reconheceu-os’ (Ex 2, 24-25). Da memória de Deus brota a libertação da opressão, que se verifica através de sinais e prodígios. E aqui o Senhor dá a Moisés o sentido de todos estes sinais: ‘Para que possas contar e fixar na memória do teu filho e do filho do teu filho (…) os meus sinais que Eu realizei no meio deles. E vós conhecereis que Eu sou o Senhor’ (Ex 10, 2). A experiência do Êxodo ensina-nos que o conhecimento de Deus se transmite sobretudo contando, de geração em geração, como Ele continua a tornar-Se presente. O Deus da vida comunica-Se, narrando a vida.
A narração cristã, portanto, nasce da experiência de um Deus que tem memória, de um Deus que se “re-corda” (palavra que, como lembra o papa, significa “levar ao coração”, “escrever no coração”). O próprio Deus faz memória e escreve no seu coração a aliança com o seu povo. Essa memória é narrada por Deus ao seu povo e, assim, o liberta. “O Deus da vida comunica-Se, narrando a vida”, na bela expressão de Francisco.
“Deus teceu-Se pessoalmente com a nossa humanidade – continua o papa –, dando-nos assim uma nova maneira de tecer as nossas histórias.” Essa memória, comunicada de geração em geração, é fonte de libertação de toda opressão. Cada pessoa, de geração em geração, é chamada por Francisco “a contar e fixar na memória os episódios mais significativos desta História de histórias: os episódios capazes de comunicar o sentido daquilo que aconteceu”.
O próprio Jesus seguiu esse mesmo estilo comunicacional, narrando a salvação a partir do cotidiano do povo. Os Evangelhos nos mostram que Jesus buscava comunicar ao povo a força vital do Reino de Deus recorrendo a relatos, contos, narrativas, “contação” de histórias. “Tudo isso Jesus falava em parábolas às multidões. Nada lhes falava sem usar parábolas” (Mateus 13,34). Ele não recorria aos mais elevados padrões da estilística retórica, nem às mais aprimoradas técnicas de expressão oral da sua época. Falava a linguagem do povo, com o gênero discursivo mais simples – as parábolas –, usando como referência elementos do cotidiano daquelas pessoas, como as próprias relações humanas, as festas, as ovelhas, o campo, a pérola, o fermento, a moeda, a videira, a figueira... Assim, aproximava a memória do passado e a vida presente.
Mas os Evangelhos também anotam: “Os discípulos aproximaram-se, e perguntaram a Jesus: ‘Por que usas parábolas para falar com eles?’ Jesus respondeu: ‘Porque a vocês foi dado conhecer os mistérios do Reino do Céu, mas a eles não. (...) É por isso que eu uso parábolas para falar com eles: assim eles olham e não veem, ouvem e não escutam nem compreendem’” (Mateus 13,10-17). A parábola, ao buscar expor e revelar realidades complexas narrando coisas simples, diz tudo a quem se dispõe a ouvir, mas não diz nada a quem fecha o ouvido. As parábolas deixam aos ouvintes a liberdade de acolher ou não esses relatos, assim como de relacioná-los com a vida pessoal de cada um. Só “quem tem ouvidos para ouvir” é que ouve (cf. Mateus 13,9).
“Aqui a vida faz-se história e depois, para o ouvinte, a história faz-se vida: tal narração entra na vida de quem a escuta e transforma-a”, afirma o papa esplendidamente. A força de um relato, de uma história, de uma narração se expressa na sua capacidade de transformação, de gerar mudanças. Uma história exemplar tem uma força transformadora. E as parábolas de Jesus são um exemplo de comunicação que questiona, surpreende, subverte: é outro olhar sobre a realidade. Basta pensar na história do Pai Misericordioso e do Filho Pródigo (cf. Lucas 15,11-32). O fim do relato não é aquele que se esperaria na “vida real”: qual pai, depois de tudo o que o filho lhe faz, não cobraria nada desse filho e, ao contrário, mandaria celebrar uma festa com um grande banquete? O que essa subversão das expectativas quer revelar sobre Deus e a sua relação conosco? Com isso, os Evangelhos não apenas no “informam” Jesus, mas também nos “performam” n’Ele, nos tornam semelhantes a Ele, afirma Francisco citando Bento XVI: “O Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que podem ser sabidos, mas também uma comunicação que gera fatos e muda a vida”.
O ser humano, por sua vez, só é um ser narrador porque se encontra “em devir”, afirma Francisco: ele se descobre e se enriquece com as “tramas dos seus dias”. Por isso, a memória não deve ser considerada como um corpo estático, mas sim como uma realidade dinâmica. Na exortação apostólica Evangelii gaudium (n. 13), Francisco afirma que a memória é uma dimensão da própria fé: “O fiel é, fundamentalmente, uma pessoa que faz memória”. Os cristãos e as cristãs fazem memória, primeiramente, de tudo o que foi vivido pelo povo de Israel, como resgata o trecho do livro do Êxodo escolhido para iluminar o tema da próxima mensagem papal. Jesus também nos deixa a Eucaristia como memória cotidiana da Igreja: “Fazei isto em memória de mim” (Lucas 22,19).
Francisco desafia a Igreja a viver hoje a alegria de evangelizar que nasça do horizonte de uma memória agradecida. “Os Apóstolos nunca mais esqueceram o momento em que Jesus lhes tocou o coração: ‘Eram as quatro horas da tarde’ (Jo 1, 39)”, relembra o pontífice (EG 13). Ao falar das pessoas que irão receber esse feliz anúncio, o papa afirma que “a memória do povo fiel, como a de Maria, deve ficar transbordante das maravilhas de Deus. O seu coração, esperançado na prática alegre e possível do amor que lhe foi anunciado, sente que toda a palavra na Escritura, antes de ser exigência, é dom” (EG 142).
É por meio da memória que experiências e vivências são repassadas de uma geração à outra por meio da narração, da contação de histórias. E toda história nasce da vida comum e se desenrola no encontro com outra pessoa. Narramos e, ao narrar, narramo-nos. E sempre narramo(-no)s a alguém. Já dizia Umberto Eco: “Qualquer coisa que se escreva, se escreve para dizer alguma coisa a alguém”. Por isso, para o pontífice, a comunicação é chamada a colocar a memória em contato com o desenrolar da vida comum, fazendo-se história, mediante a “narração humana, que nos fale de nós mesmos e da beleza que nos habita”. O problema da comunicação contemporânea é uma forma de narração que se crê autônoma e independente, autocentrada e autossuficiente, em que a outra pessoa não é sequer levada em consideração, é mero objeto e meio para alcançar determinados fins. Ou, no pior dos casos, é narrativamente assassinada, simbolicamente aniquilada em nome de tais fins.
Como cristãos e cristãs, somos chamados a recordar que “o Espírito Santo, o amor de Deus, escreve em nós”. Em um ambiente social, midiático e digital de violência verbal e discursos de ódio, é preciso usar a palavra como o cirurgião usa o bisturi, como dizia justamente São Francisco de Sales (“Filoteia”, cap. XXIX). É preciso reconhecer que, se quisermos ser reconhecidos e estar à altura do nome de cristãos e cristãs, não podemos falar em nome próprio. Somos apenas meros “prolongadores” de um “diálogo salvífico” cuja iniciativa é do próprio Deus, um diálogo desinteressado, sem limites nem cálculos, destinado a todos sem qualquer discriminação, como disse São Paulo VI ainda em sua primeira encíclica, Ecclesiam suam (1964, n. 42-44). Do outro lado da tela, não há apenas bits, números, máquinas e robôs, mas sim pessoas e vidas humanas, com rostos e histórias, que devem ser respeitadas e amadas em sua plena dignidade.
Para isso, é preciso reconhecer que “não existem histórias humanas insignificantes ou pequenas. Depois que Deus Se fez história, toda a história humana é, de certo modo, história divina”, afirma Francisco. “Na história de cada ser humano, o Pai revê a história do seu Filho descido à terra. Cada história humana tem uma dignidade insuprimível.” Segundo Francisco, “por obra do Espírito Santo, cada história, mesmo a mais esquecida, mesmo aquela que parece escrita em linhas mais tortas, pode tornar-se inspirada, pode renascer como obra-prima, tornando-se um apêndice de Evangelho”.
Em suas várias reflexões sobre o tema, Francisco coloca no centro de toda a sua reflexão comunicacional a pessoa com as suas relações e a sua capacidade inata de comunicação. Com o tema escolhido para este Dia Mundial das Comunicações, o papa pede a todos, sem excluir ninguém, que façam frutificar este talento: fazer da comunicação um meio para construir pontes, unir e compartilhar a alegria de ser irmãos e irmãs em humanidade, em um tempo marcado por contraposições e divisões, para que seja possível “uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões” (EG 239).
Com sua mensagem, em suma, Francisco reitera o chamado a “fazer memória daquilo que somos aos olhos de Deus, testemunhar aquilo que o Espírito escreve nos corações, revelar a cada um que a sua história contém maravilhas estupendas”. Comunicar em estilo cristão, sintetiza o papa, é fazer como Maria e “narrar com a vida as magníficas obras de Deus”. Assim, a comunicação, as histórias, as narrações de um verdadeiro cristão e cristã são aquelas que “testemunham o Amor que transforma a vida”.
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A vida se faz história: a comunicação como relação e narração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU