17 Junho 2019
O apelo ao diálogo não consegue disfarçar as intransigentes visões ideológicas do texto vaticano.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 14-06-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os bispos católicos, incluindo os dos escritórios vaticanos, não são exatamente as autoridades mais confiáveis em questões relacionadas à sexualidade nos dias de hoje.
Poucas pessoas discordariam disso, exceto – talvez – os próprios bispos. E, é claro, aqueles que estão se esforçando para serem nomeados bispos.
A falta de credibilidade sobre a moral sexual não se deve apenas ao desastroso mau tratamento dado pelos hierarcas à pandemia dos abusos sexuais clericais que ainda se desdobra.
Tampouco é o fato de os bispos serem homens solteiros, que prometeram renunciar à intimidade sexual e a qualquer expressão genital dela.
Mas a genitália é exatamente o foco (ou o foco desvirtuado) do último documento da Congregação para a Educação Católica, quase exclusivamente liderada por clérigos. Ele se chama “Homem e mulher os criou: para uma via de diálogo sobre a questão do gender na educação”. Ele foi lançado silenciosamente no dia 10 de junho, sem aviso prévio nem alerta.
A intenção declarada da Congregação ao publicar esse texto de 31 páginas é ajudar a “guiar as contribuições católicas ao debate em curso sobre a sexualidade humana e a enfrentar os desafios que emergem da ideologia de gênero”.
Não está claro quem realmente escreveu isso. Mas provavelmente não foi o cardeal Giuseppe Versaldi, o prefeito italiano de 75 anos da Congregação, ou os outros cerca de 30 cardeais que são membros da Congregação.
Talvez o autor seja uma das outras 21 pessoas (principalmente padres) que trabalham oficialmente no escritório de Versaldi no Vaticano. Apenas três deles são mulheres.
Mas duas dessas mulheres são apenas pessoal técnico, o que significa que elas não têm nada a ver com a formulação de políticas ou a contribuição para o conteúdo dos documentos.
Pode ser que a pessoa que escreveu esse novo texto seja um dos 26 “consultores” da Congregação para a Educação Católica.
Eles incluem dois bispos, 10 padres, 10 leigos, uma leiga e uma religiosa. É provável que um especialista na chamada “teoria de gênero” esteja oculto no meio deles?
Ou talvez foi Marguerite Peeters? A jornalista belga e guerreira cultural conservadora é um dos autores favoritos e uma apoiadora do cardeal Robert Sarah.
Professora da Pontifícia Universidade Urbaniana, em Roma, ela é há muito tempo a especialista do Vaticano sobre “ideologia de gênero”.
Peeters não é uma consultora da Congregação para a Educação Católica, mas tem esse papel no Pontifício Conselho para a Cultura e também foi consultora do antigo Conselho para os Leigos.
Não interessa quem escreveu esse novo documento; não há nada nele que marque uma mudança em relação ao tratamento fragmentado do Vaticano aos problemas que ele aborda.
Mas há algo verdadeiramente notável sobre “Homem e mulher os criou”. É o apelo do documento ao diálogo, que é apresentado em seu próprio título.
O autor ou os autores afirmam que “a via do diálogo – que escuta, analisa e propõe – apresenta-se como o percurso mais eficaz para uma transformação positiva das inquietudes e das incompreensões acerca da questão de gênero”.
E a sua alegada razão para defender o diálogo é superar “a aproximação ideologizada às delicadas questões de gênero”.
Mas, como outros apontaram, o documento parece ter sido escrito na violação desse mesmo princípio. Com quem os autores dialogaram antes de escrever esse texto?
E o documento em si não está profundamente defeituoso por causa de suas próprias abordagens orientadas ideologicamente?
Estas estariam enraizadas em uma resistência obstinada a qualquer um dos avanços e intuições científicos validados – biológicos, psicológicos e sociológicos – e insights nas últimas centenas de anos que desafiam e até mesmo refutam algumas bases antropológicas do século XIII do “ensinamento oficial da Igreja” sobre a sexualidade humana.
O chamado desse documento vaticano ao diálogo nada mais é do que passar batom em um porco.
Ele pode ser descartado e ignorado pela tentativa falsa que é, exceto pelo fato de o próprio texto equivaler a um julgamento cruel e insensível sobre as consciências (e os motivos) das pessoas reais, especialmente daquelas que se sentem e se descobriram como transexuais.
A maneira pela qual esse novo documento foi lançado levanta questões importantes sobre a sua real intenção; especialmente, ele nos faz nos perguntar quem é o público pretendido. O texto basicamente caiu do céu sem qualquer aviso prévio.
Alguns de nós foram avisados sobre a existência do documento cerca de quatro dias antes da sua publicação efetiva. Mas isso não aconteceu a partir de fontes do Vaticano.
Geralmente, quando um escritório da Cúria Romana emite um documento, a Sala de Imprensa da Santa Sé faz um anúncio com alguns dias de antecedência, informa a data em que o texto será tornado público e entrega aos jornalistas credenciados uma cópia embargada desse documento pelo menos algumas horas antes de ele ser lançado oficialmente.
E, muitas vezes, o chefe do escritório e outros especialistas (às vezes incluindo o[s] ghostwriter[s]) realizam uma coletiva de imprensa para apresentar o documento e destacar sua importância.
Nada disso ocorreu com o novo texto sobre gênero da Congregação para a Educação.
Exatamente às 13 horas do dia 10 de junho, quando a maioria das pessoas em Roma começam a se sentar para o almoço, a Sala de Imprensa enviou um e-mail aos jornalistas com o seguinte assunto: “Info Utile: Documento della Congregazione per l'Educazione Cattolica - Embargo Assoluto”.
A “informação útil” desse e-mail em particular era o novo documento sobre gênero sob embargo estrito até as 15h30.
Nós recebemos o texto em sete línguas diferentes e a URL de um site exclusivamente em italiano para a Congregação para a Educação Católica (www.educatio.va), que a maioria de nós sequer sabia que existia.
Estranhamente, até o dia 14 de junho, o novo documento não se encontrava no site oficial do Vaticano (www.vatican.va) – nem mesmo na seção especialmente projetada para o escritório de educação e onde quase todos os seus documentos anteriores e até mesmo recentes estão disponíveis.
Perto da parte inferior da primeira longa página do site oficial do Vaticano, na realidade, há um link para esse site secundário. Mas, mesmo se alguém for até lá, terá que navegar muito (e conhecer um pouco de italiano) para descobrir onde as cópias dos documentos podem ser encontradas em outros idiomas.
Tudo isso poderia levar a concluir razoavelmente que o novo documento não é algo em relação ao qual a Congregação para a Educação Católica ou o Dicastério da Comunicação do Vaticano estavam particularmente ansiosos para anunciar com grande fanfarra.
Meu palpite é que esse documento, na verdade, tem a intenção de aplacar os tradicionalistas católicos e outros conservadores sociais que estão entre os críticos mais contundentes do Papa Francisco “liberal demais”.
Ele se parece muito a migalhas para os conservadores. Mas alguns deles viram isso como uma suculenta carne vermelha, especialmente por causa dos protestos e das críticas que o documento evocou por parte de católicos mais progressistas que tendem a ser favoráveis ao papa.
Um jornal italiano muito conservador argumentou que tal crítica ao documento sobre gênero é uma prova de que os chamados católicos progressistas estão agora se unindo aos tradicionalistas e se voltando contra Francisco.
Boa tentativa, mas isso não funciona. Por mais perturbador que algumas pessoas achem o novo documento, este não é o equivalente à Humanae vitae do Papa Francisco.
E, de fato, apesar de o Papa Francisco provavelmente concordar com a maior parte do que está escrito no texto, ele não o assinou. E ele também não ordenou que ele fosse publicado.
A maioria dos católicos e outras pessoas que são inspiradas por esse papa não vão se afastar por causa daquilo que está escrito nessas 31 páginas.
Em vez disso, eles continuarão apoiando Francisco – mesmo que ele inspire e também os desafie – porque sabem que as ações desse papa falam mais alto do que as palavras.
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Documento do Vaticano sobre gênero é como passar batom em um porco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU