14 Junho 2019
"Para uma Igreja chamada a seguir o caminho de Nosso Salvador Jesus, o caminho do amor e da compaixão, o caminho da inclusão, e não da exclusão, a discriminação de gênero é simplesmente inaceitável", escreve Ray Dever, diácono estadunidense da Paróquia de São Paulo, em Tampa, Flórida, que é pai de uma filha transgênero, em artigo publicado por Bondings 2.0, 13-06-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando eu li o documento recém-lançado pelo Vaticano sobre identidade de gênero nos últimos dias, fiquei pensando sobre as minhas experiências no ano passado.
Nos últimos 12 meses, eu ouvi falar de muitas escolas, paróquias e famílias católicas de todos os EUA que buscam aconselhamento sobre questões relacionadas à aceitação e à acomodação de estudantes transgêneros. Em alguns casos, esse processo tem sido uma experiência muito gratificante, mas, em outros, tem sido muito desanimadora.
Como exemplo, fui convidado há alguns meses para passar alguns dias em um colégio jesuíta masculino de Ensino Médio no Meio-Oeste, para ter uma conversa honesta e respeitosa com a administração e os professores sobre questões transgêneros e sobre como abordar melhor essas questões em um contexto católico. Fiquei extremamente agradecido pela sua abertura e pelo sincero desejo de fazer o que é certo.
Por outro lado, recentemente também ouvi falar do diretor de outra escola católica do Meio-Oeste que estava sendo forçado pela diocese a parar de acomodar um estudante abertamente transgênero e a essencialmente expulsar o aluno no fim do ano letivo. Além disso, a diocese estava prestes a desenvolver uma medida que efetivamente baniria os estudantes abertamente transgêneros de qualquer escola católica da diocese.
Como acomodar estudantes transgêneros em um contexto educacional católico é uma questão complexa e desafiadora com a qual quase todas as escolas católicas ou as paróquias se depararam ou vão se deparar em algum momento. Em uma aparente tentativa de enfrentar essa questão, nesta semana, a Congregação para a Educação Católica do Vaticano publicou o documento “Homem e mulher os criou: para uma via de diálogo sobre a questão do gender na educação”, um documento que rapidamente provocou fortes reações de ambas as extremidades do espectro, inclusive aqui no Bondings 2.0.
Eu tenho uma série de preocupações sérias com o documento, mas a minha maior preocupação pastoral é de que esse documento seja usado como uma razão para que as escolas católicas e as paróquias discriminem injustamente os estudantes transgêneros e, nesse processo, causem danos reais a eles e a suas famílias.
Para uma Igreja chamada a seguir o caminho de Nosso Salvador Jesus, o caminho do amor e da compaixão, o caminho da inclusão, e não da exclusão, esse tipo de discriminação injusta é simplesmente inaceitável.
Muitas objeções foram levantadas para o foco estreito do documento sobre a chamada “teoria de gênero” e à sua aparente negação, muitas vezes em termos severos, da realidade dos indivíduos transgêneros. Também foi observado que o documento parece estar totalmente desconectado do corpo significativo e crescente de conhecimentos científicos e médicos sobre a identidade de gênero e da realidade vivida dos indivíduos transgêneros, observações com as quais eu concordaria.
Com praticamente todas as organizações profissionais nacionais e internacionais que representam a grande maioria dos médicos, psiquiatras e psicólogos que afirmam a realidade dos indivíduos transgêneros, pesquisando e documentando como a identidade de gênero é determinada e apoiando fortemente os cuidados de saúde apropriados e as proteções não discriminatórias para as pessoas transgêneros, o retrato das questões de identidade de gênero apresentadas por esse documento está desatualizado e em desacordo com a ciência publicada.
Como pai de uma filha transgênero e como diácono cujo ministério inclui a pastoral às famílias católicas com membros transgêneros, também é dolorosamente aparente que o documento está totalmente divorciado da realidade vivida das pessoas transgêneros. O modelo sobre o qual todo o documento se baseia é fundamentalmente falho. Eu afirmo que o crescimento e a influência da teoria de gênero fazem com que as pessoas acreditem que podem simplesmente escolher o seu gênero. Eu acho que qualquer pessoa com uma experiência em primeira mão com questões de identidade de gênero confirmará que, para uma pessoa autenticamente transgênero, ser transgênero não é uma escolha e certamente não é impulsionado por qualquer teoria ou ideologia de gênero.
Mas o meu principal interesse aqui não é analisar e debater sobre todos os detalhes do documento, mas sim em abordar o potencial impacto negativo que o documento poderá ter na prática. Imagine que você seja um genitor católico com um filho ou filha que revela ser transgênero. Essa consciência vem depois de um longo e doloroso processo de luta dele ou dela com isso e, finalmente, do abraço da sua autêntica identidade. Nada disso foi uma escolha. Imagine como as suas preocupações normais de genitor pelo bem-estar dos seus filhos seriam amplificadas no caso do seu filho ou filha transgênero. Imagine saber que seu filho ou filha enfrentaria um caminho na vida caracterizado pela constante ameaça de chapéu ódio e discriminação, simplesmente por ser quem ele ou ela é. Imagine ter que viver com o conhecimento da probabilidade de seu filho ou filha ser vítima de violência ou de morrer por suicídio – ambos são significativamente maiores para as pessoas transgêneros do que para a população em geral.
É difícil para mim expressar adequadamente como foi doloroso quando a nossa filha transgênero disse que estava relutante em fazer planos de longo prazo, porque, se as estatísticas sobre as pessoas transgêneros forem verdadeiras, ela não poderia viver até os 40 anos de idade.
Agora, como você é um genitor católico que está lutando para tentar transmitir a fé para seus filhos, para ajudá-los a encontrar o sentido último das suas vidas, você se volta para a sua comunidade católica local em busca de apoio. Em vez de apoio, dizem-lhe que seu filho ou filha transgênero não poderá mais frequentar a escola católica local. Na paróquia, dizem-lhe dito que ele ou ela não será autorizado a participar dos encontros de formação para a fé ou de preparação sacramental, ou a continuar participando do grupo de jovens.
Para uma família de fé que já está lutando com todas as questões trazidas pelo fato de ter um filho ou filha transgênero, a experiência de também ser rejeitado pela Igreja pode ser incrivelmente dolorosa e prejudicial em muitos níveis.
E esses exemplos não são situações hipotéticas, mas sim situações que eu sei que ocorreram em várias escolas católicas e paróquias dos EUA. Com o acréscimo desse mais recente documento do Vaticano para a discussão, eu não ficaria surpreso se esses casos de discriminação injusta aumentarem.
Eu certamente espero que esse documento confuso não tenha o impacto negativo que eu temo que ele terá, mas que seja mantido na perspectiva adequada pelas pessoas de fé ponderadas. Se há algo positivo que possa ser tirado do documento, pode ser o seu apelo a um processo de diálogo sobre essas questões (embora, obviamente, teria sido muito melhor se a Igreja tivesse feito esse diálogo antes de publicar um documento como esse). Eu acho que a Igreja está muito atrasada para se envolver objetivamente com a ciência da identidade de gênero e para aprender com a realidade vivida das pessoas transgêneros.
Se a Igreja leva a sério esse diálogo, então ela precisa começar a dar alguns passos formais para que isso aconteça e para garantir que não se trate apenas de outro diálogo com indivíduos escolhidos à mão que já apoiam os pontos de vista fortemente enunciados pela Igreja. Ele precisa ser um diálogo aberto, honesto e objetivo com as comunidades médica e científica mais amplas, com experiência em identidade de gênero, e, acima de tudo, precisa ser um diálogo com os indivíduos transgêneros e suas famílias.
Eu espero e rezo para que o verdadeiro processo de diálogo ocorra. Se ocorrer, talvez a Igreja institucional descubra o que tantas famílias católicas afortunadas como a minha descobriram sobre os seus filhos ou filhas gays ou trans: eles fazem parte da criação bela e diversa de Deus, e não são aberrações da natureza ou produtos de alguma ideologia confusa.
A sua presença nas nossas vidas ajudou a abrir os nossos olhos não apenas para a comunidade LGBTQ, mas também para todas as pessoas marginalizadas e oprimidas que nós, como cristãos, somos chamados a abraçar e a amar. A nossa filha não fez absolutamente nada para minar o matrimônio católico e a família, mas, de fato, aproximou toda a nossa família.
Mas, até que um processo de diálogo aberto e honesto e de aprendizagem ocorra, eu estou profundamente preocupado que haverá muitos estudantes transgêneros e suas famílias e amigos que se sentirão feridos por esse documento e suas recomendações.
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Novo documento do Vaticano sobre gênero: existe esperança? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU