06 Dezembro 2019
"É necessário um profeta para reconhecer o bem lá onde ele se apresenta, mesmo quando não tem todos os perfis “regulares” e os carimbos de garantia. Lá onde um homem e uma mulher, com uma história complexa pelas costas, chegam à decisão de se casar civilmente, esse é um evento que, sob certas condições, a Igreja pode reconhecer, com o qual pode se alegrar e pelo qual pode se felicitar".
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua, publicado por Come Se Non, 04-12-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Recebo esta carta, que levanta uma questão importante. Eu a reproduzo com algumas omissões por razões de confidencialidade. E, depois, tento respondê-la, segundo ciência e consciência.
“Olá, retomando um de seus textos (Andrea Grillo, Tempo graziato. La liturgia come festa. Pádua: Messaggero, 2018, pp. 104-106) sobre a bênção das alianças, pedimos-lhe uma opinião. Com o pároco (depois de uma formação diocesana sobre os casais feridos) na paróquia, acompanhamos em particular um casal (ela, solteira; ele, divorciado, porque a mulher o traiu com o atual companheiro). Em pouco tempo, eles se casarão civilmente, pediram a bênção das alianças. O pároco, após o devido discernimento, no qual avaliou a possibilidade de uma possível anulação, evidenciou a dúvida sobre a possibilidade. O seu texto nos pareceu esclarecedor: não um sacramento, mas um ato litúrgico. Por parte dos párocos, há uma concordância sobre a sua interpretação, mas há preocupação com a confusão que poderia se criar, e, portanto, eles a evitam, com intenção pedagógica. Ilumine-nos para desfazer esse temor, possivelmente com outras referências bibliográficas. Saudações cordiais.”
Parece-me que aqui nos encontramos diante de um caso clássico de contraste entre o bem civil e o bem eclesial. Para raciocinar com serenidade sobre esse ponto e para ajudar a tomar a decisão mais sábia e mais justa, parece-me que se deve considerar um elemento da questão que normalmente escapa à consideração pastoral. E, não por acaso, este que escreve encontrou alguma ajuda em um livro dedicado ao “tempo”. Porque a variável temporal deve ser assumida de modo novo pela Igreja, sem se fixar obstinadamente nos “tempos jurídicos”, que, como se sabe, podem ser exterminados. Explico-me melhor.
É evidente que o discernimento dos pastores deve estar relacionado à situação concreta. E, como se costuma fazer, inicia-se pela consideração da “solidez” do vínculo e, portanto, da possibilidade de proceder a uma causa para pedir o reconhecimento da sua nulidade. Exceto nos raros casos de “processo breve” – que não parecem dizer respeito ao caso em questão –, trata-se, contudo, de procedimentos longos e com uma imprevisibilidade de tempos que conflita profundamente com as escolhas existenciais dos sujeitos. Isso vale tanto para o caso em que se julgue que subsiste algum motivo de nulidade, quanto para o caso em que se constate a inexistência de um motivo fundamentado.
Mesmo nesse caso, o pastor não esgotou as próprias possibilidades de discernimento. Porque, justamente nesse caso, abre-se o espaço de uma avaliação que, sem afetar a validade do vínculo preexistente, reconheça as circunstâncias subjetivas particulares e detecte uma efetiva experiência de fracasso do vínculo. Evidentemente, esse não pode ser o caso apenas para situações adquiridas – ou seja, para casais que já se encontram na condição de ter contraído um vínculo civil e que podem ser readmitidos à comunhão eclesial. Isso também vale para quem se encontra em uma condição de “passagem” e optou por dar à nova união a única forma jurídica possível, ou seja, a civil.
Em alguns casos, como parece ser o descrito aqui, o pastor pode julgar que a união matrimonial do direito civil é “o bem possível” para o novo casal. Nesse caso, e apenas nesse caso, não haveria grande dificuldade em admitir que, se se trata de um “bem”, tal bem pode ser “abençoado” também eclesialmente, apesar do fato de não se tratar do sacramento do matrimônio, mas apenas do casamento civil. De fato, não é impossível que a Igreja, em certas circunstâncias, possa reconhecer que o casamento civil, quando é o único caminho possível, representa por si só um bem para o casal.
Para sair desse dissídio, parece-me que é preciso valorizar a clara afirmação com a qual a Amoris laetitia supera o princípio do século XIX para o qual, em matéria matrimonial, a forma objetiva legal tende a identificar o bem do sujeito e, assim, também, a vontade de Deus. Nessa mentalidade, pela qual muitas vezes somos afetados ainda hoje, totalmente de boa-fé, pôr qualquer gesto de “consentimento” com o casamento civil – por parte de um ministro da Igreja – parece ser um motivo de escândalo e de desorientação para o povo de Deus.
Deve-se acrescentar a isso outro fator, que incide fortemente nas nossas reações. E é a perda do “senso de medida”: um casal que pede a “bênção das alianças”, se o faz com um senso de limite, com modéstia e pacatamente, não pede um “sacramento clandestino”, não quer “se safar”, não quer “burlar a lei”, mas deseja ver reconhecido e participado aquele bem – aquele pouco ou muito bem – que está prestes a viver.
Para abençoar as alianças não é chamado o “funcionário público eclesiástico”, mas sim aquele presbítero que continua sendo sempre, além de sacerdote e rei, também um profeta. É necessário um profeta para reconhecer o bem lá onde ele se apresenta, mesmo quando não tem todos os perfis “regulares” e os carimbos de garantia. Lá onde um homem e uma mulher, com uma história complexa pelas costas, chegam à decisão de se casar civilmente, esse é um evento que, sob certas condições, a Igreja pode reconhecer, com o qual pode se alegrar e pelo qual pode se felicitar.
No momento em que fica claro que o sacramento do matrimônio e a bênção das alianças são duas “formas litúrgicas” diferentes, nenhum pároco pode ser forçado à bênção, mas nenhum pároco deve se sentir impedido a admiti-la, quando estiver convencido de que o bem em jogo é superior àquela parte de fragilidade e de mal que marcou a história de um dos dois cônjuges ou mesmo de ambos.
Não é óbvio que o princípio do escândalo está apenas na “bênção” desenvolta de toda realidade, mas talvez se revele ainda mais na nossa incapacidade de dar voz, palavra e forma àquelas pequenas ou grandes “porções de bem” que resgatam e relançam as existências de mulheres e homens. Novos inícios são reais. O fato de a Igreja não os subordinar simplesmente a um abstruso regime jurídico, mas os encontrar direta e francamente, como realidades incontornáveis, não é um limite dos nossos tempos.
Respeitar os tempos da vida dos homens e das mulheres muitas vezes implica aceitar que a Igreja fale, acima de tudo, com as linguagens simples do louvor, da ação de graças e da bênção. A Igreja sabe que pode falar a linguagem eucarística quando vive no coração da sua intimidade com o Senhor. Mas pode falar todas as línguas da bênção, do louvor e da graça quando encontra os sujeitos que se situam não no centro, mas ao longo do caminho, ou mesmo nas margens ou na periferia.
A bênção é uma clássica linguagem da periferia eclesial. A Igreja não só pode, mas também deve utilizá-la precisamente para reconhecer que, mesmo na ausência do bem máximo, um pequeno bem possível, quando reconhecido com benevolência, pode abrir portas e reconciliar corpos. Assim poderiam fazer os não raros profetas da vida futura, incompreendidos por não poucos profetas de certas desventuras.
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Casamento civil e bênção dos anéis: uma carta real e uma resposta possível. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU