06 Novembro 2019
O ambientalista e pesquisador Fernando Valladares, chefe do grupo Ecologia e Mudança Global, do Museu Nacional de Ciências Naturais de Madri (CSIC), argumenta que “estamos em uma emergência climática”, mas ressalta que “não podemos permanecer eternamente nessa situação, porque a emergência, como o nome indica, marca algo de excepcional”. “Precisamos de indicadores que nos apontem em que momento é possível que estejamos saindo dessa emergência”, enfatiza. Valladares é um ativo promotor de iniciativas do movimento pela Justiça Climática.
A entrevista é de Antonio Cerrillo, publicada por La Vanguardia, 03-11-2019. A tradução é do Cepat.
Quais são os elementos mais claros dessa emergência?
Gostaria de citar primeiro a velocidade com que as temperaturas aumentam, que tem uma dinâmica acelerada. A cada ano, a velocidade aumenta um pouco mais.
E?
Isso tem consequências especialmente perceptíveis e preocupantes em eventos climáticos extremos, que estão associados a uma maior quantidade de energia que vai se armazenando na atmosfera. O aquecimento faz com que furacões, tempestades, ondas de calor, secas e outros eventos extremos tenham maior intensidade e, em muitos casos, se comprovou que também possuem maior frequência.
Quais outros elementos destacaria?
Outra questão que justifica a emergência é o aumento do nível do mar. Algumas décadas atrás, o aumento foi de apenas alguns milímetros, mas agora é muito considerável, e isso começa a ter consequências em muitas infraestruturas, de portos a urbanizações e construções costeiras.
Desmotivaria uma longa emergência, causaria ecofadiga?
Devemos aprender a gerenciar a situação. Um estado de alerta constante não pode ser mantido indefinidamente. Qualquer cidadão enfrenta muitas situações difíceis em suas vidas diárias, com a economia ou a saúde, e há insurgências, instabilidade, terrorismo. Temos uma sucessão de emergências e conflitos que são fontes de preocupação e que periodicamente vão monopolizar nossa atenção. E, como fundo, temos o problema da mudança climática. Constatamos que, ao longo de 2019, a mudança climática não diminui como foco de interesse social. Agora, comprovamos que há uma preocupação mais ou menos constante, mas precisamos ser um pouco cautelosos quando falamos de preocupação ou alerta.
E não deveríamos falar muito mais de uma emergência ecológica?
Isso merece uma reflexão. É que a mudança climática não atua sozinha. Vimos que no caso dos grandes desastres, como em eventos causados por tempestades, furacões e outros, muitos efeitos devastadores não estão relacionados apenas à intensidade do evento, mas também à existência de construções artificiais que dificultam a drenagem e, em geral, de alguns ecossistemas degradados ou vulneráveis.
Exemplo ...
Por exemplo, muitos furacões devastaram regiões onde não existem mais manguezais, que atuam como uma defesa e proteção muito eficazes contra tufões e furacões. Quando essa defesa existe, o efeito do furacão é muito menos devastador. Nas Ilhas Baleares ou no sudeste espanhol, as tempestades tiveram efeitos terríveis porque os leitos dos rios estão pavimentados. Muitas regiões estão asfaltadas e desprovidas de vegetação, sendo assim, o fluxo acelera. O coquetel de mudanças ambientais faz com que os efeitos da mudança climática se agravem.
Devemos falar de alterações ambientais mais amplas?
No plano pedagógico, devemos ir passo a passo. Pode ser contraproducente oferecer de uma vez toda a informação sobre os impactos da atividade humana no meio ambiente. É preciso categorizá-la e começar com o mais alto nível de gravidade. É importante introduzir o conceito de alterações ambientais mais amplas. Mas, muita informação ao mesmo tempo pode gerar um bloqueio no cidadão. Seria errar o tiro e fazer com que as ações individuais percam a motivação.
Existe um ponto sem retorno nos sistemas naturais? Invoca-se, às vezes, o risco de que a mudança climática escape do controle. O risco de um degelo mais rápido na Antártica.
Há um certo grau de irreversibilidade nos efeitos da mudança climática. Os efeitos das atividades humanas nos ecossistemas naturais e na atmosfera não são lineares. Em geral, estão associados a dinâmicas aceleradas, como a que me referia antes. Não é que cada vez faça mais calor, é que o aumento do calor cada vez cresce mais depressa. É a diferença entre velocidade e aceleração. Também vemos isso na demografia humana, que possui uma dinâmica exponencial e, principalmente, no uso dos recursos per capita, ou na pegada ecológica, que também possui uma dinâmica exponencial.
Por quê?
A humanidade utiliza cada vez mais recursos. Uma parte da humanidade, a menos favorecida, tenta ter um equilíbrio com o mundo industrializado. O aumento da temperatura ou o desaparecimento de espécies têm dinâmica exponencial. E associado a essas dinâmicas exponenciais, temos o conceito de tipping point, pontos de inflexão ou limite. Por isso, o Acordo de Paris estabelece precisamente um limite no aumento das temperaturas (de 2 graus ou 1,5).
E o que são?
Sabemos, em primeiro lugar, que os ecossistemas, uma vez superado esse ponto de inflexão em certos parâmetros (temperatura, número de espécies, funcionalidade), se comportarão de forma muito diferente. Não significa necessariamente que não haja arranjo para algumas das principais funções do ecossistema. Vemos isso com as extinções de espécies. Muitas se foram para sempre. Isso é irreversível. Mas, sim, as funções podem ser parcialmente supridas: seja porque outras espécies semelhantes desempenham essa função ou porque, com o tempo, o sistema pode se reorganizar para que essa função possa ser executada por um conjunto de espécies. Isso não significa que a irreversibilidade inevitavelmente acarrete uma perda total de uma função e seja algo catastrófico.
Que outros exemplos você daria?
O calor latente que é armazenado nos oceanos é um exemplo de algo tão lentamente reversível que na prática o sentiremos como irreversível. As massas de água dos mares e oceanos se aqueceram gradualmente, nos últimos trinta anos. As emissões de gases do efeito estufa causaram uma quantidade de calor tão grande que não é facilmente reversível. Seria necessário muito tempo (séculos) e algumas condições físicas que podem não ocorrer, a médio prazo.
Se parássemos de emitir gases do efeito estufa, não perceberíamos de forma imediata ou facilmente que esse calor é revertido: porque iniciamos um processo no qual é difícil reverter. Você pode, isso sim, atenuar. E é provável que, se mantivéssemos essas emissões reduzidas por um longo tempo, e sem novas interferências de outros componentes climáticos, em alguns séculos a situação começaria a diminuir. Mas, durante muitas décadas, teríamos o problema das grandes massas de água com excesso de calor acumulado sem ser resolvido, mesmo que reduzíssemos as emissões de gases do efeito estufa.
A situação atual não pode causar ecofadiga?
Se tudo isso for mal explicado, pode-se dar lugar ao carpe diem, a que as pessoas digam “isto já começamos e não há como parar, não há nada a fazer ...”, o que leva ao ceticismo e desânimo. Ainda que alguns processos sejam irreversíveis, se fizermos nossa lição de casa, reduzirmos emissões, conservarmos a natureza e suas principais funções naturais, conseguiremos atenuar a taxa de mudança ambiental e, eventualmente, muitas das funções afetadas ou perdidas poderão ir se recuperando. O fato de uma mudança ser irreversível, não significa que enfrentamos o fim total da funcionalidade dos ecossistemas...
Há quem defenda que muitas ideologias já exibem essa falta de solidariedade, que os poderosos decidiram que não há recursos para todos, que a exclusão são as fronteiras. É isso a injustiça climática?
A injustiça climática me interessa não apenas por seus aspectos éticos, sociais e humanos, mas também porque somente através de uma mudança justa e coletiva conseguiremos reverter as tendências climáticas e ambientais que colocam em risco nossa própria existência. Uma das características dos objetivos de desenvolvimento sustentável é que ninguém deve ser deixado para trás. A justiça ecológica nos ajustes que façamos deve garantir que os vulneráveis não paguem pelos impactos.
Há um modelo econômico que dê resposta a tudo isso?
Estou muito preocupado com o fato de não haver um modelo econômico alternativo. Conversei com vários economistas e até os mais avançados não conseguem incorporar alternativas reais ao modelo econômico atual. A realidade é que não há uma economia dos recursos finitos. Todas as propostas econômicas se concentram, no máximo, na redução da inclinação à produtividade. Mas, não existe nenhuma que estabeleça como reduzir essa inclinação a zero ou, inclusive, torná-la negativa. Quero dizer que todo o nosso sistema socioeconômico se baseia na exploração e, eventualmente, na superexploração dos recursos naturais. Mas, dessa forma, apenas poderemos adiar o momento em que ficaremos sem recursos. Todas se apoiam em uma visão esotérica de que os recursos são infinitos.
Sem exceções?
Identificamos alguns recursos que são finitos, como os combustíveis fósseis, ou consideramos como elementos finitos algumas peças, mas globalmente se segue pensando que virão outros recursos para supri-los ou que será encontrada a tecnologia mágica que permitirá seguir atuando com a mesma filosofia que continua considerando os recursos infinitos. Mas, sabemos que não é assim, que a Terra é um sistema fechado, os recursos são finitos e não podemos consumi-los de maneira crescente, indefinidamente.
A população humana cresce e, acima de tudo, aumenta a pegada ambiental e o consumo de recursos per capita. E as duas coisas não podem crescer indefinidamente. Não podemos crescer indefinidamente. Cabem mais pessoas na Terra, mas distribuída de outra forma e com outros hábitos de consumo e outra estrutura socioeconômica.
Não servem as fronteiras?
Não podemos continuar tendo os muros que temos. As fronteiras devem ser dinâmicas, permeáveis, caso contrário, é impossível a coexistência em um mundo em mudança. Por exemplo, o conflito entre a Etiópia e o Egito pela água do Nilo é uma bomba-relógio. Pode acabar desencadeando um conflito bélico. Isso ilustra o perigo das fronteiras rígidas. Que milhões de pessoas em um país possam lutar contra milhões de pessoas em outro país por água, em uma região muito árida, sem poder aliviar tensões através de fluxos migratórios é um disparate perigoso.
Movimentos migratórios razoáveis deveriam ser facilitados em tempos de carestias ou situações críticas. Deveria ser tolerada uma migração gradual para lugares mais altos na medida em que a mudança climática avança. E isso deve ser aplicado à longa dúzia de grandes muros e fronteiras rígidas do planeta.
O que escolher: as ações individuais, os compromissos sociais e cívicos ou exigir a responsabilidade dos governantes? É necessária uma nova governança, um novo Acordo de Paris? Em quais linhas, você se sente mais identificado?
Estou há 20 anos participando de fóruns internacionais e há 30 anos preocupado com a saúde da Terra e acompanhando com inquietação as cúpulas da Terra. E, honestamente, nesses 30 anos, na prática, nada significativo foi feito. Foram realizadas coisas muitas pequenas, mas que somam pouco. Nos últimos meses, acumularam-se provas científicas indiscutíveis sobre os impactos da mudança climática, mas já tínhamos as informações essenciais para fazer algo, há 30 anos.
Sua posição?
Eu cheguei a esse silogismo simples. Os políticos não estão à altura. Não foram colocados nesse lugar de responsabilidade com as regras do jogo que são necessárias para enfrentar problemas complexos, a longo prazo. É possível que surja um Mahatma Gandhi ou um melro branco, mas é pouco provável.
O que falha?
Herdamos algumas regras de jogo que nos levam a ter políticos com visão de curto prazo, que se movem por ações a curto prazo, que significa a pior maneira de responder à mudança climática. Uma parte da sociedade espera que os políticos façam milagres. É como esperar que um jogador de basquete seja um craque jogando golfe. Seria um milagre. Não é provável que políticos que não são capazes de entrar em acordo para formar um governo provavelmente resolvam a mudança climática.
Quem são os que devem puxar a fila, os políticos ou os cidadãos?
Os políticos vão atrás. Cada um de nós precisa se mexer e os políticos irão tomando nota. Muitas atividades cívicas transformadoras são citadas, como reutilização, reciclagem, uso do transporte público ou favorecer as energias renováveis... Todos têm a lista em mente...
Não é suficiente?
Tudo isso está correto, bem-intencionado, mas todas essas ações não vão mudar o modelo socioeconômico e, portanto, serão insuficientes para conseguir frear e reverter nossa interferência no clima e nos processos globais do planeta. O mais importante dessas ações é o empoderamento da sociedade para fazer parte da mudança. Quando você recicla em casa, utiliza o transporte público ou realiza outras pequenas ações, está adquirindo o direito de fazer parte de uma mudança. Se formos capazes de desenvolver esse papel, alcançaremos um nível de motivação que não chegaria pelo aborrecimento, a raiva, a decepção ou o medo, que são os sentimentos que acompanham com maior frequência a mudança climática.
Medo, depressão, pena ou aborrecimento não conduzem à ação em toda a sociedade, só ativam determinados setores. Iremos nos mexer, realmente, quando sentirmos que fazemos parte da mudança. Agora, estamos apenas nas mudanças domésticas, cosméticas ou leves, importantes, mas insuficientes. A grande mudança virá e não temos que esperar que um político a traga. Chegará um momento em que, sim, um político a estimulará, mas será quando esse político perceber que a sociedade exige e está pronta.
Ligamos todas as nossas expectativas de felicidade à melhora do PIB, que, por sua vez, cresce quando a superexploração de recursos aumenta ... É um ciclo infernal. Essa é a dificuldade para sair disso, não é? Falamos como solução a descarbonização da economia...
Eu diria que somos apegados ao petróleo como um viciado em drogas que sabe que a droga o está matando, mas é incapaz de deixá-la. Vivemos de uma maneira muito fácil, muito cômoda, e isso se concretiza em um uso dos recursos muito desordenado, exemplificado na ideia de ter dois carros por família, em vez de compartilhar um por horários. Ficamos empolgados com um conforto e uma comodidade muito triviais. Acredito que o bem-estar também pode ser alcançado com bens e serviços que fisicamente podem ser mais incômodos, mas psicologicamente trazem satisfação por ter uma lógica, uma ordem e uma razão de ser.
Está falando de motivação?
O contágio e o desejo de mudança são muito diferentes se o esforço nos vem imposto de cima ou nasce de baixo. E as duas coisas são necessárias. De cima, é possível coordenar as ações individuais, mas a mudança tem que nascer de baixo, para que haja uma verdadeira motivação e comprometimento de todos ... Um paralelo é o esporte. Quem não pratica esportes pensa que o atleta faz um grande esforço, mas ele faz isso porque lhe proporciona prazer e satisfação, que compensam o esforço. Dadas as profundas mudanças sociais necessárias, devemos recorrer a todos os mecanismos motivacionais.
Devemos banir o imaginário de que o que se trata é dispensar os luxos que a sociedade está nos oferecendo. O futuro nos julgará por termos vivido em uma sociedade do esbanjamento, que não era consciente do abuso dos recursos naturais, nem das consequências climáticas e ambientais. No futuro, irão nos assimilar ao ‘homem das cavernas’, por queimar o petróleo, um recurso tão valioso e que serve para vários usos, mas que hoje em dia praticamente o utilizamos apenas para queimar.
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“O futuro nos julgará por termos vivido em uma sociedade do esbanjamento”. Entrevista com Fernando Valladares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU