26 Setembro 2019
“Garantir a existência material de toda a população, condição para o exercício da liberdade, impedir que os grandes poderes privados sejam capazes de impor a seu critério os destinos públicos, condição também para exercer a liberdade, e duas medidas para isso: renda básica incondicional e a renda máxima”, escreve Daniel Raventós, economista, presidente da Rede Renda Básica e professor da Faculdade de Economia e Empresa da Universidade de Barcelona, em artigo publicado por Sin Permiso, 17-09-2019. A tradução e do Cepat.
As causas apresentadas para explicar ou justificar a existência de ricos e pobres são muito abundantes. Não falta quem se atreve a qualificar essa existência como “natural”, como se a propriedade de “natural” fosse positiva, boa ou aconselhável. Qualquer estudante da natureza sabe que ela não é, nem moralmente boa, nem má, simplesmente é. A natureza não tem moral.
Contudo, os defensores das grandes desigualdades econômicas introduzem avaliações morais ao justificá-las pelos méritos ou pela capacidade de iniciativa e inovação, ou pela motivação competitiva. Cristãos e religiosos em geral, liberais doutrinários, seguidores da escola austríaca, neoliberais, darwinistas sociais ... apresentam diferentes justificativas filosóficas e pseudofilosóficas para essa constante histórica da existência de ricos e pobres.
A tradição da liberdade republicana tem mais de 2.300 anos. Possui duas variantes principais: a oligárquica e a democrática. Mas, para ambas, diferentemente do liberalismo, a liberdade não pode ser entendida como separada das condições materiais da existência. Para a variante democrática do republicanismo, na qual deve ser incluído de Efialtes e Péricles a Robespierre e Marx, a liberdade política e o exercício da cidadania não são compatíveis com as relações de dominação.
E o que é a dominação para o republicanismo? A dominação – o dominium, na literatura republicana histórica – é, claro, robusta, mas a forma de regular a propriedade foi a questão mais relevante que prevaleceu e moldou os vários desenhos institucionais que conhecemos. E não se trata de uma concepção de propriedade ambígua, porque a forma como o liberalismo a tornou posteriormente sua (até hoje) foi a de William Blackstone: “o domínio exclusivo e despótico que um homem exige e exerce sobre as coisas externas do mundo, com a exclusão total de qualquer outro indivíduo no universo”. Obviamente, muito diferente de outras concepções de propriedade já contempladas pelo direito civil romano, para não dizer as que tinham republicanos contemporâneos de Blackstone.
A “principal distinção”, dirá Aristóteles para entender qualquer sociedade, é a que é estabelecida entre ricos e pobres. E o que separa uns de outros nesta distinção fundamental é a propriedade, a questão relevante. A dominação é exercida pelos ricos proprietários sobre todas aquelas pessoas que não têm a existência material garantida porque não dispõem de propriedade. Isso equivale a dizer que em uma relação de dominação, como a que vive a maior parte das pessoas não ricas, estas não podem ser livres.
Os grandes ricos, devido a uma configuração política dos mercados pro domo sua que esse domínio lhes possibilita, incidem diretamente no imperium. Uma incidência sobre a degeneração despótica das instituições que, em outras circunstâncias, poderiam ser uma contenção do dominium. Não é pouca a literatura proveniente dos mais diversos campos acadêmicos sobre a capacidade dos grandes ricos proprietários de colocar a seu serviço as instituições públicas. As portas giratórias seriam apenas uma manifestação das mais visíveis, mas apenas mais uma.
Que a crise foi ruim para todos é uma brincadeira de mau gosto. Apenas um fato entre muitos que se referem ao Reino da Espanha: nos anos 2012 e 2013, qualificados como os mais duros da crise econômica, a diferença entre aqueles que mais ganhavam e os que menos ganhavam aumentou. As grandes diferenças entre as fortunas de poucos e a total carência das mesmas para a grande maioria criam algo bem reconhecido, mesmo pelas mentes mais propensas a justificá-las: desigualdades. Mas, para o republicanismo democrático há algo politicamente mais importante: o risco que essas grandes desigualdades representam para a liberdade da maioria não rica.
A proposta da renda básica, uma remuneração incondicional para toda a população, poderia significar uma grande medida republicana. Certo. Porque a grande maioria teria a base mínima para a existência material, condição para o exercício da liberdade. E isso é muito. Mas, talvez, diferente de outras interpretações, o que se poderia esperar da renda básica em um mundo como o atual também não seja muito.
Repetiu-se, muitas vezes, que essa renda básica é uma proposta que faria parte de um conjunto de outras medidas de política econômica e social, incluindo políticas não qualificadas. É algo elementar, pois ninguém informado sobre o funcionamento do mundo atual sugere que a renda básica possa fazer frente a todas as realidades que, ao menos para as pessoas de esquerda, são muito importantes e decisivas na configuração de nossas vidas e existência.
Como exemplos: o enorme poder mencionado das grandes fortunas e das transnacionais que atentam contra as condições de existência material de toda a população não rica, a acelerada degradação ambiental do nosso planeta, a política monetária que hoje impede a incorporação do sistema financeiro, as condições de trabalho assalariado cada vez mais literalmente semelhantes à “escravidão em tempo parcial” de Aristóteles e recuperada por Marx, as condições de muitas mulheres na esfera pública e privada (isto é, não apenas na vida familiar, mas na empresa privada que, segundo a perspectiva republicana, nunca foi uma esfera pública) e, para terminar em algum lugar, uma realidade política em muitos lugares, como o Reino da Espanha, onde existem grotescas monarquias ainda legais.
Para concretizar muito mais: uma renda máxima. Quer dizer, a partir de determinada quantidade não se pode acumular mais, ou seja, 100% de tributação. Liberais, falsos esquerdistas respeitosos da ordem existente, técnicos do velho conhecido, especialistas em legitimação ... reagem contrariamente a esta proposta porque alegam problemas de todos os tipos: a engenharia fiscal permitirá escapar da medida, ocorrerá a fuga de capitais, não incentivará a iniciativa, etc. Republicanamente, as grandes fortunas que, pela lógica das coisas, a seu dominium acrescentam o imperium para a sua conveniência são incompatíveis com a liberdade da grande maioria.
Daí precisamente que a neutralidade republicana, diferente da liberal, que se conforma em que o Estado não tome partido por uma concepção determinada da boa vida em detrimento de outras que possam existir, exige acabar com os grandes poderes privados que têm a capacidade (e a exercem) de impor sua concepção privada da boa vida e de disputar com o Estado esta prerrogativa. É verdade que o mais frequente não é que disputem com o Estado esta imposição do bem privado como público, mas, sim, que lhe ditem o que deve fazer, uma amostra de imperium que qualquer pessoa com olhos para ver pode constatar.
Garantir a existência material de toda a população, condição para o exercício da liberdade, impedir que os grandes poderes privados sejam capazes de impor a seu critério os destinos públicos, condição também para exercer a liberdade, e duas medidas para isso: renda básica incondicional e a renda máxima. Não são as únicas medidas que uma política republicana defenderia para combater o dominium e o imperium. Ainda restariam outros âmbitos para intervir devido a sua importância para a liberdade republicana, mas convirá que uma renda básica e uma renda máxima formariam uma sociedade que, para a imensa maioria da população, seria mais livre.
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Uma renda máxima republicana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU