22 Agosto 2019
Se todos e cada um dos habitantes do planeta tivéssemos um estilo de vida como fazem os Estados Unidos, necessitaríamos cinco planetas Terra. Esse desmedido e insustentável consumismo de algumas sociedades gera gases de efeito estufa que traz como resultado a mudança climática.
O artigo é de María Luisa Ramos Urzagaste, boliviana, foi embaixadora da Bolívia na Rússia, Espanha e vice-chanceler de governo do presidente Evo Morales, publicado por Sputnik News, 19-08-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Diariamente escutamos sobre a mudança climática, porém pouco se fala sobre as suas causas. Os esforços mundiais estão mais direcionados a atenuar as consequências e, pior ainda, há políticos que se negam a aceitar que a mudança climática é uma realidade e que é consequência do atual modelo socioeconômico.
De 19 a 23 de agosto, em Salvador, Bahia, os governos dos países latino-americanos e caribenhos têm a oportunidade de discutir e elaborar posições conjuntas sobre a mudança climática, durante a chamada Semana do Clima da América Latina e o Caribe 2019.
A pergunta pertinente é: que posições levarão nossos países, quando se sabe que, apesar de o Acordo de Paris estabelecer linhas, ainda restam muitos temas para se definir antes de 2020, ano de entrada em vigor do dito acordo?
As notícias não são as mais otimistas, mais ainda depois da cúpula do G-20 no Japão, que afirmou que “Estados Unidos é um líder mundial na redução de emissões” e que “segue comprometido com o desenvolvimento e implementação de tecnologias avançadas para continuar reduzindo as emissões e proporcionar um meio ambiente mais limpo”.
Um recente informe da ONU sobre a Mudança Climática prevê que as doenças transmitidas pela água, como a diarreia, se incrementarão e aumentarão as transmitidas por vetores, como malária, devido às temperaturas mais altas.
O mesmo relatório afirma que a humanidade sofrerá maior fome e desnutrição e a agricultura experimentará um aumento da frequência e gravidade das doenças dos cultivos, um incremento da erosão do solo e perdas em rendimento dos cultivos devido ao clima extremo.
O Acordo de Paris sobre a mudança climática (AP), por ser um tratado internacional legalmente vinculante, cria obrigações e dispõe de mecanismos para assegurar que os países cumpram com seus compromissos.
Essa é uma razão mais que suficiente para que os governos da região se envolvam a fundo no desenho de mecanismo e políticas para a aplicação do acordo.
Lamentavelmente, durante a negociação do AP, os países afetados consentiram a aprovação de um acordo sem que se concretize a compensação pelas perdas, nem pelo deslocamento de populações, que têm como origem esse fenômeno antropogênico.
O AP indica que, para manter o aumento da temperatura média mundial abaixo de 2 graus Celsius com respeito aos níveis pré-industriais, é preciso reduzir emissões mundiais de gases desde 55 gigatoneladas a 40 gigatoneladas em 2030. O AP apela, entre outros, a um mecanismo denominado REDD+.
A redução de emissões derivadas do desmatamento e degradação florestal, REDD+, é um mecanismo que cria um “valor financeiro para o carbono armazenado nos bosques”, isto é, lhes põe um preço.
O certo é que se trata de um mecanismo de mercantilização da natureza, o mesmo que poderia exacerbar ainda mais a atual situação e a razão é a seguinte:
REDD+ viabilizará que os países em desenvolvimento que possuam bosques possam receber pagamentos por não desflorestar e cuidar dos bosques, o que permitiria que os países e empresas contaminadores sigam intoxicando nossa atmosfera, pois terão a opção de “comprar permissões” nos chamados mercados do carbono.
O perverso desse tipo de mecanismo é que não abordam o problema de fundo, que é o extremo consumismo de uns, a custo de outros.
Para produzir alimentos suficientes que satisfaçam as necessidades diárias de uma pessoa, em média se requer em torno de 3 mil litros de água, e se sabe que para produzir um quilo de carne se requerem 15 mil litros de água.
Esses dados são cifras médias, porém todos sabemos que isso não se cumpre, pois, enquanto uns têm acesso a milhares de litros de água, outros têm quase nada.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação – FAO, os consumidores dos países ricos desperdiçam anualmente quase a mesma quantidade de alimentos (222 milhões de toneladas) que toda a produção de alimentos da África subsaariana (230 milhões de toneladas).
Para a produção, transporte e comercialização dessas toneladas de alimentos desperdiçados, se contamina e se desmata. Porém, quem se importa com isso?
Vale, ademais, destacar que o desmatamento é a segunda causa mais importante da mudança climática depois da queima de combustíveis fósseis.
Somemos a esse deprimente panorama o prognóstico realizado por SOFO 2018, que prevê que para 2050 a demanda mundial de alimentos crescerá 50%. Todos esses dados implicam em uma maior pressão sobre os ecossistemas, maior desmatamento, mais lixo, mais contaminação.
Um indicador interessante de poluição é a chamada pegada ecológica do consumo, que mede a quantidade de área de terra e água biologicamente produtiva requerida por um indivíduo, população ou outra atividade, para produzir todos os recursos que consome e absorver os resíduos gerados, medido em hectares globais (gha).
De acordo com a Footprintnetwork, um cidadão americano tem uma pegada ecológica média de 8,1 hectares globais; um boliviano gera uma pegada ecológica de 3,2, enquanto um russo tem uma pegada de 5,2 gha e um chinês de 3,6 gha.
No ranking geral dos países, juntamente com todos os seus habitantes, as maiores pegadas ecológicas são as da China, EUA e Índia, com 5.200, 2.200 e 1.500 milhões de gha, respectivamente, e longe se pode ver o México com 332 milhões, Bolívia com 34 milhões, o Uruguai com 6 milhões de gha, para citar alguns exemplos.
Um cálculo feito para a Coreia do Sul descobriu que o país usa oito vezes mais da natureza do que seus ecossistemas podem repor. Se todos no mundo consumissem recursos na mesma proporção que a Coreia, seriam necessários 3,3 planetas Terra.
Se nos comportássemos como um cidadão do Qatar, precisaríamos de 8,8 planetas Terra. Se consumíssemos como os EUA, precisaríamos de cinco planetas e, se o fizéssemos como no Uruguai, precisaríamos de 1,18 planetas.
Se uma média de todos esses comportamentos é calculada, então o resultado é surpreendente, já que precisaríamos de 1,69 planetas Terra.
Um aspecto interessante deste indicador é que ele nos alerta que estamos consumindo recursos naturais mais rapidamente do que eles podem regenerar; estamos afundando cada vez mais em uma dívida ecológica impagável.
Embora seja necessário trabalhar com números e dados específicos, também é verdade que o uso excessivo de médias pode distorcer a realidade.
Isso ocorre precisamente com a questão da mudança climática, quando as emissões de gases são atribuídas em média a cidadãos que mal têm comida, mas que em média poluem por gastos com eletricidade, geração de lixo, uso de transporte, etc.
Espera-se que, nos próximos fóruns, tanto no Brasil como em Nova York e no Chile, os Ministros de Meio Ambiente e Recursos Naturais da América Latina e Caribe, e as organizações da sociedade civil presentes, abordem as questões subjacentes e não apenas as consequências da mudança climática.
Não é eticamente correto exigir que os países façam sacrifícios e desacelerem seu desenvolvimento para que outros continuem a consumir como até hoje. Deve-se esclarecer que não é proposto que os países afetados imitem os comportamentos consumistas daqueles que estão terminando o planeta.
Não é justo que o projeto de lei da mudança climática seja pago por aqueles que não o causam, pior ainda menos aqueles que agora sofrem seus ataques.
Nestes fóruns é necessário ir além da quantidade de armazenamento de carbono em cada árvore; é fundamental falar sobre a grande dívida ecológica que alguns países têm em comparação com outros.
Não basta reciclar lixo, não basta parar de comer carne, não basta parar de viajar de avião, não basta fechar a torneira ao escovar os dentes, é preciso reciclar mentes e corações.
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A pegada ecológica da mudança climática que nos esmaga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU