24 Março 2019
De tempos em tempos, alguém reclama do estado da teologia católica. Alguns anos atrás, Paul Griffiths usou seu discurso plenário perante a Sociedade Teológica Católica dos Estados Unidos para castigar os membros por se envolverem demais em política, história e outros campos, em vez de se concentrarem diretamente na doutrina.
O comentário é da teóloga estadunidense Cathleen Kaveny, professora de Direito e Teologia no Boston College, em artigo publicado em Commonweal, 13-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Mais recentemente, o professor Charles Camosy, da Fordham University, afirmou que o campo da teologia moral católica está em crise, tanto em um ensaio de novembro no Church Life Journal, quanto em uma entrevista posterior com a revista America no mês passado. Por quê? Porque muitos praticantes se concentram na análise interseccional em vez de em questões tradicionais da teologia moral.
Eu suspeito que a crítica de Camosy é um cavalo de Troia para outra crítica mais existencial do campo. Ele teme que as preocupações pelas quais ele mais preza – particularmente aquelas relacionadas a problemas pró-vida – não estejam mais no centro da discussão acadêmica. Isso pode ser verdade. Pode ser uma vergonha. Não tenho certeza se é uma crise.
Primeiro, um pouco de pano de fundo. Interseccionalidade é um termo usado há 30 anos pela teórica jurídica Kimberlé Crenshaw para argumentar que raça, sexo e localização econômica e social precisam ser examinados em conjunto para fornecer uma explicação suficientemente abrangente das estruturas de opressão. Martin Luther King Jr. chegou à mesma conclusão no fim dos anos 1960, quando começou a examinar os efeitos conjugados do militarismo, raça e classe.
A análise interseccional pode ser um instrumento útil para estudiosos interessados na doutrina social católica. Como qualquer instrumento, é claro, pode ser mal utilizado. Mas quem, especificamente, utilizou mal e como? Camosy não nos diz, além de disparar alguns tiros contra a Sociedade Teológica Católica dos Estados Unidos, mas, em vez disso, lança um ataque generalizado contra um grupo nebuloso de colegas.
Na minha opinião, seria mais útil para ele se envolver com pensadores particulares com os quais ele discorda. E seria muito útil para ele mostrar como o seu próprio trabalho difere do que eles fazem e por que a sua abordagem é aceitável e a deles não.
O problema da análise interseccional é metodológico? Camosy usou a análise interseccional em seu exame acadêmico sobre o aborto, incluindo o modo como raça, classe e gênero atuam sobre ele. Como ativista, ele também desenvolveu uma crítica do poder político ao examinar a conexão entre as elites políticas e a Planned Parenthood. Camosy se queixa que os teólogos interseccionais querem remover os opressores do poder, em vez de trabalharem para convertê-los e se reconciliarem com eles. Mas Camosy quer votar em políticos pro-choice fora dos cargos e instalar juízes pró-vida nos tribunais. Qual a diferença entre o exercício do poder deles e o dele?
Eu suspeito que a crítica de Camosy aos teólogos morais interseccionais é essencialmente substantiva, e não metodológica. A maioria dos moralistas católicos não está tão interessada em falar sobre as questões que mais importam para Camosy: questões de aborto e de início da vida, ou mesmo questões tradicionais na ética médica, como a retirada do tratamento de manutenção da vida. Eles se concentram na imigração e nos refugiados, raça, mudanças climáticas, questões de sexo e de gênero, e justiça econômica, assim como na inter-relação entre todas essas questões. Não surpreendentemente, dada a crise dos abusos, o nexo entre sexo e poder também está sendo muito investigado.
Todas as discussões acadêmicas mudam com o tempo. Minha impressão é que muitos jovens teólogos morais acham que não há nada de novo a dizer sobre o aborto e a contracepção, que foram exaustivamente levados em consideração na geração anterior. Eles querem abrir novos caminhos, fazer estudos acadêmicos construtivos e críticos, como a geração anterior a eles fez no seu próprio tempo.
Camosy afirma que os teólogos morais interseccionais são revisionistas que não estão pensando com a tradição magisterial. Mas é realmente isso? O Papa Francisco coloca as mudanças climáticas na frente e no centro da Laudato si’ e chamou a atenção para a difícil situação dos migrantes e refugiados – muitas vezes de forma interseccional, mostrando que essas questões estão ligadas.
Incidentalmente, ele também criticou a obsessão da Igreja com a contração, o aborto e o casamento gay – com base no fato de que falar incessantemente sobre esses assuntos fará com que “o edifício moral da Igreja [caia] como um castelo de cartas, perdendo o frescor e o perfume do Evangelho”.
Mas e a dissidência? Certamente, alguns teóricos interseccionais estão pressionando pela revisão do ensino católico oficial, particularmente em questões nevrálgicas da moral sexual. Camosy afirma que alguns deles estão importando um conjunto de normas alheias e seculares para criticar a doutrina católica. Mas essa é uma acusação complicada de se sustentar. O marco moral católico central é a “tradição da lei natural”, que afirma estar em consonância com as melhores intuições de homens e mulheres de boa vontade.
De fato, Francis Sullivan, SJ, um ilustre eclesiólogo, ponderou a ideia de que o ensino da Igreja sobre questões morais específicas nunca pode ser infalível, porque tal ensino invariavelmente depende de juízos factuais que podem se desenvolver e mudar.
Na minha experiência, até mesmo os moralistas católicos mais progressistas veem a si mesmos desenvolvendo a tradição, e não a minando. Essa autopercepção pode estar incorreta. Mas a tarefa de um crítico é se envolver com acadêmicos particulares com rigor e caridade, para mostrar precisamente onde e como eles estão errados. É o tipo de crítica, infelizmente, pela qual os teólogos morais interseccionais ainda esperam.
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A falsa crise da teologia moral católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU