Eles querem organizar a população de rua

Morador de rua. | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

21 Agosto 2019

Ignorados pela mídia e classe média, ativistas tentam articular um dos grupos sociais mais humilhados e onipresentes nas cidades. Eles denunciam a violência do Estado e pedem: basta de assistencialismo, queremos políticas públicas.

A reportagem é de Rôney Rodrigues, publicada por Outras Palavras, 19-08-2019.

Maloqueiros intelectuais

…você só presta atenção naquele carinha que te mangueia quando você tá na calçada de um bar — me diz ele, com a experiência das ruas, segurando o copo americano com cachaça — ou caminhando pro trabalho, com aquele discurso manjado de dá licença, boa noite, é que eu moro na rua, está faltando algumas moedas… Pessoas te abordando na rua: não quero dinheiro, não quero nada, só me paga um prato de comida pelo amor de Deus ou, já desencantadas, dizem logo é pra pinga mesmo, vou ser sincero.

…quando uma mãe com criança no colo ou na rabeira da saia, na porta de farmácia e supermercado, implora por fraldas, arroz, feijão, leite. Você só repara que tem gente vivendo nas ruas, vivendo porque ninguém mora nas ruas, quando vê elas no chão das praças e calçadas, com cobertor vagabundo de 1,99 de alguma Campanha do Agasalho. Só percebe que o problema tá mais foda que o normal quando são tantos que você quase pisa neles. Quando vê idosos jogados na sarjeta, gente que já nem fala, só segura uma plaquinha de papelão escrito estou com muita fome, me ajude, crianças nos faróis, gente tentando correr atrás do seu vendendo balas, chicletes, artesanato e saca que não tem só maloqueiros na rua.

…você vê caras e minas catando latinhas em todo canto – continua, bebericando — nem joga no chão e dois já pulam nela. Vê gente revirando o lixo nas caçambas. Carroças na banguela com mais de 200 quilos de lixo. Você vira a cara quando vê malocas com uns malucos passando corote de mão em mão. Com cachimbos prateados. Filando cigarros ou catando bitucas. Você vê pessoas fedidas, encardidas, mijando na marquise e acha que tá normal. Você acha que morar na rua é só viver na Cracolândia e ser drogado e ser bêbado e feder. Você só pensa que a coisa passou dos limites quando tem que pular um cara deitado pra entrar em casa ou quando, andando a noite, fica pensando que vai ser assaltado por alguém que perambula na região. Quando passa de busão pelo centro e vê cada vez filas compridas de pessoas esperando por um rango filantropo.

…você deve se perguntar: caralho, o que deu de errado na vida dessas pessoas? Fala isso, pra você mesmo – estende a mão: ô garçom, vê outra aqui — mas você esquece que pode ser demitido a qualquer momento, não conseguir emprego e entrar numas nóias que nem família nem amigos vão te ajudar. Não pensa que pra maioria a rua não foi opção.

O garçom chega. A aguardente – branquinha, diáfana, cristalina, ébria, 51, pirassununguense, marvada – escorre doce em uma minúscula cachoeira de caninha no copo americano. Dose generosa: copo meio cheio, meio vazio. Renato Ribeiro Sena, 52 anos, o Renatinho, corpo mirrado, vasta cabeleira estilo anos 1980, goiano de riso fácil, é uma das lideranças do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). Dá uma profusa golada. Estala os lábios. Tsc-ahhhhh.

…você não vê que os fardados chegam pra quebrar: cacetada, gás de pimenta, bicuda. Que playbas roubam seu kitrua ou mijam em você só por curtição. Que pode vir uma galera da Prefeitura e te internar em alguma clínica evangélica. Que você pode estar dormindo e te jogarem um jato de água fria. Não pensa onde é que a gente caga ou toma banho. Que você, se não tomar cuidado, pode morrer de frio. Ser tratado igual criminoso em albergues da vida. Tomar um pau de algum bêbado que passe pela rua ou segurança de algum comércio. Que tem pessoas sofrendo de tuberculose ou com muquiranas. Irmãos e irmãs assassinados com tiro na cabeça, incendiados, sumindo. A maldita depressão. Ter que matar pombo pra comer alguma carne.

Os olhares das pessoas que passam, de cima pra baixo, de desprezo e nojo. Poprua não sonha porque não dorme, só cochila, um olho aberto, um olho fechado, e outro na nuca, mas a gente quer poder sonhar também…

Renatinho me passa o copo. É a minha vez: cara azeda.

“Que-que é isso? Parece que você chupou um cu”, gargalha ele, enquanto acende um cigarro para continuar a explanação sobre a arte e ciência de viver nas ruas, o assunto da noite.

“Mas você entende que quando falo você não é você, é vocês, é a sociedade. Eu vejo o cara que tá na rua, na batalha, e pergunto: ‘irmãozinho, você quer liberdade?´”, solta Renatinho, dando um pausa dramática.

Toma o copo americano da minha mão. Prossegue: “Liberdade não é você depender de amém. Nem de por-favor-me-dá-um-rango ou de por-favor-me-dá-um-abrigo. Liberdade, irmãozinho, só vem quando você tiver autonomia”.

Renatinho saiu de casa e foi viver nas ruas aos 14 anos porque, segundo ele, é “um rebelde” nato e sua mãe impunha uma rígida disciplina que ele não concordava. Disse que ele acabaria na sarjeta e, fatalmente, a procuraria.

“Vai tomar no cu, mamãe”, conta que a respondeu. Tomou a seguinte decisão: pra casa não voltaria nunca mais, acontecesse o que acontecesse. “Aí na minha militância encontrei a casa de Deus. Você sabe o que é?”.

“…”.

“Um portão sem cadeado”.

Renatinho conta que tanto ele quanto o Movimento PopRua participam, frequentemente, das inúmeras manifestações e agendas da vida política brasileira, dispara citações de Maquiavel, Marx e Brecht e divaga longamente sobre a necessidade da população de rua discutir regime de governo.

“Somos tão intelectuais quanto um Presidente da República! As pessoas pensam: esses maloqueiros são intelectuais, os caras conversam de igual pra igual. E a intelectualidade está representada aqui no Movimento, o mais bobo aqui dá nó em pingo d'água, então é muito importante mostrar o que é a rua, nossa posição política e mostrar que a rua é intelectual também e trata de igual pra igual”.

A dúvida apertou e eu o interrompi. Agora era minha vez de tagarelar. Como pensar essa intelectualidade das ruas numa realidade aviltante, com desemprego e retirada de políticas sociais? Como essa população consegue se organizar politicamente quando existem empecilhos tão urgentes como a manutenção da própria sobrevivência, por exemplo? Que políticas públicas propor quando vemos que o fato de existir pessoas nessa situação é justamente porque todas políticas anteriores falharam? É isso, mais ou menos, que pergunto para Renatinho, que me olha com cara de paisagem enquanto bombardeio sua cuca com essas questões. Ele encara-me, sereno:

“É, é foda. Não é fácil fazer política de barriga vazia. Mas vou te explicar. Vamos pedir outra cachaça?”.

(Foto: Carolina Simon)

Ruas transbordando

Quantas pessoas vivem, hoje em dia, nas ruas do Brasil? Por incrível que pareça, esse dado é um mistério. Qualquer um que dê um giro, principalmente pelos centros, seja em cidades de pequeno, médio ou grande porte, em qualquer estado, percebe que são muitas – e que, nos últimos anos, só tem aumentado. Elas não são invisíveis, mas parecem ser nas estatísticas.

Essa é a pedra no sapato para formular qualquer política pública: não bastam “avaliações especulativas” com base em uma olhada nas sarjetas e margens de rodovias, mas uma pesquisa consistente e confiável.

O IBGE não dispõe de um programa de contagem e classificação da população em situação de rua. Os demais levantamentos estatísticos são esporádicos, localizados e feitas com distintas metodologias. O Movimento Pop-rua e diversas outras entidades pressionaram, por anos, o IBGE para incluí-la no Censo 2020 – e o órgão parecia propenso a isso, já que foi até instado judicialmente a fazer esse levantamento, em uma ação movida na Justiça Federal do Rio de Janeiro pela Defensoria Pública da União. Mas com os diversos cortes de verba do governo Jair Bolsonaro, está enfrentando dificuldades até para realizar o censo dos domiciliados. Além disso, conforme apurou o Especial Cidadania do Senado, os técnicos do IBGE não chegaram a uma metodologia conveniente e confiável para medir um grupo com localização incerta, que se encontra mais à noite e que requer abordagem especializada — o que poderia atrasar a pesquisa maior, justificaram.

A primeira e única pesquisa ampla sobre a população de rua foi realizada entre 2007 e 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento Social (agora transformado em secretaria vinculada ao Ministério da Cidadania), mas não atingiu todo o território nacional. Avaliou um público composto por pessoas com 18 anos completos ou mais e abrangeu 71 cidades, sendo 48 municípios com mais de 300 mil habitantes e 23 capitais. Foram detectados 31,9 mil adultos em situação de rua. Somando-se os resultados de pesquisas feitas à parte em São Paulo, Belo Horizonte e Recife, o contingente se elevou a 44 mil. Com isso, foi possível traçar um perfil heterogêneo da população de rua, constatando-se, entre outros aspectos, que 69,6% deles dormem na rua, 22,1% em albergues e 8,3% alternam entre a rua e os albergues.

Um estudo de 2016, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a partir de dados disponibilizados por 1.924 municípios via Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas), estimou em cerca de 101 mil pessoas a população de rua. Um dado se mostrou alarmante: apenas 47% da população de rua estava no Cadastro Único de Programas Sociais, o que dificulta o acesso à transferência de renda e habitação, por exemplo.

(Foto: Carolina Simon)

E se antes o cenário já era preocupante, parece ter se agravado pelos cortes de políticas sociais, o desemprego atingindo 13,2 milhões de pessoas e a precarização da vida, com 54,8 milhões vivendo na linha da pobreza, dispondo apenas de R$ 406 ou menos mensais para sobreviverem, segundo dados de 2017 do IBGE.

Na cidade de São Paulo, por exemplo, que conta com alguns dados mais atualizados, a própria Prefeitura informa que, em três anos, o total de pessoas abordadas como moradores de rua na cidade quase dobrou. Ao longo de todo ano passado, assistentes sociais municipais abordaram cerca de 105,3 mil pessoas nas calçadas da cidade, número 66% maior do que a quantidade de pessoas abordadas na mesma situação em 2016, quando foram contabilizados 63,2 mil indivíduos, e 88% acima da de 2015. A pesquisa, no entanto, faz uma observação: os dados não representam exatamente a quantidade de pessoas que vivem de fato nas ruas. Entre as abordagens há, por exemplo, moradores da periferia que passam dias e noites vivendo nas calçadas da região central em busca de doações, mas em parte do mês retornam a suas casas, pessoas que estão de passagem pela cidade, entre outras situações.

Mesmo assim, o levantamento é o indicador mais próximo para retratar o aumento cada vez mais perceptível dessa população na capital – e, apesar de suas particularidades, do Brasil. Aponta algumas mudanças, segundo apurou a Folha de S.Paulo: se em pesquisas anteriores os conflitos familiares apareciam em primeiro lugar como o motivo mais frequente para permanecer nas ruas, agora é o desemprego. De acordo com a Pesquisa de Emprego e Desemprego, realizada pela Fundação Seade e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a taxa de desemprego na cidade de São Paulo é de 15,4%, superando a nacional, que está em 12,5%, transformando-se em principal fator para engordar as ruas. Além disso, a pesquisa também aponta que, ao contrário do se pensa, só metade das pessoas que vivem nas ruas são migrantes, principalmente da Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Paraná e que há muitos casos de meninas que vão para as ruas fugindo de abusos sexuais, mulheres que são espancadas pelos maridos e LGBT+ discriminados pela família.

Outro fato é a especulação imobiliária e o aluguel, que sobe na mesma proporção em que a renda míngua. O déficit habitacional de São Paulo aflige 360 mil famílias, de acordo com a secretaria municipal de Habitação (o que significa cerca de 1,2 milhão de pessoas). E isso, somado ao desemprego, à recessão, à falta de investimentos públicos e ao esvaziamento das políticas habitacionais — no ano passado na faixa 1, para os mais pobres, do Minha Casa Minha Vida, o maior programa habitacional do país, investiu-se só 10% do valor de 2013 — empurra muitas famílias para as ruas.

Uma ferida sempre aberta

Os primeiros passos para a criação do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), mais conhecido como Movimento Pop-rua, deu-se depois de uma chacina. Nas madrugadas entre os dias 17 e 18 de agosto de 2004, quinze pessoas em situação de rua foram brutalmente atacadas na Praça da Sé, no centro de São Paulo. A ação foi rápida: os agressores desceram dos carros e deferiram violentos golpes na cabeça de alguns dos que viviam por ali – alguns dizem que com marretas, outros que eram tacos de beisebol. Sete pessoas morreram. O crime nunca foi elucidado, mas suspeita-se que o massacre foi perpetrado por policiais militares que faziam a segurança dos comércios no entorno da Praça da Sé. Cinco PMs e um segurança foram apontados, na época, como responsáveis pelas execuções. Contudo, o processo parou porque a única testemunha do fato, que ficou conhecido como Massacre da Praça da Sé, também moradora de rua da região, foi assassinada.

Anderson Miranda foi um dos sobreviventes do massacre, que completa 15 anos. Dormia na região da Sé e estava nos dias dos ataques. Conhecia muitas das vítimas. “Foram tempos de medo, sabe?”, conta ele. “Dava medo de ficar na rua. A gente dormia sempre separado e começou a dormir juntos”.

A chacina, que gerou forte comoção, ocorreu em um momento em que a população em situação de rua começava a se organizar. O antropólogo Henrique de Azevedo Gomes Melo pesquisa, desde 2009, a trajetória social do MNPR e, em artigo publicado na revista Novos Debates da Associação Brasileira de Antropologia (APA), aponta:

“Ainda que os antecedentes que forjam os termos e definições sobre o que se tornou a ‘população em situação de rua’ mostrem seus primeiros contornos na década de 1950 na cidade de São Paulo, é na década de 1990 que estas iniciativas ganham força e se configura uma atividade mais intensa, com mobilizações voltadas a questionar a ausência de políticas públicas para o segmento. Do final da década de noventa em diante, a politização em torno da questão ‘população de rua’ se acentua, com um intenso processo que resulta na constituição de manifestações, fóruns, seminários, encontros e demais espaços específicos para a organização.”

Três dias depois do massacre, relembra Miranda, a Pastoral do Povo da Rua de São Paulo, comandada pelo padre Júlio Lancellotti, junto com a pop-rua, chamou um ato na escadaria da Catedral, que juntou quase cinco mil pessoas. A partir daí, grupos da população de rua de São Paulo e Belo Horizonte iniciaram a mobilização para construir um movimento nacional, “da rua pra rua”. Em setembro de 2005, durante o 4º Festival Lixo e Cidadania, realizado em Belo Horizonte, integrantes da população de rua de Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Mato Grosso fundaram, oficialmente, o Movimento Nacional da População de Rua.

Violência pra todo lado

Bem aprumado — vestido com camisa social, jeans e sapato caro — o coroa, de aproximadamente 50 anos, aponta o revólver para três caras que vivem em uma maloca do Centro.

“Anda vagabundo”, grita ele, enérgico, prepotente com a arma empunhada. “Quem foi que roubou o carro que estacionei ali na rua de cima?”

Os caras da maloca arregalam os olhos: não têm ideia do que esse senhor, visivelmente bêbado, nessa hora da madrugada, está falando para eles, que dormiam tranquilamente em uma barraca de camping montada na calçada. “Seus merdas! É bom ir abrindo o bico logo senão vou furar todos vocês, vagabundos do caralho! Ladrões! Bandidos!”

O carro pode ter sido roubado ou o coroa, depois de alguns uísques, somente esquecera o lugar exato onde estacionara. Não se sabe, mas o fato exigiu grande capacidade diplomática de Darci Costa, hoje coordenador nacional do Movimento Pop-rua.

Darci é alto e mantém uma vasta cabeleira e barbas grisalhas, o que lhe confere ares oraculares. Sabe que se agravou o número de casos de violências como esse nas ruas, que incidentes como o da Praça da Sé, em escala menor ou até maior, se repetem – e pior, podem ser mais frequentes com os rumos da política nacional. Só no ano passado o Disque 100, o aplicativo Proteja Brasil e a Ouvidoria do Ministério de Direitos Humanos — transformado por Jair Bolsonaro em Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos — contabilizaram aproximadamente 900 denúncias relacionadas à poprua. No balanço divulgado com os tipos de violência de janeiro a junho, destacam-se os números de negligência (76,1%), violência psicológica (21,7%), violência institucional (19,2%) e violência física (11,4%).

“A higienização tem sido mais ostensiva”, relata Darci Costa. “Guardas Civis Militares, PMs e funcionários da zeladoria urbana reprimem, diária e brutalmente, a poprua com a desculpa de combater o tráfico de drogas, expulsando-os das áreas onde costumam viver. Quem é traficante não está nas ruas. Também vemos que até a própria população, sentindo-se referendada pela violência do governo, tem agredido a pop-rua.”

“A gente tem que parar com essa loucura de dizer que quem tá na rua é viciado!”, irrita-se Anderson Miranda. “Ninguém quer passar por essa situação. Várias vezes jogaram álcool em mim e tentaram colocar fogo, pessoas saindo das baladas mijaram em mim, me deram comida estragada de propósito pra eu passar mal. Eu até fui violentado por um policial quando era criança e vivia nas ruas.”

Ele busca palavras pra definir todo drama que viveu, desde os 13 anos, crescido em orfanato, tendo que se virar pelas ruas paulistas; mas hoje com a vida “mais estável”, casado, com casa própria conquistada pelo Minha Casa Minha Vida e emprego.

“Cair na rua é mais fácil que sair. É a fênix, está sempre renascendo – e morrendo”.

Essa tal poprua…

Mendigos, vadios, vagabundos, indigentes, andarilhos, loucos de rua, habitantes de rua, povo de rua, sofredores de rua, trecheiros, sem-teto, moradores de rua, população de rua, população em situação de rua e… pop-rua. Ao longo do tempo, vários termos foram usados para defini-los. Porém, a Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída pelo Decreto Presidencial 7.053, de 2009, uma das principais conquistas do Movimento Pop-rua, enfim criou uma definição: “grupo populacional heterogêneo que possui em comum: pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular e que utiliza os locais públicos e áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.

“Entendemos que não há moradores na rua ou em situação de rua. É uma situação transitória, e para outras pessoas significa até a morte”, explica Darci Costa. “É tirar a culpabilização. Tirar o estigma de mendigo, maloqueiro, homem do saco. E também o estigma da Lei de Vadiagem da Ditadura Militar, que ainda está presente na mentalidade de várias instituições. Chama-se população em situação de rua ou só pop-rua.”

Darci começou a atuar no MNPR em 2013, após participar por dois anos de formações e cursos realizados pelo movimento. Queria respostas para o problema que vivia – e, para isso, estudou muito.

“Viver na rua não é uma coisa que aconteceu hoje, é uma coisa que muitos podem ter percebido só hoje, mas acontece desde a Roma Antiga, desde Luís XV, desde a escravidão, quando a Princesa Isabel libertou todo mundo no dia 13 e não se lembrou do que ia acontecer com eles no dia 14. São séculos e séculos de história!”, explica ele. “O Charles Dickens escreveu vários livros sobre as pessoas que viviam nas ruas da Inglaterra do século 19. O Victor Hugo mostrou a hipocrisia dos ‘crimes de vadiagem’: Jean Valjean, em Os Miseráveis, furta um pão e o Estado francês cai em cima dele pra massacrar. É ou não é atual?”.

Darci, entusiasmado, prossegue: “tem a história do Diógenes, pai da filosofia da ociosidade. Ele viveu na Grécia Antiga e quando Alexandre, o Grande, o procurou, depois que ele se recusou a ir ao encontro do rei, perguntou: Diógenes, o que você quer? Pode me pedir qualquer coisa. Ele falou: apenas saia da minha frente. Você está atrapalhando o sol”.

“Mas falando assim até dá uma sensação romântica de viver nas ruas – e não de algo mais do sistema que empurra as pessoas pras ruas…”, questiono.

“Tem o desemprego. A especulação imobiliária. A dependência química. A falta de estrutura familiar. Mas também não podemos deixar de pensar como essa sociedade massacra as pessoas. Tem gente que quer isso. Tá desempregado, fuma crack e vai consciente: a vida não é só pressão. Mas temos que ter em mente também: Sozinho a gente vai pra rua, mas juntos podemos sair dela. É um lema que temos”.

Como juntar – e sobreviver?

O catarinense Daniel Paz dos Santos, 45 anos, longos cabelos e barbas loiros, troncudo, representante nacional da MNPR de Santa Catarina, vivia na Praça da Alfândega e bebia dois litros de cachaça 51 por dia. Dependendo do dia, até mais. Era sua porção diária. Era quase sua religião, como define hoje.

Em 2010, em um domingo qualquer, quando a Igreja católica da região promovia seu tradicional almoço dominical com a população em situação de rua, servindo mais de 300 pessoas, Daniel foi convidado para participar de uma reunião do Movimento Pop-rua.

Vou lá pra ver o que esse pessoal está conversando, pensou. E foi. Chegou por lá, “tri-bêbado” por suas porções diárias de 51 e, em silêncio, escutou pessoas que viviam nas mesmas condições que ele discutindo políticas públicas. Na segunda semana, novamente alcoolizado, prestou mais atenção naqueles discursos todos. Na terceira semana, já não estava mais alcoolizado e pode, timidamente, fazer algumas intervenções durante a reunião.

“Aí comecei a gostar de participar das reuniões, de saber como eu poderia buscar ajuda pra mim e pras pessoas mais velhas que moravam comigo nas marquises.”

Esse era um problema latente para Daniel. Ele contabiliza que, nessa época, levava duas surras semanais por defender os idosos que viviam nas ruas. Isso sem contar as porradas do “aparelho repressivo estatal”. “Apanhava muito dos polícias, chegavam e metiam o coturno em mim e neles [idosos], fazia eles levantarem, botava as coisas deles na rua e pá. E aí fui participando, participando, e minha primeira formação foi pela saúde em Londrina, depois fui fazendo mais, hoje eu tenho umas 120 formações entre assistente social e direitos humanos, habitação, pastoral de rua, foi aí que eu fui me politizando.”

Organizar um movimento social como esse não é tarefa fácil. Quem está nas ruas é porque chegou em um ponto de vulnerabilidade social extrema. Não só: também estão aniquilados psiquicamente. Sem família, sem perspectivas, alguns com dependência química. Além disso, levam uma vida errante pelas ruas, seja por decisão ou pela repressão policial. O maior desafio parece ser conseguir a próxima refeição e sobreviver.

“Não é um desafio. É um resgate”, corrige-me Daniel. “Você tem que resgatar a autoestima das pessoas. Você está há muito tempo na rua e você vai perdendo muitas coisas. Bem, você não perde. Você deixa de lado porque você vive marginalizado, na pobreza, não tem nada. O que você tem é a cachaça e o cigarro, o que é fácil de arrumar. Mas ganhar um prato de comida hoje é difícil… Você vê muitas pessoas hoje, três da tarde, revirando lixo. E algumas outras se sentem incomodadas com isso e começam a procurar o movimento pra estar juntas, para participarem, e aí começam um caminho de politização. Sim, é difícil por causa do alcoolismo, da fome, do transporte – muita gente não vem porque não tem passagem ou só vem pra tentar comer algo –, mas acho que é um mito dizer que pelas necessidades que estão aí a galera não se organiza. Lá no fundo, mesmo desacreditadas e desencorajadas, elas têm a real necessidade de lutar.”

Além disso, não há uma fonte de arrecadação fixa para sustentar o Movimento. A sede nacional, localizada embaixo do Viaduto Pedroso no centro de São Paulo, está sempre com a manutenção atrasada. Falta grana para comprar produtos de limpeza, para pequenos reparos e para fazer o rango diário. Recentemente, a prefeitura ameaçou transferir esse espaço para uso do Rotary Club.

“É praticamente autogestão: sem apoio federal, municipal ou estadual”, relata Edvaldo Gonçalves de Souza, 49 anos, coordenador estadual do Movimento Pop-rua. “As luzes queimavam e a gente não tinha como repor, os banheiros ficavam entupidos, sem gás pra cozinhar, os projetos parados por falta de verba. Vivemos, praticamente, do Bolsa Família: fazemos uma vaquinha entre quem recebe o benefício pra ajudar. Não gastamos nem com a gente mesmo”.

O orçamento reduzido impede também viagens de lideranças para articular projetos e o desenvolvimento de atividades. Para viajarem para o Congresso da Pop-rua, por exemplo, foi necessário passar o caneco com entidades, vereadores, deputados e outros movimentos sociais. Mesmo assim, foi apertado. E conjuntura política e econômica tem restringindo, ainda mais, a sustentação: parceiros, como sindicatos, já não têm mais recursos para apoiá-lo.

Porém, segundo Anderson Miranda, não se pode ficar refém de parcerias.

“O olhar do movimento é pra rua. Tem que discutir com governo e com parceiros, mas não ser cooptado por eles. Política é aquela velha história: é igual feijão, só cozinha na pressão. Sem a população da rua o feijão não vai cozinhar nunca! Não pode perder o diálogo, as pessoas estão sendo violadas. E não é difícil mobilizar essas pessoas. O que se faz para juntar empresários? Diz que vai baixar impostos, dar mais incentivos etc. Com a rua é a mesma coisa: o que estamos oferecendo?”

(Foto: Carolina Simon)

Longa história

O coro começa baixinho, quase entre sussurros.

“Oi, leva eu, povo da rua
Eu também quero ir, povo da rua
E já chegou a missão
Vamos todos nos unir
Leva eu, povo da rua”.

Cerca de 60 pessoas estão reunidas para participar do 4º Congresso Nacional da População em Situação de Rua, em Cidreira, cidade litorânea do Rio Grande do Sul, realizado em maio de 2018. Vieram de 18 estados do Brasil. O evento reúne lideranças para discutir, durante três dias, ações e políticas para aquelas pessoas que vivem nas ruas das cidades brasileiras. O próximo será em 2021, em Teresina. A medida que esses cadentes versos se repetem, ritmo e energia se intensificam, como em um mantra das ruas, até explodir em uma catarse coletiva.

“Oi, leva eu, povo da rua
Eu também quero ir, povo da ruaaaaaaaa
E já chegou a missão
Vamos todos nos unir
Leva eu, povo da rua”.

A cena deve ser empolgante. Deve porque a assistente social Maria Magdalena Alves, chamada com carinho de Madá, uma senhora de 76 anos, com os cabelos cinza-brancos e serenidade adquiridas pelo tempo, que se protege do frio gaúcho com um xale, não assiste, apenas ouve do lado de fora do auditório, juntamente com outros colaboradores da população em situação de rua.

“Cantávamos esse hino desde a década de 1970, quando comecei a trabalhar com o povo da rua”, comenta, saudosa, ela, que foi uma das primeiras assistentes sociais a trabalhar essa temática. Trabalhou com o tema na prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-92). Depois, fundou uma ONG e hoje presta consultoria na área para prefeituras.

Mas vamos à explicação. Deixar colaboradores fora da assembleia da poprua não fazia parte de uma estratégia maquiavélica de excluir senhoras septuagenárias. Os coordenadores do movimento, percebendo que a presença de especialistas em assistência social, urbanismo, ciências sociais ou políticas públicas intimidava sua base a se expressar sem receio de serem julgados por um “pensamento teórico supostamente arrojado”, pediram para preservarem um momento somente entre eles. O pedido despertou polêmicas.

“Eu não concordo”, disparou uma assistente social. “Acredito que temos muita base teórica e prática para colaborar na construção do plano da poprua. Eu quero estar presente e poder falar também. Eu faço doutorado no tema.”

“Pode ser que sim, mas esse é um pedido da nossa base e não é negociável. Vamos ter outros momentos em que vocês poderão opinar e colaborar.”

“Mas temos que estar presentes quando vocês forem discutir o planejamento para esses dois anos…”, insistiu ela.

“O que estamos pedindo é somente uns momentos com nossa base, pra termos nosso papo reto. Se isso incomoda algum de vocês, paciência. Depois só não venham falar de como não somos respeitados e silenciados pelos governos, se estão tentando fazer uma coisa parecida. O movimento não é da rua pra rua?”

“Não sei se me fiz entender, é que…”

“Vai ser assim, decidimos em assembleia, estou só comunicando, não estou negociando.”

Madá assistiu passiva à cena, com a consciência de quem trabalha há mais de 40 anos com o assunto e a aflição de assistir ao vivo alguém que paga, sem saber se no débito ou no crédito, um vexame político, teórico e humano. Ela relembra que, na década de 1970, jovem católica, politizada, acreditava que poderia realizar mudanças sociais por meio da filosofia cristã. Era época da Teologia da Libertação, uma corrente teológica cristã nascida na América Latina, depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, que parte da premissa de que o evangelho exige a opção preferencial pelos pobres e especifica que a teologia, para concretizar essa opção, deve usar também as ciências humanas e sociais.

Havia um seminarista que trabalha no centro de São Paulo que recolhia roupas e outros utensílios domésticos para doação. Era escolhido um dia da semana, antes de uma reunião, para distribuir os apetrechos. Não podíamos nem fazer reunião, a sala enchia, lembra ela. Perceberam, portanto, um grave problema social na cidade: um grande número de pessoas que viviam nas ruas. Decidiram, então, promover um sopão na Praça da Sé. Mas esse seria diferente: a premissa seria fazê-lo somente com os frutos da solidariedade do próximo.

As verduras eram doadas pelos feirantes próximos. Com a xepa garantida, pediam água, óleo e sal para os bares da Praça. Com os gravetos das árvores, acendiam o fogo. A jovem Madá era responsável pela segurança das facas. Havia conversas. Ela não tentava dar as coisas, diz, mas fornecer suporte para eles conseguirem. Explica como a mobilização foi sendo construída nas últimas décadas:http://www.ihu.unisinos.br/171-noticias/noticias-2013/517945-morador-de-rua-e-espancado-ate-a-morte-no-centro-de-porto-alegre

“…você começa a juntar as pessoas na década de 1980. Eles não tinham coragem de andar dois juntos, porque vinha a polícia. Mas começam a se juntar. Eu me lembro a primeira vez que eles tiveram coragem de sair de uma casa que ficava atrás do Mosteiro São Bento e ir até o Largo de São Bento e voltar… São só dois quarteirões, mas foi um avanço, porque eles tinham medo.

“…eles eram ultraexplorados nos depósitos de papelão, porque o cara deixava eles dormirem no lixo e dava a carroça e pagava muito pouco. Eles, então, fizeram a primeira greve dos catadores, disseram pros caras: ou você aumenta o preço ou a gente queima a carga aqui na tua porta. Você percebe os avanços? Que hoje a gente olha e pensa: é ridículo? É muito pouco, mas foram espaços pra chegar no que é hoje.

“…você teve passos nas políticas públicas, as primeiras que foram criadas, lá na década 1990, as chamadas de Casas de

Convivência e era um espaço para que eles pudessem estar, durante o dia, com jogos, atividades de convivência e estrutura para banho. Era o primeiro passo…

“…você tinha uma experiência em São Paulo, durante as prefeituras petistas, do começo de uma política para a poprua e, quando Lula assumiu a presidência, essa experiência foi pra Brasília. Tinha algumas ações em alguns estados, mas não era um projeto articulado. Por exemplo: na gestão da Marta Suplicy (2001-2004) tivemos o 1º Congresso de População de Rua, mas realizado pelo poder público. Você percebe? Tem uma série de coisas que vão chegando no hoje”.

Mangueios e política

“Na humildade, pai, tem um cigarro desse aí pra me arrumar”, pede um cara.

O artista de rua Carlos Alberto de Souza, 47 anos, mais conhecido como Carlos Malabares, liderança de São Carlos, dá uma tragada de seu cigarro – filado, também na humildade, do meu maço – e dispara:

“Vai manguear pra cima de mim, irmão?”, inquire, retoricamente. “Eu também sou pop-rua, porra”.

Frente à expressão decepcionada, Carlos amolece o coração.

“Esse aqui eu descolei com o mano aqui”, diz, olhando para mim. O movimento de olhos é seguido pelo outro filador. Espera uma resposta. Retiro do bolso meu maço: “pode pegar, amigo”.

(Foto: Carolina Simon)

“Um pra agora e outro pra depois”, diz o cara, retirando dois cigarros — um levando-o à boca; o outro pendurando-o atrás da orelha – e dando no pé antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.

Carlos ri.

“Profissão: mangueador. Certeza é que assim que esse cara preenche as fichas deles”, brinca.

Para quem vive nas ruas, o mangueio – ato de engodar, usar artifícios para conseguir aquilo que se quer – é questão de sobrevivência e chega até atingir status de arte. “Aquele ali é mangueador profissional”, apontam, elogiosos, para algum amigo.

A gente que cai na rua, conta Carlos, aguenta frio nas pernas, anda de tênis furado, olha comida que não pode comer, ver casa que não pode morar, aprende que nosso negócio é só ver e desejar, que tem que parar por aí. A gente que cai na rua, conta, cata que cata um jeito de se arrumar. Olhar carro, fazer mudança por cinco conto, lavar carro, capinar quintal, lavar calçada e quintal, catar latinha e papelão, fazer malabares no sinal vermelho. Qualquer bagulho é esperança de grana, quando sofredor tem fome. Manguear? A fome ensina, quando a gente roda rua feito cachorro enfiando a fuça atrás de comida, diz ele, matando outro cigarro mangueado.

Entramos para participar do Congresso, em seu último dia de atividade. Cartazes lembrados os companheiros e companheiras que já não estão mais presentes: Anita Presente. Maria Lúcia Presente. Paulinho Presente. Rita Presente. Renato, vulgo Mamute, presente.

Prestes a começar a votação sobre as resoluções, Aloisio Ermelino da Silva, 50 anos, conhecido como Sorriso, explica-me, em um canto, a política discutida durante todos esses dias de encontro, que norteará as ações do movimento para os próximos três anos.

“A gente não quer direito, não quer aposentadoria, queremos casa pra morar”, afirma ele. “Vamos votar sobre como garantir políticas de habitação. Porque não adianta ter comida, não adianta ter serviço, se não tem moradia. Você tem moradia? Onde você vai descarregar essa gravação? Na sua casa, no seu computador. Precisamos que alguém olhe pra nós, nos de uma chave e fale: Sorriso, essa aqui é a sua casa. Eu digo assim: a moradia só tem uma data, a de entrada, a de sair só Deus sabe. É a maior garantia que podemos ter”.

Que querem?

Segui, há alguns meses, uma reunião de professores de Arquitetura e Urbanismo de uma faculdade de São Paulo, acompanhados de alguns estudantes, com a pop-rua. Queriam desenvolver um projeto, em parceria com o movimento, para construir um protótipo de equipamento urbano que servisse de bagageiro para quem vive nas ruas – já que em SP só existe um. “Assim, podem guardar suas roupas, cobertores, colchonetes, o pouco que têm, enquanto saem em busca de algo pra comer ou pra procurar emprego”. Darci, assim como outras lideranças, ouvia tranquilo, enquanto afagava sua longa barba grisalha. Não disse que esse era um problema que, entre todos que os da lista que os afligem, está bem atrás. “É interessante”, disse ele, “mas não seria melhor concentrar esforços em uma das nossas principais pautas, já que vocês, como arquitetos e urbanistas, também têm essa luta? O direito à moradia e o desenvolvimento de políticas públicas de habitação social”.

(Foto: Divulgação)

Inúmeras vezes, em entrevistas com lideranças, perguntava: quais foram as principais conquistas da população em situação de rua? Eles elencaram algumas:

Consultórios na Rua. Instituído pela Política Nacional de Atenção Básica, em 2011, constitui-se de equipes multidisciplinares que prestam serviços in loco de atenção integral à saúde da população em situação de rua da cidade, principalmente inserindo-as no Sistema Único de Saúde (SUS) e atendendo casos de dependência química.

Centros Pops. Previsto no Decreto nº 7.053/2009 e na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, é uma unidade pública voltada para o atendimento especializado à população em situação de rua, com atendimentos individuais e coletivos, oficinas e atividades de convívio e socialização, além de ações que incentivem o protagonismo e a participação social das pessoas em situação de rua. Também funciona como ponto de apoio para guardar pertences, de higiene pessoal, de alimentação, provisão de documentação e endereço de referência.

Bolsa Família. A inclusão da população em situação de rua no programa foi realizada em 2010. Baseado em um programa piloto do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em Belo Horizonte, com base em levantamento feito pelo IBGE, cerca de 300 mil bolsas foram destinadas a eles e a quilombolas, ribeirinhos e indígenas.

Política Nacional para a População em Situação de Rua. Instituída pelo Decreto Presidencial 7.053, de 2009, que também criou um Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento. É considerada um marco na luta pelos direitos da poprua ao estabelecer as diretrizes para garantir seus direitos, entre os quais a dignidade.

“Essas políticas foram conquistas em décadas de luta da poprua, com sangue e suor”, conta Darci. “Mostram que, hoje, a rua não é mais invisível, como pensam – e querem – muitos. De 2004, quando começamos a nos articular por nós mesmos no movimento nacional, nossas reivindicações começaram a se transformar em políticas públicas – e essa questão é, cada vez mais, discutida nas cidades.”

O antropólogo Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo destaca que, nesse processo recente, “um dos resultados que mais me chamou atenção foi o fortalecimento político de pessoas que se reconhecem enquanto população de rua, que passam a fazer parte ativa dessa rede e que começam a atuar no MNPR, principal núcleo aglutinador de proposições no plano da ação pública por parte do segmento”.

Outra política pública reivindicada é o Programa de Inclusão Social da População em Situação de Rua, proposto pelo senador Paulo Paim (PT/RS), que tramita há mais de dez anos no Congresso. Aprovada pelo Senado, e aguardando votação na Câmara dos Deputados, o PL 6.802/2006, ainda não saiu da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Prevê um conjunto integrado de medidas assistenciais e oportunidades de qualificação profissional, financiado pelo Fundo de Combate à Pobreza. Há também o PLS 328/2015, de autoria do senador Telmário Mota (Pros-RR), que tramita na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado. A matéria regulamenta a profissão de educador social para atuar diretamente no resgate da população de rua e de pessoas vulneráveis. À espera de relator na CCJ do Senado, está o Projeto de Lei da Câmara 130/2017, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT/SP) — na Câmara, PL 2.470/2007 —, que reserva 2% das vagas em obras e serviços a trabalhadores em situação de rua.

Nesse mês, o MNPR realiza diversas atividades em 18 estados, onde está organizado. No dia 7 de agosto de 2019, deputados estaduais de São Paulo, ao lado de movimentos sociais, lançaram uma frente em defesa das pessoas em situação de rua com objetivo de pressionar o Estado a implementar políticas públicas voltadas a essa população. Lideranças de todo o Brasil se encontrarão em Brasília no dia 21, para realizar uma Marcha e, no dia seguinte, lançarão uma Frente também no Congresso Nacional.

Darci Costa sabe que a conjuntura política e econômica não é das melhores, mas diz que a luta por políticas públicas não pode parar. E enfrentar o problema do crescente aumento da população em situação de rua exige ações e luta de longo prazo.

Renda Básica de Cidadania. A Lei 10.835, proposta pelo então senador Eduardo Suplicy, foi aprovada em janeiro de 2004 pelo Congresso, foi sancionada, instituindo a renda básica de cidadania. De acordo com a lei, não aplicada pelo Estado, todos os brasileiros e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no país deveriam receber um benefício monetário suficiente para atender às despesas mínimas com alimentação, educação e saúde.

Lei da População em Situação de Rua. Que o decreto que instituiu Política Nacional para a População em Situação de Rua se transforme em dispositivo legal para garantir os direitos da poprua, inclusive instituindo o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua. Já proposto na Câmara pelo deputado Nilto Tatto (PT-SP), o Projeto de Lei 5740/16 pretende assegurar serviços públicos e atendimento à pop-rua, além de garantir a posse de seus bens como cobertores, roupas e alimentos.

Mapeamento da poprua. Apesar de indicar a importância do mapeamento para a implementação de políticas públicas — o artigo 13 prevê o apoio do IBGE e do Ipea ao Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua) — nada foi feito.

Moradia. Políticas públicas de habitação social que garantam moradia e locação social para a população em situação de rua. “A moradia é o principal objetivo, hoje, do movimento”, aponta Madalena. “Quando alguém em situação de rua perde a moradia e o trabalho acaba também perdendo o vínculo com a família, com os amigos. A autoestima cai no chão. É preciso trabalhar essa autoestima, ao mesmo tempo em que se garante moradia e trabalho. Quando falamos de moradia não é dar uma chave para a pessoa e tchau, mas moradia compartilhada: ele vai pruma casa, que não é albergue nem abrigo, e é oferecido um suporte. Então você tem que considerar esses fatores todos juntos, porque a situação em que eles estão é multidimensional, tem que trabalhar as várias dimensões ao mesmo tempo para poder resgatar a pessoa”.

A luta por essas pautas pode durar anos. Pergunto, então, o que fazer agora: quais políticas públicas a pop-rua podem exigir em caráter emergencial? Eles responde:

Criação de repúblicas. Aumentar o número de repúblicas para a população em situação de rua, que funcionam em um modelo similar às de estudantes. Por meio de edital municipais de contratação de ONGs, realiza-se o acolhimento em casas, em quarto compartilhados de até quatro pessoas, geralmente com não mais de 10 pessoas na casa. Há uma contribuição simbólica para o aluguel, cerca de 50 reais por mês, e na casa são desenvolvidas atividades de geração de renda e trabalho, com supervisão de um funcionário contratado para gerenciar a república.

“É uma casa de fato, em modelo coletivo, que não tem aparência de equipamento de acolhimento. Pode entrar e sair com liberdade”, conta, animado, Darci. “É como se você estivesse morando em residências, mas num modelo coletivo, com liberdade para fazer sua própria comida, lavar suas próprias roupas, com autonomia. Se não é possível acessar moradias individuais, que se acesse a moradia por meio de repúblicas. Albergue a gente não quer mais. Ninguém aguenta mais albergue, CTA, Centro de Acolhida. São ambientes insalubres para a vida humana, separam pessoas de suas famílias e violam diversos direitos. Funcionam em um regime penitenciário, parece que vivemos em um regime semiaberto.”

Segurança alimentar. Expansão de rede de restaurantes populares, como o Bom Prato, com horários de funcionamento para também servirem café da manhã e janta. “Não queremos mais depender de caridade, é preciso política pública emergencial que garanta segurança alimentar”, completa Darci.

E aí, cara?

(Foto: Carolina Simon)

Encontro Carlos, o Malabares, em São Paulo, no cruzamento de avenidas em frente ao Copan. Estava participando de algumas atividades do Movimento Pop-rua. Semáforo fecha. Vermelho. É o sinal verde para Carlos iniciar seu trabalho como malabarista. Entre um intervalo e outro, conversamos.

“Esse trabalho de artista de rua, de ser malabarista, foi um meio de sobrevivência pra mim, quando eu tava numa situação de vulnerabilidade, então quando você ia fazer uma entrevista ou procurar um emprego, porque anteriormente eu trabalhava de pintor profissional, e aí quando a pessoa te pede o endereço e você não tem endereço, a pessoa não vai te fornecer o trabalho porque ele já sabe, você tá sendo discriminando, saca?”

Na infância já havia trabalhado como assistente de serviços gerais em um circo que rodava o interior. Quando as coisas apertaram, passou a observar uma galera que trabalhava no semáforo. Um deles era o psicólogo Marcelo Mamute, de Ribeirão Preto, que enfrentava problemas de dependência química “da droga mais pesada” – “eu nem gosto de ficar falando o nome”. Carlos penava em construir seus números, de forma independente, nos semáforos. Até que Mamute, um amigo das ruas, deu a letra: “Tem uma praça lá, que tem um encontro de artistas de rua, todas as terças-feiras”.

“Isso foi um fator principal pra mim, que eu comecei a explorar esse lado da arte. Traz aí um benefício pra mim, não ganha muito, ganho o razoável pra poder, quando tá numa outra cidade, você pode dormir numa pousada, pode dormir num hotel, você pode ter o dinheiro de sua alimentação para você evitar precisar de equipamento.”

Carlos conta que evitar os equipamentos é alívio porque estão muito defasados para atender a população em situação de rua. Organizar-se, portanto, é mais que necessário para algo mudar. Mas…

“São tantas conferências, tantas cartas enviadas aos órgãos competentes, mas mesmo assim nós continuamos lutando, mas já é bastante escaldante, porque você já fica cansado, porque você vê o descaso em cima da política que já existe.

“É muito difícil mobilizar pessoal em situação de vulnerabilidade, porque eles já estão descrentes de tudo, no mundo deles eles não acreditam mais em nada, então essa é uma das dificuldades, porque a pessoa na vulnerabilidade ela quer que as coisas aconteçam rápido, de uma hora pra outra, e o movimento ele não oferece casa, dinheiro, não oferece nada no lado material, quando há essas parcerias, aí nós compartilhamos. Então quando não, aí quando fica bastante dificultoso.”

O semáforo fecha de novo. Nos despedimos. Lá vai ele pro ganha-pão. Mas, enquanto saía, ele me chama.

“Tem como me arrumar um cigarro desse aí?” 

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