27 Março 2019
Diante das primeiras tensões, e na ausência de um projeto, a coalizão de Bolsonaro rachou em quatro grupos. Quais são eles? Que querem? Como a divisão poderia abrir caminho para um novo projeto?
O artigo é de Antonio Martins, jornalista, publicado por Outras Palavras, 25-03-2019.
No início dos anos 1990, ficou claro que a privatização do setor ferroviário, na Inglaterra, havia afundado a qualidade dos serviços. Os problemas se multiplicavam, mas o mais evidente era que os trens jamais chegavam no horário. Uma investigação revelou a causa dos transtornos. Para afastar o Estado, haviam concorrido múltiplos interesses de privatizadores. Mas, uma vez assegurado o controle do sistema, eles se degladiavam. A empresa que controlava as vias; a que operava as composições; a encarregada de limpeza e logística; as responsável por vender as passagens – cada uma estava interessada acima de tudo em seus próprios lucros – e tomava decisões que frequentemente chocavam-se com as atividades das demais. O resultado era o caos. O governo Bolsonaro vive, há duas semanas, um inferno semelhante.
Diante das primeiras tensões, revelou-se o vazio – a ausência de um projeto comum. Sem ter nada em torno de que se unir, os quatro grupos que se articularam em 2018 para viabilizar a vitória do ex-capitão dividiram-se, cada um aferrado a seus interesses particulares. Este movimento centrífugo permitiu, em primeiro lugar, um mapeamento mais preciso da coalizão governista e de seus conflitos internos. Muito mais importante: expôs um governo incapaz de caminhar, porque marcado por disputas intrincadas, que geram atritos frequentes, ruidosos e muitas vezes grosseiros.
Este desentendimento amplia tanto as chances de resistir aos principais projetos do governo quanto as de provocar um curto-circuito mais amplo e neutralizar as ameaças que ele representa. Mas da possibilidade à mudança de cenário há ainda um longo caminho a percorrer. A chave é esboçar as linhas básicas de um projeto alternativo. Sem isso, é provável que a janela de oportunidade se feche ou – pior – que seja preenchida por outra articulação conservadora. Vale atentar para as ações cada vez mais desenvoltas do general Mourão…
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Cronologicamente, a primeira dissidência foi aberta pela ala do bolsonarismo representada pelo ministro Sérgio Moro e pelos procuradores da Operação Lava Jato – cujo projeto político e de poder tornou-se indisfarçável. Na madrugada de 20/3, o próprio Moro perturbou o conluio governista, ao lançar a primeira investida contra Rodrigo Maia. O presidente da Câmara havia decidido, após entendimento com o Palácio do Planalto, adiar por algum tempo a tramitação do “pacote anticrime” de Moro. Temia que, num cenário em que o governo ainda não firmou uma base mínima de apoio no Congresso, submeter simultaneamente duas propostas polêmicas – a do ministro da Justiça e a “Reforma” da Previdência – fosse desastroso.
Moro não se conformou. Cobrou o presidente da Câmara publicamente e numa série de mensagens pessoais, disparadas durante a madrugada. A impertinência foi repreendida: “Eu sou o presidente da Câmara e ele é funcionário do presidente Bolsonaro. O presidente é que tem de vir aqui conversar comigo”, retrucou Maia. Ao invés de calar-se, Moro insistiu. Irônico, sugeriu que Maia está entre os que “entendem que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente”.
O consórcio Moro-Lava Jato teve, nas duas semanas do confronto, apoio do setor representado pelo próprio presidente, seu entorno familiar e “gurus” como Olavo de Carvalho. Horas depois de Moro fustigar Rodrigo Maia, suas dores foram assumidas por Carlos Bolsonaro, o Carluxo. O filho a quem o presidente chama de “pitbull” provocava, no Instagram: “Por que o presidente da Câmara está tão nervoso”? No mesmo momento, os grupos identificados com o bolsonarismo lançavam, nas redes sociais, uma saraivada de ataques pessoais a Maia. Como é típico, foram marcados por agressividade e desinformação Algumas das postagens sugeriam, sem fundamento, que o deputado não podia exercer a presidência da Câmara, por ter nascido no Chile (onde seus pais eram exilados políticos).
Num movimento paralelo, o próprio presidente engrossava o coro das agressões – principalmente a partir do ponto em que surgiram sinais da queda de sua popularidade. Talvez tenha acreditado que, como na campanha política, poderia voltar a crescer se se mostrasse hostil ao establishment. Na sexta-feira (22/3), antes de embarcar ao Chile, comparou Rodrigo Maia a uma namorada caprichosa. Em 23/3, num café com empresários chilenos, culpou, pelos solavancos de seu governo, os “que não querem largar a velha política”. E mesmo no domingo, de volta ao Brasil, chamou à Alvorada seu líder no governo, o inexpressivo major Vitor Hugo, e orientou-o a dizer que “aos práticas do passado não nos levam ao caminho em que queremos estar.”
Este conjunto de ataques arrepiou o terceiro grupo essencial na sustentação do governo. Embora não possa ser chamada de “bolsonarista”, a “velha política” – as bancadas conservadoras vastamente majoritárias no Congresso Nacional – associou-se ao projeto do capitão ao longo do segundo semestre de 2018. Foi, de ambos os lados, um casamento de conveniência. Em janeiro, quando Rodrigo Maia elegeu-se presidente da Câmara, teve apoio explícito do presidente e de seu PSL. Seu compromisso com a agenda ultraneoliberal é notório. Suas relações com Paulo Guedes, o ministro encarregado de levar adiante tal agenda, são cordiais e sintônicas.
Mas por que motivo estas bancadas conservadoras, conhecidas por sua proverbial astúcia política, aceitariam pagar sozinhas o preço de uma “Reforma” impopular e que, mesmo largamente apoiada pela mídia, foi túmulo de candidaturas em 2018? A “velha política” aceita correr riscos – mas quer compensações. De imediato, dinheiro – verbas públicas com que deputados e senadores alimentam, nos respectivos domicílios eleitorais, suas redes fisiológicas. A médio prazo (e igualmente importante), desejam um governo minimamente coerente e defensável. Ao relutar diante do primeiro quesito, e sinalizar enorme incompetência para cumprir o segundo, Bolsonaro naturalmente se desgastaria
As vociferações de Moro e do clã presidencial ampliaram este desgaste. A atitude altiva de Rodrigo Maia sinalizou o tom da resposta. Ao longo da semana, o presidente da Câmara recebeu a solidariedade não apenas de seu partido, mas de quase todas as bancadas do majoritário “Centrão” na Câmara dos Deputados. No final da semana, parecia que sequer o PSL apoiaria o Planalto. No domingo, advertência cardinalícia: Fernando Henrique Cardoso lembraria que “no Brasil, os partidos são fracos, mas o Congresso é forte (…) comprar briga com o presidente da Câmara é caminho certo para o desastre”.
Dias antes, Moro e a Lava Jato haviam tentado um contra ataque, com a prisão espetaculosa de Michel Temer. Descontentes com os reveses sofridos nas semanas anteriores – quando se desbaratou o fundo de R$ 2,88 bilhões que planejavam desviar da Petrobras e do Tesouro – os procuradores da República de Curitiba ensaiaram uma demonstração de força. Há tantas razões para condenar Temer, seguindo-se o devido processo e respeitando-se o direito de defesa, que trancafiá-lo preventivamente só pode ser visto como uma arbitrariedade tola, um espernear. Pessimamente calculado, porém.
Em especial porque amedrontou o quarto setor essencial da coalizão sem projeto que compõe o bolsonarismo: o baronato financeiro. Na quinta e sexta feiras, o real e a bolsa de S.Paulo caíram cerca de 5%. Foi um sinal de que a única ideologia dos mercados é o lucro, não importando se por meio da “velha” ou da “nova” política. Enquanto Bolsonaro prometia entregar o desmonte da Previdência e outros mimos, teve o apoio dos barões. A partir do momento em que não puder cumprir o que prometeu, perderá o que conseguiu – simples assim.
Para não deixar dúvidas, as quedas do real e das bolsas foram acompanhadas de declarações enfáticas. “Operadores de mercado” ouvidos pela Folha queixaram-se de que o presidente ignora a arte de cortejar os velhos políticos (alguns chamaram-na de “Dilma de calças”). Também notaram que as concessões feitas pelo projeto oficial aos militares foram tantas que a narrativa segundo a qual trata-se de “eliminar privilégios” pode não se sustentar…
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Na segunda-feira, ensaiou-se uma trégua. Foi marcada por um nítido recuo do presidente e seu entorno mais íntimo. Em cerimônia para marcar a concessão de linhas de transmissão elétrica, Bolsonaro afirmou que sua prioridade é a “Reforma” da Previdência. Noutro evento, com prefeitos e governadores, Paulo Guedes adulou o antes atacado Rodrigo Maia, a quem considerou um aliado da proposta do governo.
O incêndio, porém, pode demorar a se extinguir. Horas antes, duas figuras emblemáticas da suposta “nova política” do presidente engalfinhavam-se em público. O deputado Kim Kataguiri, líder do MBL (e filiado ao DEM-SP), atacou a líder do governo no Congresso, deputada Joice Hasselmann, a quem acusou de “não fazer oposição republicana”. Para Kim, “a ‘Reforma’ da Previdência morreu – e a culpa é do governo Bolsonaro”.
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As duas semanas da primeira grande crise do governo ensinam algumas lições. Primeira: a maioria conservadora formada nas eleições de novembro último é frágil e pode ser desafiada. É verdade que nunca houve, além de um presidente, um Congresso tão conservador e promíscuo diante do grande poder econômico. Mas é igualmente claro que a falta de um projeto comum torna muito vulneráveis tanto o Executivo quanto o Legislativo. Por não terem rumos, ambos temem a maioria das ruas – que conquistaram no ano passado por uma série de fatores conjunturais, mas é volátil. Ainda hoje, a Arquimedes, uma nova empresa de análise de redes sociais que trabalha para o mercado financeiro, constata, em relatório, que o apoio à proposta governamental para a Previdência caiu a um mínimo inédito.
Abrem-se, rapidamente, duas possibilidades. Primeiro, derrotar no Congresso um projeto que é essencial para a sustentação do governo e seu projeto de desmonte e rapina. Segundo, acenar com um esqueleto de medidas que apontem outro rumo, e resgatem o país da cantilena depressiva de cortes de despesas, redução de direitos, sacrifícios, punições. Os artigos sucessivos de André Lara Rezende revelam: até mesmo os economistas ligados ao mercado percebem, aos poucos, o vazio e a inconsistência desta ideia.
Porém, para que a crítica não se esgote na academia, é preciso formular, também, caminhos capazes de mobilizar a sociedade e sinalizar outro rumo. Por exemplo, a revogação da Emenda Constitucional que congela os gastos sociais por vinte anos, a retomada da valorização do salário mínimo, um plano ousado de investimentos para recuperar os serviços públicos, os direitos sociais e a infraestrutura.
Sem tal alternativa, a janela se fechará. Ou será aproveitada por outros atores, de projeto claramente conservador. No início desta semana, noticiava-se que o general Mourão fará nesta terça-feira (26/3), em São Paulo, dois encontros com a Fiesp que estão provocando frisson entre o grande empresariado. Ainda mais inusitado e preocupante: no meio da semana passada, um conjunto de deputados paulistas reuniu-se com o Comandante Militar do Sudeste, general Luiz Eduardo Ramos. O pretexto foi ouvir as opiniões de Ramos sobre a proposta do governo para as aposentadorias militares. Mas em pouco tempo, relatou a Folha, o diálogo evoluiu para queixas em relação a Bolsonaro e sua inapetência para a política. O general teria sugerido a seus interlocutores que prestem atenção ao que diz o vice-presidente – depois de frisar que se opõem de modo cabal a uma aventura militar brasileira na Venezuela…
O cenário, que há alguns meses parecia tenebroso, tornou-se incerto e instável. Surgiu, no desgaste e desorientação do governo, uma brecha clara. Não aproveitá-la implica abrir a porteira para novos perigos – e talvez menos contraditórios…
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Governo em pedaços – vitória ou ameaça? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU