14 Dezembro 2019
Na Espanha, polo das greves globais do 8 de Março, ativistas e pensadoras provocam: “No capitalismo, trabalho não é orgulho, mas submissão. Temos direito a nosso tempo. Acessar recursos é participar da riqueza que todas produzimos”.
O texto é publicado por Outras Palavras, 12-12-2019. A tradução é de Antonio Martins.
O movimento feminista tem capacidade valente e incontestável de fazer avançar a história, por mais que tenha, agora e sempre, de enfrentar a reação daqueles que não querem que nada mude. Os feminismos impugnam a desigualdade e da opressão e questionam cada uma das estruturas que condenam as maiorias sociais a uma vida desvalorizada para sustentar os privilégios de poucos.
Algumas de nós pensamos há tempo que é inadiável impulsionar, com a força do movimento feminista, propostas que apontem para a garantia do necessário para manter vida digna. A vida de todas e de todos. E nesta reflexão, a possibilidade de lutar por uma Renda Básica com direito vai ganhando força. Lutar já, sem deixar de lado nenhuma de nossas outras batalhas importantes.
Por tudo isso, pensamos que chegou o momento de colocar no centro da agenda a Renda Básica a partir de uma perspetiva feministas. Referimo-nos ao rendimento individual, universal e incondicional por meio do qual se proporciona a toda a cidadania (mulheres e homens de qualquer idade e também meninas e meninos) o mínimo necessário para viver. Por que uma perspectiva feminista? Porque entendemos que esta Renda Básica deve estar vinculada à defesa e ampliação dos direitos e serviços públicos: Saúde, Educação, os vinculados aos cuidados e os que ainda é preciso desenvolver, como a Habitação. Sabemos que quando estes serviços são reduzidos ou pioram, a consequência é mais trabalho sobre nossos ombros e mais incerteza sobre nossas existências.
Vivemos asfixiadas pela angústia de que nossas vidas não sejam sustentáveis. Do mesmo modo, que tememos ser expulsas do mundo do emprego e convertidas em cuidadoras sem independência econômica, preocupa-nos ter que descuidar das pessoas que queremos para entregar todo nosso tempo a um trabalho cada vez mais precário. E não queremos, nem devemos ser as únicas que cuidam. Precisamos liberar tempo para todos e todas, necessitamos de condições materiais para que nossa luta pela divisão do trabalho de cuidados possa avançar. Si, precisamos de recursos: temos direito a nosso tempo, não queremos mais trabalho. Queremos uma Renda Básica.
Já não há emprego, nem emprego sob condições. Sabemos que o trabalho remunerado nos suga a vida, e quando não temos o temos a miséria nos devora. O emprego não pode ser, para as maiorias sociais, a única forma de ter acesso a recursos, porque isso nos mercantiliza e submete. Sabemos, ademais, que o “pleno emprego” – que nunca existiu de fato – hoje mostra-se como uma quimera, ou talvez como uma mentira que permite ir saltando entre um trabalho de merda e outro. No capitalismo, o trabalho não é fonte de emancipação, mas de exploração, e não há prazer, orgulho ou criatividade alguma em ser explorada. Aliás, ser exploradas para que? Para cumprir nosso papel na espiral produtivista que ameaça o planeta? Em meio a uma crise ecossocial, todas e todos trabalharem menos implica uma enorme economia de recursos e menos emissões de CO².
Seria a Renda Básica uma medida feminista? Uma proposta é feminista ou não à medida em que aporta maior autonomia às mulheres, à maioria de nós mesmas. E acaso, em nosso mundo, o dinheiro não é uma garantia? Talvez no futuro sejamos capazes de criar outro tipo de sociedade; no momento, renda é autonomia. No caso das mulheres, além disso, dispor de recursos também implica menor dependência diante dos homens: mais possibilidades de sair de uma situação de violência machista em relação ao marido, por exemplo, ou de não ter de suportar condições de trabalho insultantes ou abusos sexuais no ambiente de trabalho, por medo de ser despedida. Dispor de recursos sem condições nos liberaria de ter de nos expor ao paternalismo burocrático ou à violência institucional, para obter o básico para a vida, quando o mercado de trabalho nos exclui ou nos maltrata. A renda básica seria, enfim, uma ferramenta real, tangível diante das violências.
A renda básica não é nem uma concessão nem um presente. É uma forma radical de redistribuir toda a riqueza que produzimos coletivamente. Não é apenas a que tem a ver com o emprego, mas também o valor que geramos em nossos lares, onde se asseguram os cuidados. É também a contribuição social que todas e todos geramos na forma de informação, saberes, cultura. O fato de não serem monetizados não os torna menos parte da riqueza coletiva. Por isso, a Renda Básica é um mecanismo essencial que, somado à defesa e ampliação dos serviços públicos, contribuirá para nos dar mais poder, mais tempo e mais liberdade
As condições. Não nos servem rendas básicas que estejam abaixo do limite da pobreza. Neste caso, sempre teremos que completá-la com algo, e nos oferecerão misérias. Não nos servem rendas básicas se, para concedê-las, tira-se um único real dos serviços públicos. Sem Estado de Bem-Estar, a renda básica universal é uma chacota, uma guarda-chuva ínfimo sob o qual não é possível proteger-se das tormentas do capitalismo. Não nos servem rendas básicas universais se a universalidade é cultivada à sombra de muros cada vez mais altos, que separam quem é cidadão de quem não é. Sabemos que nenhuma estratégia é definitiva, nenhuma vai acabar sozinha com o capital ou o patriarcado. Mas acreditamos que garantir que ninguém fique para trás é um objetivo inadiável
Por tudo isso, hoje lutamos por uma Renda Básica e te convidamos a se unir a nossa luta assinando este manifesto.
Assinam dezenas de ativistas, intelectuais, movimentos e publicações alternativas. Veja aqui.
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Manifesto Feminista por uma Renda Cidadã - Instituto Humanitas Unisinos - IHU