20 Dezembro 2019
Em sua última reportagem sobre os impactos ambientais na Amazônia, o jornalista Vandré Fonseca ouviu ribeirinhos que ficaram sem o peixe do rio Xingu.
A reportagem é de Vandré Fonseca (In memoriam), publicada por Amazônia Real, 18-12-2019.
Dos 11,2 bilhões de watts prometidos pela Usina de Belo Monte, nenhum chegou à casa do ribeirinho Dario Batista de Almeida, o seu Pivela, de 72 anos. Mas os impactos da obra que barrou o rio Xingu, no Pará, mudaram por completo a vida dele e de sua família, que agora habitam as margens do lago formado para mover as turbinas da usina.
“Esse barramento aí acabou, isso ficou um lago”, protesta seu Pivela. “As piracemas, um igarapé, uma grota, que é o lugar onde os peixes desovam, acabaram. As ilhas, não se veem mais. Nesta época (novembro), os peixes estão todos ovados, mas cadê piracema?”
Ele sabe que, sem peixes suficientes e ainda com muitos pescadores no Xingu, a situação só tende a se agravar. “O senhor já viu esticar mil, mil e quinhentos metros de rede? É um absurdo. E cada vez mais vai destruindo, destruindo. Tem que diminuir (a pesca)”, afirma.
No passado, uma boa pescaria, que durava de quatro a cinco dias, rendia cerca de 400 quilos de pescado. Pacus, tucunarés, piaus, matrinxãs, curimatás e pescadas eram vendidos em Altamira, a maior cidade da região, que fica a 815 quilômetros por rodovia de Belém, capital paraense. A fartura de peixes deixou de existir tão logo as obras de Belo Monte foram iniciadas, em 2010, durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
As opções para ribeirinhos como José Roberto Chagas de Almeida, de 45 anos, não são animadoras. Antes do alagamento, ele possuía uma pequena “ilha”, que dava poucos frutos, então a solução era pescar. Esse pedaço de terra não dá mais nada, porque agora está submerso no gigante espelho d’água. “A (empresa) Norte Energia falou para desocupar, pagou uma indenização e fomos para a cidade. Aí pescava e voltava. Pescava e voltava para a cidade. Foi quando teve esse reassentamento e viemos prá cá”, lembra.
Projeto estimado em R$ 40 bilhões de investimentos públicos e privados, Belo Monte é considerada a quarta maior hidrelétrica do mundo ao custo incalculável de ter mudado para sempre o curso da natureza na Floresta Amazônica. A primeira, das 18 turbinas, começou a operar em 2016, durante inauguração pela ex-presidente Dilma Rousseff. No dia 27 de novembro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro inaugurou a última turbina.
No entanto, antes das inaugurações os ciclos de cheia e vazante haviam cessado no rio Xingu. No imenso lago, não se vê mais bandos de pássaros em busca de cardumes, nem botos subindo à superfície. Aqui e ali, aparecem extensões de árvores desfolhadas, de galhos nus, morrendo sob as águas.
Ainda procurando se acostumar às mudanças, José Roberto tem se dedicado aos pés de cacau e outras culturas que plantou. Parece acreditar que vão vingar, mas isso não lhe dá certeza de que sua vida se ajeitará. “Melhorou porque a gente está numa terra que não tem risco de alagar, dá para plantar”, compara. “O que piorou é que a comunidade ficou espalhada, uns foram para um lado, outros para outro. Parentes moravam todos perto e separou.”
O custo social de Belo Monte se revela ainda mais elevado quando agora se sabe que a usina vai gerar menos energia do que o prometido, conforme denunciavam cientistas e ambientalistas. Uma situação que oculta outra ameaça, a possibilidade agora assumida pelo governo federal de construir novas barragens para potencializar o aproveitamento do Rio Xingu pelas turbinas de usina.
A hidrelétrica deveria produzir 11,23 GW, mas a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) trabalha com a potência “assegurada” de 4,46 GW. A variabilidade climática e um reservatório “relativamente pequeno” seriam o motivo da produção menor de energia. Para os próximos anos, a previsão é de mais calor e menos chuva nas bacias do Xingu, Madeira e Tapajós, que concentra grande parte das usinas previstas ou já construídas na Amazônia.
Esse alerta já havia sido dado pelo ecólogo Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), com sede em Manaus, em artigos publicados na agência Amazônia Real. Segundo o cientista, o governo sabe que a polêmica hidrelétrica no Xingu só atingirá o pico de produção com mais barragens. Na série “Belo Monte: Lições da Luta”, Fearnside lembra que elas estavam previstas nos projetos originais, mas foram omitidas em mudanças feitas nos planos do governo. Inicialmente, haveria outras cinco barragens (quatro no Xingu e uma no Rio Iriri), além da principal.
Por se tratar de uma barragem a fio d’água, portanto sem formar um grande reservatório d’água, Belo Monte depende inteiramente da vazão do rio. Nos três meses de estiagem, de acordo com Fearnside, a usina jamais chegaria à produção máxima.
“A resposta para como uma barragem nessas condições poderia vir a ser considerada reside nos planos oficialmente negados para construir outras barragens rio acima de Belo Monte, a fim de armazenar água para ser liberada durante o período de baixa vazão”, escreveu o pesquisador. “Essas barragens inundariam vastas áreas de terra indígena. As proteções nas leis do Brasil, a Constituição e os acordos internacionais foram ignorados repetidamente na medida em que o projeto de Belo Monte avançou.”
As barragens omitidas nos planos do governo afetariam Unidades de Conservação, como a Reserva Extrativista Iriri, no Pará, terras indígenas com impactos sentidos até o Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, que é a primeira terra indígena homologada pelo governo federal.
Os estudos para a construção de Belo Monte iniciaram em 1980, durante o governo militar, com base em um inventário feito cinco anos antes. A intenção era construir duas usinas hidrelétricas, Babaquara (6,6 mil MW) e Kararaô (11 mil MW), e uma série de barragens ao longo do rio Xingu, que iriam garantir o fluxo de água necessário para a produção de energia nas usinas. Mas a mobilização de indígenas e comunidades tradicionais conseguiu suspender, em 1989, o financiamento prometido por organismos internacionais. Um novo projeto surgiu em 1994, já sem a série de barragens planejadas anteriormente. A solução apresentada foi deixar de lado a usina de Babaquara e desviar o curso do Rio Xingu, evitando assim atingir as Terras Indígenas que existem ao longo da Volta Grande.
A usina Belo Monte, contudo, adormeceu e seu processo de licenciamento só começou em 2007, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a emissão do Termo de Referência para os estudos ambientais até a Licença de Operação em novembro de 2015, com Dilma Rousseff. No projeto, direitos de comunidades tradicionais e impactos sociais e ambientais foram desconsiderados. No início de 2012, houve uma conveniente troca de presidentes do Ibama, com a saída em janeiro de Abelardo Bayma e a nomeação no mês seguinte de Curt Trennepohl.
Usina de Belo Monte | Reprodução: Fotos Públicas - Marcos Corrêa/PR
O governo federal recorreu a artifícios do governo militar para que a obra fosse adiante. Se isso não bastasse, ainda há suspeitas de superfaturamento e desvio de dinheiro das obras para corromper políticos. As denúncias são investigadas no âmbito da Operação Lava Jato. Os acordos obscuros que acompanharam as obras de Belo Monte fazem parte também da delação do ex-ministro, Antônio Palocci.
Embora tenha chegado a ser projetada para alagar uma área de 1,5 mil quilômetros quadrados (equivalente ao tamanho da cidade de São Paulo), a hidrelétrica tem um lago de 516 quilômetros quadrados graças ao uso de turbinas bulbo, que funcionam no nível do espelho d´água. A medida evitou a inundação de terras indígenas, mas também reduziu drasticamente o nível de água na Volta Grande.
A concessionária Norte Energia, proprietária da hidrelétrica, cadastrou 5.141 localidades urbanas que seriam atingidas pelo lago de Belo Monte. Em 2012, começaram a ser implantados os Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), mas até hoje ainda existem famílias atingidas que não foram realocadas.
A desapropriação das casas que ficavam na beira do rio Xingu incluiu também oleiros que dali tiravam o sustento e pescadores, que foram removidos para quilômetros de distância dos rios. As casas dos RUCs, contudo, foram mal construídas. Muitas já estão rachadas e as lajes cederam ou desabaram. “Na primeira vez que vim morar na casa, ela deu problema na estrutura, arrumaram”, lembra o oleiro Josildo Carmo de Freitas, de 48 anos. “Na segunda vez, também arrumaram. Na terceira, não deu tempo mais porque a laje estava caindo.”
Para Josildo, que também é pedreiro e mestre de obras, a Norte Energia preferiu construir sob uma estrutura em blocos, apoiada nas paredes da casa. Porém os blocos não têm resistência suficiente para sustentar as telhas de barro. O certo, segundo ele, seria erguer a moradia sob uma laje concretada. Em várias unidades do conjunto residencial, existem rachaduras, blocos de laje abaulados pelo peso dos telhados e problemas nos pisos.
Além da moradia precária, os RUCs são distantes de tudo, não contam com um transporte coletivo que funcione, há problemas no fornecimento de água e, como se fosse uma dupla punição, os valores das contas de energia assustam os moradores.
Os estudos para a construção de Belo Monte começaram em 1980, quando o governo federal planejava a implantação do complexo Altamira, com duas usinas Babaquara (6,6 GW) e Kararaô (11 GW). Após a Justiça barrar o licenciamento do projeto, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, ele retornou à pauta já no mandato do ex-presidente Lula. Em 2005, a construção da usina hidrelétrica foi aprovada pelo Congresso e se iniciaram novos estudos ambientais.
Durante as obras, a vigilância foi redobrada. Segundo Antônia Mello, coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre, a Força Nacional esteve presente todos os dias como forma de repressão e para coibir o protesto das pessoas, dos movimentos sociais e até dos trabalhadores das obras. “Recorreram a essa lei de suspensão de segurança, da ditadura militar, para dizer que o Brasil necessitava de energia, porque senão ia acontecer um grande apagão. Disseram que era uma questão de desenvolvimento do País, então tinha que acontecer Belo Monte”, diz.
Antônia Mello é uma das vozes a denunciar os impactos provocados pela construção da usina no Xingu. Mas nem a união entre beiradeiros (moradores das margens dos rios da região), índios, organizações não-governamentais e cientistas foi suficiente para frear o avanço do projeto, que deixou impactos e promessas não cumpridas. Para ela, Belo Monte é uma cicatriz na história da Amazônia e do Brasil.
“É uma marca destruidora para sempre, que vai ficar no coração, na vida, na mente das pessoas do Xingu”, afirma. “Acredito fica também uma marca na consciência das pessoas de bom senso, que esse não é o modelo de vida, de progresso e nem tampouco de desenvolvimento para as nações, para os povos. Nunca somos respeitados e, por mais boas que sejam as leis, elas nunca valem nós, nunca valem nesses momentos desses projetos desenvolvimentistas, destruidores da vida, destruidores do futuro das presentes e futuras gerações”.
*O jornalista Vandré Fonseca estava concluindo o texto dessa reportagem especial, quando foi internado por problemas de saúde. No dia 17 de fevereiro, seu o coração não resistiu. Passados dez meses de sua morte, estamos publicando seu trabalho para homenageá-lo, pois foi seu desejo mostrar a situação gravíssima de Altamira, em especial, a vulnerabilidade socioambiental das populações. Vandré amava a Floresta Amazônica, os seres e povos que nela vivem. A ele fica a gratidão por tudo que fez por nós.
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O rastro de destruição de Belo Monte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU