08 Novembro 2019
Entre a pequena ilha dinamarquesa de Anholt e o norte do Alasca (Estados Unidos), existem mais de 6.000 quilômetros, com o imponente Ártico no meio. Uma distância insignificante para um vírus letal entre focas comuns e mosqueadas (Phoca vitulina): o vírus da cinomose (PDV, em inglês). A doença causa conjuntivites, rinites, úlceras cutâneas e problemas respiratórios nesses mamíferos, impedindo-os de nadar normalmente, o que em muitos casos leva à morte.
A reportagem é de Laura Chaparro, publicada por El Ágora, 07-11-2019. A tradução é do Cepat.
Desde 1988, quando foi identificado pela primeira vez na ilha de Anholt, o micro-organismo dizimou populações em seu caminho. Nesse mesmo ano, acabou com 23.000 focas comuns, ao passo que, 14 anos depois, outras 30.000 perderam a vida.
Em ambos os casos, a origem estava na pequena ilha dinamarquesa, por isso os cientistas ficaram surpresos ao encontrar no norte do Alasca lontras marinhas do norte (Enhydra lutris kenyoni) infectadas com cinomose, em 2004. O melhor aliado do vírus provou ser o aumento das temperaturas.
“Acreditamos que as rotas marítimas abertas, que surgiram como resultado da redução do gelo marinho, permitiram que populações e espécies que estavam separadas umas das outras entrassem em contato, trazendo o vírus com elas”, explica Tragoy Goldstein, diretora associada do Instituto One Health, na Faculdade de Medicina Veterinária, da Universidade da Califórnia em Davis (EUA).
A pesquisadora e uma equipe de cientistas de diferentes instituições dos Estados Unidos e do Reino Unido publicam, hoje, um estudo na revista Scientific Reports que mostra como a redução do gelo do mar do Ártico, como resultado da crise climática, abre caminho para que um vírus como esse se propague com regularidade entre o Atlântico Norte e o Pacífico Norte.
Para chegar a essas conclusões, os cientistas analisaram amostras de sangue e manchas nasais de mais de 2.500 focas (manchadas, listradas, aneladas e barbudas), leões marinhos de Steller (Eumetopias jubatus), ursos marinhos árticos (Callorhinus ursinus) e lontras marinhas do norte, durante 15 anos, entre 2001 e 2016. Os exemplares estavam em algum lugar entre o sudeste do Alasca e a Rússia, contando as Ilhas Aleutas e os mares de Bering, Chukotka e Beaufort.
Junto com as amostras dos mamíferos, os cientistas também analisaram seus deslocamentos e compararam os picos da cinomose com as flutuações do gelo ártico nesse período, mostrados pelas imagens por satélite. Dessa forma, os autores identificaram uma infecção e uma ampla exposição ao vírus no Pacífico Norte, a partir de 2003. Também registraram um segundo pico em 2009, registros que coincidem com reduções na superfície do gelo marinho.
Entre 2003 e 2004, mais de 30% dos animais foram infectados pelo vírus, uma incidência que caiu nos anos seguintes até aumentar novamente em 2009. Os dados mostram que as chances de infecção em mamíferos eram nove vezes maiores em 2004 e 2009 em comparação com o restante dos anos analisados. Esta tendência foi associada a rotas marítimas abertas devido à perda de gelo ártico em 2002, 2005 e 2008.
Ao contrário da Europa, onde o vírus causa grandes surtos e dizima populações inteiras, especialmente focas comuns, até agora no Pacífico Norte não está sendo tão virulento. “Há uma variação na gravidade da doença. As espécies de focas e ursos marinhos árticos e subárticos no Alasca são vulneráveis, mas ainda não sabemos quais podem ser os efeitos sobre suas populações”, pontua Tracey Goldstein. Em pesquisas posteriores, os autores esperam comprovar se existem também essa variabilidade nas espécies do Pacífico.
Como a maioria das amostras do presente estudo foi realizada com animais vivos, além de saber se o exemplar está ou não infectado, os cientistas desconhecem de que forma o vírus afetou sua saúde. “Temos evidências de que o vírus pode ter contribuído para a morte esporádica de lontras marinhas do norte e leões marinhos de Steller”, diz a especialista.
A pesquisadora confirma que, no momento, sua equipe apenas identificou esse vírus que viajou entre o Atlântico Norte e o Pacífico Norte, mas poderia ser o primeiro de muitos. “A perda de gelo marinho continuará alterando o comportamento animal, eliminando barreiras físicas. Além disso, a perda de gelo pode criar novas rotas para o movimento dos animais e introduzir doenças infecciosas no Ártico”, alerta.
Além desse vírus, as mudanças climáticas afetam de diferentes maneiras a fauna do Ártico. Jody Reimer, professora do departamento de Matemática, da Universidade de Utah (Estados Unidos), que não participou desta pesquisa, é especialista em como os organismos respondem às mudanças ambientais. No caso das focas aneladas, Reimer lembra que se reproduzem quase exclusivamente no gelo marinho, em cavernas escavadas acima da banquisa, mas sob a neve.
“Uma cobertura de neve insuficiente ou o degelo precoce da primavera poderiam ter um impacto negativo na criação de focas aneladas”, destaca. No entanto, outras espécies de focas árticas, que podem dar à luz tanto na terra como no gelo, podem se adaptar melhor a essa mudança de habitat.
A matemática também apresenta o exemplo das baleias, que serão afetadas de maneira desigual pelas mudanças climáticas. Se até agora, apenas as baleias-brancas (Delphinapterus leucas), narvais (Monodon monoceros) e baleias boreais (Balaena mysticetus) podiam nadar em águas cobertas de gelo, devido à falta de barbatanas dorsais, com a perda de banquisa, outras espécies, como as orcas (Orcinus orca), que até agora não podiam atravessar essas águas, poderão fazer isso, para competir pelos mesmos alimentos ou até acabar com elas.
Segundo a pesquisadora, essa expansão de espécies mais temperadas para o norte é conhecida como borealização do Ártico e está afetando os ambientes marinhos e os terrestres. Nesse contexto ártico em mudança, no qual os vírus, as novas espécies colonizadoras, o aumento das rotas de navegação e o aumento do turismo tornam impossível saber qual o futuro que aguarda a fauna do Ártico, parece claro que haverá vencedores e perdedores.
“Os vencedores serão as espécies mais generalistas em seu habitat e em suas necessidades alimentares, ao passo que aquelas com necessidades especializadas provavelmente serão menos capazes de se adaptar”, conclui Reimer.
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Perda de gelo no Oceano Ártico expande epidemias entre a fauna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU