14 Outubro 2019
"A produção atual de alimentos está comprometendo a produção futura devido à degradação dos solos e das fontes de água potável. O espectro da fome deve voltar a assustar o mundo no século XXI", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 11-10-2019.
“Para satisfazer a gula de poucos e matar a fome de muitos, destrói-se a vida no Planeta” - J.E.D. Alves (12/08/2019)
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, publicou o relatório “Climate Change and Land”, no dia 08 de agosto de 2019, onde aborda a relação entre o uso da terra e seus efeitos sobre a mudança climática. O relatório, que não apresentou escassez de notícias ruins, foi resultado de dois anos de trabalho de 103 cientistas de 52 países, que participaram voluntariamente do estudo.
Os solos têm se aquecido duas vezes mais rápido que o Planeta. A Terra como um todo aqueceu apenas 0,87 graus Celsius, enquanto a parte terrestre do Planeta aqueceu 1,5 grau Celsius e pode chegar a 3 graus Celsius rapidamente. Mais de 70% da terra sem gelo do planeta já é moldada pela atividade humana. À medida que as árvores são derrubadas e as fazendas tomam seu lugar, essa terra gerada por humanos emite cerca de um quarto da poluição global por gases do efeito estufa a cada ano, incluindo 13% de dióxido de carbono e 44% do metano.
O relatório relacionou o crescimento da população mundial e o aumento do consumo per capita de alimentos (ração, fibra, madeira e energia) ao aumento sem precedentes do uso de terra e da água doce para a produção comida. O aumento da produção e consumo de alimentos contribuíram para o aumento das emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE), perda de ecossistemas naturais e diminuição da biodiversidade. Ou seja, para alimentar um número crescente de humanos toda a base natural do Planeta tem sido danificada ou destruída.
A humanidade tem tido sucesso na redução do percentual de pessoas passando fome. O gráfico abaixo, do portal “Our Word in Data”, permite uma clara visão sobre o percentual de pessoas passando fome no mundo, considerando o total populacional. A taxa de mortes por conta da fome teve o seu maior valor na década de 1870, quando atingiu 1.426 mortes para cada 100 mil habitantes no mundo. A taxa caiu nas décadas seguintes, embora tenha tido picos de cerca de 800 mortes por 100 mil nas décadas de 1920 e 1940.
A partir da década de 1970 as taxas caíram significativamente, ficando em 88 por 100 mil habitantes em 1970, 43 por 100 mil na primeira década do século XXI e em apenas 3 mortes por 100 mil habitantes entre 2010-16. Ou seja, houve uma grande redução dos “famélicos da Terra”.
Mas, se a chamada “revolução verde” e a expansão da pecuária viabilizaram uma maior dieta per capita e o crescimento da população mundial, ao mesmo tempo, houve um processo de degradação dos solos e das fontes de água e um aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEE) em decorrência da intensificação do uso da terra. O avanço científico e tecnológico e o aumento generalizado dos combustíveis fósseis possibilitaram a redução da fome no mundo, que, em 2015, atingiu o nível mais baixo da história.
Porém, a insegurança alimentar e a desnutrição global aumentaram nos últimos 3 anos e podem aumentar ainda mais no futuro próximo, pois existe um círculo vicioso entre o processo de uso insustentável da terra e as mudanças climáticas. A produção atual de alimentos está comprometendo a produção futura devido à degradação dos solos e das fontes de água potável. O espectro da fome deve voltar a assustar o mundo no século XXI.
A edição do relatório anual da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) sobre o “O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo”, divulgado no dia 15 de julho de 2019, mostra os números do aumento global da insegurança alimentar.
A quantidade de pessoas que não tiveram acesso suficiente a alimentos, em 2005, foi de 947,2 milhões (representando 14,5% do total populacional mundial) e este número caiu para 785,4 milhões (10,6%) em 2015, conforme mostra o gráfico abaixo. Porém, a subnutrição subiu nos últimos três anos e atingiu 821,6 milhões de pessoas (10,8% do total) em 2018. Isto mostra que existe um grande desafio para se alcançar a meta 2 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que prevê fome zero até 2030.
A pobreza e a subnutrição acontecem com mais intensidade nos países onde as taxas de fecundidade estão acima do nível de reposição, pois existe uma relação direta entre o maior número de filhos e as carências de renda e acesso à alimentação. A maior incidência e o maior aumento da subnutrição ocorreu exatamente na África Subsaariana (onde a fecundidade é mais alta), que tinha uma taxa de subnutrição de 24,3% em 2005, caiu para 20,9% em 2015 e subiu para 22,8% em 2018. Cenários catastróficos voltam a assustar a população mundial.
É claro que o consumo de alimentos per capita nos países ricos é muito maior do que nos países pobres. Mas o alto crescimento populacional também é um fator que contribuiu para o desmatamento, a erosão dos solos e a crise hídrica.
Por exemplo, Moçambique – com população multiplicada por 10 vezes em 100 anos (passando de 6,2 milhões de habitantes em 1950, para 30,5 milhões em 2018 e 68 milhões estimados em 2050) – vive uma situação de colapso ambiental. As figuras abaixo mostram como o país foi desflorestado de maneira implacável e rápida num período de duas décadas. As imagens de satélite mostram o desmatamento em Moçambique de 2000 (esquerda) para 2012 (centro) e as projeções para 2019 (direita), segundo dados do próprio governo de Moçambique.
Moçambique tinha uma situação confortável de superávit ambiental, segundo os dados da Global Footprint Network. Em 1961, a biocapacidade per capita era de 6,6 hectares globais (gha) para uma pegada ecológica per capita de somente 0,83 gha. Porém, mesmo mantendo uma pegada ecológica muito baixa (de 0,87 gha em 2014) a biocapacidade do país diminuiu radicalmente e atingiu apenas 1,7 gha em 2016. No ritmo dos últimos 50 anos, Moçambique terá déficit ambiental na próxima década.
São inúmeros os exemplos de países que degradam o meio ambiente por excesso de consumo, de um lado, e por excesso de população, por outro lado. O Haiti é um exemplo na América Latina. A expansão da população, por um lado, e o aumento do consumo per capita, de outro, faz com que as atividades antrópicas ultrapassem as fronteiras planetárias e coloquem no horizonte um futuro de aumento da fome e de grande crise hídrica.
Atender a demanda atual de alimentos por meio da degradação dos ecossistemas é um tiro no pé. As práticas agrícolas que utilizam grandes quantidades de insumos externos, como fertilizantes inorgânicos, pesticidas e outros agrotóxicos, podem superar as restrições específicas do solo à produção agrícola no curto e médio prazos. Essas práticas levaram a aumentos consideráveis na produção geral de alimentos. No entanto, especialmente nos sistemas gerenciados de forma mais intensa, isso resultou em degradação ambiental contínua, particularmente no solo, vegetação e recursos hídricos.
Os níveis de matéria orgânica do solo estão em declínio e o uso de insumos químicos está se intensificando (Dailykos, 06/09/2019). No longo prazo haverá:
• Deterioração da qualidade do solo e redução da produtividade agrícola devido à depleção de nutrientes, perda de matéria orgânica, erosão e compactação;
• Poluição do solo e da água através do uso excessivo de fertilizantes e uso e disposição inadequados de resíduos animais;
• Maior incidência de problemas de saúde humana e do ecossistema devido ao uso indiscriminado de pesticidas e fertilizantes químicos;
• Perda de biodiversidade devido ao uso de número reduzido de espécies sendo cultivadas para fins comerciais;
• Perda de características de adaptabilidade quando espécies que crescem sob condições ambientais locais específicas são extintas;
• Perda de biodiversidade benéfica associada a culturas que fornece serviços ecossistêmicos, como polinização, ciclagem de nutrientes e regulação de surtos de pragas e doenças;
• Salinização do solo, esgotamento dos recursos de água doce e redução da qualidade da água devido a práticas de irrigação insustentáveis em todo o mundo;
• Perturbação dos processos físico-químicos e biológicos do solo como resultado de lavoura intensiva, corte e queima.
O fato é que não está garantida a produção de alimentos para o futuro. Em vez de um crescimento infinito, o mundo precisa de decrescimento demoeconômico para evitar um colapso ambiental (e civilizacional). Indubitavelmente, o caminho atual é insustentável e, se nada for feito para um redirecionamento, a humanidade e a vida na Terra não terão futuro num Planeta de terra arrasada.
ALVES, JED. Relatório do IPCC e o efeito perverso entre produção de alimentos e mudanças climáticas, Ecodebate, 12/08/2019
ALVES, JED. Crescimento populacional e colapso social e ambiental de Moçambique, Ecodebate, 29/04/2019
ALVES, JED. O decrescimento demoeconômico e o trilema da sustentabilidade, Ecodebate, 29/04/2019
ALVES, JED. Alta fecundidade, fome e biodiversidade, Ecodebate, 17/04/2013
Dailykos. The forgotten environmental catastrophe; the loss of arable land, 06/09/2019
2019 The State of Food Security And Nutrition In The World: Safeguarding Against Economic Slowdowns and Downturns, FAO, 15/07/2019
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Relatório do IPCC sobre clima, população e fome no mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU