27 Janeiro 2019
Se efetivamente podemos falar, como Francisco faz na mensagem, de um “ambiente medial”, que é “indistinguível da esfera da vida cotidiana”, as redes não podem ser vistas somente como algo ao nosso dispor, ao qual podemos “recorrer” (“recurso”) quando necessário. Trata-se de algo mais amplo, que nos envolve e nos transforma: uma ambiência.
A opinião é do jornalista Moisés Sbardelotto, mestre e doutor em Ciências da Comunicação, autor dos livros “E o Verbo se fez rede: religiosidades em reconstrução no ambiente digital” (Paulinas, 2017) e “E o Verbo se fez bit: a comunicação e a experiência religiosas na internet” (Santuário, 2012).
No dia 24 de janeiro, dia de São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas e comunicadores, o Papa Francisco divulgou a sua sexta mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, intitulada “‘Somos membros uns dos outros’ (Ef 4, 25): das comunidades de redes sociais à comunidade humana”.
Em sua mensagem, o papa reconhece que “desde quando se tornou possível dispor da internet, a Igreja sempre procurou promover o seu uso a serviço do encontro entre as pessoas e da solidariedade entre todos”.
Os gestos pontifícios, nesse sentido, são um indicativo interessante. Ainda em 1995, enquanto a internet engatinhava em solo brasileiro, o Vaticano lançava o seu site oficial (vatican.va). Entre agosto 1998 e outubro de 1999, o Papa João Paulo II chegou a divulgar um endereço de e-mail pessoal, mas que foi fechado por excesso de e-mails recebidos. Em 2001, em um evento público, na Sala Clementina, no Vaticano, João Paulo II enviou o primeiro “e-mail papal”, dirigido a todos os bispos da Oceania, anexando a exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Oceania. E a sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2002 foi o primeiro documento pontifício a abordar diretamente a internet, intitulada justamente “Internet: um novo foro para a proclamação do Evangelho”.
Bento XVI, por sua vez, foi o primeiro papa a ter uma conta pessoal em uma plataforma sociodigital, o Twitter, com o usuário @Pontifex (em vários idiomas), criado em 2012.
E Francisco também inovou em muitos aspectos. Ele manteve as contas @Pontifex e, em 2017, foi o líder mundial mais seguido no Twitter (com mais de 33 milhões de seguidores), de acordo com o estudo Twiplomacy. Em 2014 e 2015, participou de duas videoconferências via Google Hangout, promovidas pela ONG Scholas Ocurrentes, com estudantes do mundo inteiro. Em 2016, criou uma conta pessoal no Instagram, com o nome de usuário @Franciscus, e incentivou o lançamento do projeto “O Vídeo do Papa”, que traduz as tradicionais intenções mensais do papa para a linguagem audiovisual do YouTube.
Hoje, portanto, afirma Francisco na mensagem, “o ambiente medial é tão invasivo a ponto de já ser indistinguível da esfera da vida cotidiana” – e também da vida eclesial e religiosa. Isso ficou comprovado no Ângelus do dia 20 de janeiro passado, em que Francisco apresentou ao mundo inteiro a plataforma oficial da Rede Mundial de Oração do Papa, Click To Pray. “Aqui – afirmou o pontífice – vou inserir as intenções e os pedidos de oração pela missão da Igreja. Convidou especialmente você, jovens, a baixarem o app Click To Pray, continuando a rezar junto comigo.”
Em todos esses casos, entrevê-se “o fundamento e a importância do nosso ser-em-relação”, como diz Francisco, que vai se manifestando e se traduzindo ao longo do tempo, dentro das lógicas e dinâmicas comunicacionais específicas de cada cultura e de cada patamar tecnológico.
Na mensagem, esse ser-em-relação é abordado pelo papa a partir de três metáforas principais: a rede, a comunidade e o corpo.
A metáfora da rede se destaca na contemporaneidade. Trata-se da “forma organizacional da Era da Informação” (M. Castells) e da “episteme da nossa época” (C. Scolari). O Papa Francisco a define como uma “multiplicidade de percursos e nós”, uma organização que não tem um centro e não é de tipo hierárquico nem vertical. Em vez disso, “a rede funciona graças à coparticipação de todos os elementos”. Ou seja, nenhum deles é fundamental, pois cada um depende dos outros, e são as suas inter-relações que determinam a estrutura da própria rede (F. Capra)
A partir da dimensão antropológica, Francisco traz à tona ainda “outra figura densa de significados”: a comunidade. Segundo o papa, esta será mais forte quanto mais for marcada por coesão, solidariedade, confiança e partilha. Como “rede solidária”, a comunidade requer “a escuta recíproca e o diálogo, baseado no uso responsável da linguagem”.
E aqui Francisco faz uma diferenciação entre essa noção de comunidade, por ele assim definida, e a chamada social network community (“comunidade de redes sociais”). Sua leitura se foca principalmente nos limites da segunda, ressaltando os aspectos “não comunitários” das redes. Francisco afirma que as comunidades em rede frequentemente são apenas “agregados de indivíduos” unidos por laços fracos, o que alimenta “grupos que excluem a heterogeneidade”, um “individualismo desenfreado”, o ciberbullying, o autoisolamento, gerando “eremitas sociais” e “espirais do ódio”.
Embora sejam limitações reais, o foco apenas nelas pode ignorar que tais lógicas deturpantes das relações humanas não são exclusividade do ambiente digital, mas também se fazem presentes em outros ambientes relacionais, para além de qualquer mediação tecnológica. Por outro lado, tal leitura pode deixar de perceber outros aspectos propriamente comunitários que emergem em rede.
Isto é, pode-se pressupor que a “verdadeira comunidade” só existiria fora das redes e que, em rede, “no melhor dos casos”, como afirma a mensagem, só seria possível construir aproximações de comunidade. Pois, segundo o papa, a social web, em geral, apresenta uma “realidade multiforme e insidiosa”, marcada muitas vezes por uma “dinâmica dramática”, que pode levar a “uma grave ruptura no tecido relacional da sociedade”.
Entretanto, na constante interação entre o online e o offline vivida atualmente – ou, mais propriamente, no caráter “onlife” (L. Floridi) da vida contemporânea (em que não importa tanto quando estamos conectados, mas sim se chegamos a estar em algum momento desconectados) – é mais produtivo compreender como as relações em rede possibilitam experiências comunitárias e de que nível elas são. E, a partir disso, perceber que o objeto instituído (a comunidade) só se institui e se mantém constituído mediante um constante processo instituinte e constituinte das relações entre as pessoas, na internet e fora dela, processo este que é principalmente comunicacional (como as próprias conexões em rede, pois o ambiente digital não é “uma rede de fios, mas de pessoas humanas”, como afirmou Francisco na mensagem de 2014).
Hoje, no ambiente católico digital, manifestam-se modos tentativos e articulados de ir ao encontro de uma catolicidade menos heterônoma. Isso revela, muitas vezes, uma falta de espaços de partilha e de debate intraeclesiais em que determinadas questões possam ser levantadas, o que fomenta essa “migração” ao ambiente digital. Isso se dá especialmente no caso de minorias periféricas eclesiais conectadas em redes, como grupos de católicos divorciados em segunda união, de católicas que praticaram um aborto ou criam sozinhas os seus filhos, de católicos migrantes ou refugiados que se articulam em rede nos países de acolhimento, de católicos LGBT etc.
Em outro contexto semelhante, surgiu no Brasil, nos anos da ditadura militar, um dos principais frutos do Concílio Ecumênico Vaticano II na América Latina: as comunidades eclesiais de base (CEBs). Tratava-se de uma nova experiência de Igreja, de comunidade e de fraternidade, em que emergiu outra forma de ser Igreja. Em tempos de rede, podemos questionar se não estaríamos, hoje, diante da emergência de “comunidades eclesiais digitais” (ou CEDs), que atualizariam, em outros “meios” e em outros “ambientes” (agora midiáticos), a mesma busca e necessidade de experiência religiosa, de vínculo interpessoal, de cidadania eclesial, de autonomia para o apostolado leigo.
Não seriam tais formações em rede também “outra forma de ser Igreja”, que emergeria a partir da insuficiência das experiências comunitárias eclesiais existentes diante dos novos desafios contemporâneos, ou a partir da inexistência de ambientes comunitários eclesiais capazes de acolher e integrar as “periféricas existenciais”, como no caso das CEBs?
De modo mais específico, assim como as CEBs históricas, alguns ambientes digitais, entendidos como CEDs, também permitem, principalmente, que “as pessoas se conhe[çam] e reconhe[çam], [possam] ser elas mesmas em suas individualidades, [possam] dizer a sua palavra e ser acolhidas e acolher pelo nome próprio” (L. Boff). Assim, indo além das configurações espaço-temporais da estrutura eclesiástica local, tais ambientes apontam para uma busca de relações outras em ambientes outros, a partir de uma necessidade de “atualizar” as comunidades tradicionais, de “traduzi-las” às linguagens e às modalidades de comunicação contemporâneas e até de “criar/inventar” experiências inovadoras de vivência e comunicação da fé.
Diante da emergência das CEDs, que apontam para um “novo-ainda-não-experimentado” dentre as variações históricas das formas comunitárias da Igreja, é importante que a instituição eclesiástica e suas autoridades busquem – assim como em relação às CEBs históricas – “respeitar o caminho que se inaugurou; não querer logo enquadrar o fenômeno com categorias teológico-pastorais nascidas de outros contextos e de outras experiências eclesiais; colocar-se numa atitude de quem quer ver, compreender e aprender; manter a vigilância crítica para poder discernir verdadeiros de falsos caminhos” (L. Boff).
“Onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, Eu estou aí no meio deles” (Mateus 18, 20). O “onde” – em rede ou fora dela; nas bases ou na internet – é quase irrelevante: o importante é reunir-se em comunidade no nome de Jesus Cristo, assumindo uma consciência-vivência cristã e eclesial.
Apesar da limitação apresentada pela mensagem em sua leitura do fenômeno das comunidades em rede, o diagnóstico de Francisco é preciso quando aponta que, ao deixar de ser “uma oportunidade para promover o encontro com os outros”, a rede muitas vezes se converte no seu oposto, em “uma teia de aranha capaz de capturar”. Quando isso ocorre, “a identidade funda-se na contraposição ao outro, à pessoa estranha ao grupo: define-se mais a partir daquilo que divide do que daquilo que une, dando espaço à suspeita e à explosão de todo o tipo de preconceito (étnico, sexual, religioso e outros). (...) E, assim, aquela que deveria ser uma janela aberta para o mundo, torna-se uma vitrine onde se exibe o próprio narcisismo”.
Essa construção da identidade a partir da destruição da alteridade pode ser vista frequentemente em nossas redes pessoais e especialmente no mundo da política, da religião e da própria Igreja Católica. Na política, o período eleitoral de 2018 foi abundante em casos de desinformação, má-informação, distorção, difamação e calúnias em rede, com o objetivo de aniquilar o adversário transformado em opositor-inimigo. E o início dos mandatos dos novos representantes políticos – principalmente em nível federal – evidencia que essa tendência ao descrédito do outro e ao ciberbullying já fazem parte, na prática, infelizmente, das próprias estratégias de governo.
No caso intracatólico, frequentemente, a pessoa que está do outro lado da tela também não é percebida como um “irmão ou irmã na fé”, mas apenas como alguém sobre quem se descarrega toda a raiva e rancor pessoais e pseudorreligiosos, camuflados de defesa da tradição, da sã doutrina e da liturgia, com citações artificiosamente pinçadas da Bíblia e do Catecismo. Nada nem ninguém estaria acima desse “Tribunal da Santa Inquisição Digital”, nem mesmo o papa – e especialmente o Papa Francisco. Nessas “fogueiras digitais”, são condenados os supostos “hereges” atuais, expressão-agressão que circula abundantemente em certas páginas e grupos católicos nas redes, dirigida contra todos aqueles que têm uma visão de Igreja diferente da do agressor. Esses “linchamentos” simbólicos ocorrem a partir de condenações inapeláveis de grupelhos de leigos que se arrogam o direito – e até o dever – de atirar a primeira pedra. Pregam a exclusão de tudo o que seja “catolicamente diferente” e de todos os “catolicamente outros”.
Na exortação apostólica Gaudete et exsultate (2018), sobre o chamado à santidade no mundo atual, Francisco dedicou um parágrafo inteiro a esses “pecados digitais”:
“Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nas mídias católicas, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia” (n. 150).
E nessa quinta-feira, 24, encontrando-se com os bispos da América Central, reunidos no Panamá para a Jornada Mundial da Juventude, o papa reiterou:
“Preocupa-me ver como a compaixão perdeu centralidade na Igreja, inclusive em grupos católicos – ou está perdendo, para não sermos tão pessimistas. Inclusive nos meios de comunicação social católicos, a compaixão não existe. Existe o cisma, a condenação, a crueldade, a valorização de si mesmo, a denúncia de heresia... Que não se perca a compaixão na nossa Igreja (...). A Igreja de Cristo é a Igreja da compaixão; e isso começa em casa.”
Nesse contexto, sem dúvida, “não basta multiplicar as conexões, para ver crescer também a compreensão recíproca”, como afirma o papa. O desejo quase ideal (ou até mesmo o sonho) de Francisco é de uma “rede livre, aberta e segura” para todos, e ele interpela os governos e a própria Igreja em relação a essa tarefa. Mas, para isso, a pergunta proposta pela mensagem deve ressoar constantemente em quem busca construir outras relações possíveis em rede: “Como reencontrar a verdadeira identidade comunitária na consciência da responsabilidade que temos uns para com os outros inclusive na rede online?”.
E aqui, como esboço de resposta, surge a terceira metáfora de Francisco: o corpo e seus membros. Ou seja, uma “relação de reciprocidade entre as pessoas, fundada num organismo que as une”.
Trata-se de uma atualização daquilo que Paulo escreveu em sua Carta aos Efésios: “Por isso, despi-vos da mentira e diga cada um a verdade ao seu próximo, pois somos membros uns dos outros” (Ef 4, 25). Segundo o papa, “o fato de sermos membros uns dos outros é a motivação profunda com a qual o Apóstolo exorta a despir-se da mentira e a dizer a verdade: a obrigação de preservar a verdade nasce da exigência de não negar a mútua relação de comunhão”.
Quem se recusa egoisticamente a entrar em relação com o outro, a fazer parte e a construir um mesmo corpo (comunidade, Igreja, nação etc.) habita a solidão da mentira. Ao contrário, “a verdade revela-se na comunhão” e, sem comunhão, não é possível buscar e encontrar a verdade. A própria identidade pessoal e coletiva “se funda sobre a comunhão e a alteridade”, afirma o papa. Não existe um “eu” sem um “tu”. Como afirma E. Lévinas, “nós” não é o plural de “eu”. Na linguagem da tradição africana do ubuntu, “eu sou porque nós somos”.
Francisco, por sua vez, relê essa “nostalgia” do ser humano de viver em comunhão e de pertencer a uma comunidade a partir da tradição cristã. Essa necessidade, afirma, surge “em virtude de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus que é comunhão e comunicação-de-Si”, um Deus que se comunica conosco “adaptando-se à nossa linguagem”. Ou seja, “da fé num Deus que é Trindade, segue-se que, para ser eu mesmo, preciso do outro. Só sou verdadeiramente humano, verdadeiramente pessoal, se me relaciono com os outros”.
Essa comunhão é mais do que uma mera interação entre indivíduos, mas se trata de uma relação entre pessoas, já que o próprio termo “pessoa” – afirma o papa em um belo jogo de palavras que se perde na tradução ao português – denota o ser humano como “rosto” (“volto”), voltado (“ri-volto”) ao outro, coenvolvido (“co-in-volto”) com os outros. Ainda segundo Lévinas, “o outro que me olha me afirma”.
Por isso, Francisco convoca – “com maior razão” – os cristãos a “manifestarem aquela comunhão que marca a nossa identidade de pessoas de fé”, porque “a própria fé é uma relação, um encontro”. Ou seja, ela nasce “sob o impulso do amor de Deus”, que, por sua vez, leva a pessoa a “comunicar, acolher e compreender o dom do outro e corresponder-lhe”.
A partir dessa evolução metafórica da rede à comunidade e da comunidade ao corpo, o papa restabelece a complementaridade entre “redes e ruas” do ponto de vista das relações humanas. E o faz ressaltando, “também na rede e através da rede, o caráter interpessoal da nossa humanidade”.
“A imagem do corpo e dos membros recorda-nos que o uso da social web é complementar do encontro em carne e osso, vivido através do corpo, do coração, dos olhos, da contemplação, da respiração do outro. Se a rede for usada como prolongamento ou expectativa de tal encontro, então ela não trai a si mesma e permanece como um recurso para a comunhão”, afirma Francisco.
Essa complementaridade não está dada de antemão, mas é uma construção pessoal, comunitária e social: em termos digitais, é um “net-work”, um trabalho em rede. Assim, a rede pode ser construída “não para capturar, mas para libertar, para preservar uma comunhão de pessoas livres”. Francisco explicita isso em 3 grandes “se”, revelando a liberdade humana diante de possibilidades em rede que demandam escolhas, decisão, discernimento:
“Se uma família usa a rede para estar mais conectada, para depois se encontrar à mesa e olhar-se olhos nos olhos, então é um recurso. Se uma comunidade eclesial coordena a sua atividade através da rede, para depois celebrar juntos a Eucaristia, então é um recurso. Se a rede é uma oportunidade para me aproximar de histórias e experiências de beleza ou de sofrimento fisicamente distantes de mim, para rezar juntos e, juntos, buscar o bem na descoberta daquilo que nos une, então é um recurso.”
Aqui, entretanto, reforça-se uma certa leitura utilitarista, instrumental e funcionalista das redes, pautada pelo “uso”. Isso permeia toda a mensagem (e até, se poderia dizer, o pensamento comunicacional da Igreja dos últimos tempos) e impede de perceber, efetivamente, as inter-relações complexas (a complementaridade, justamente) entre os fenômenos digitais e socioantropológicos mais amplos.
Pensar a rede apenas como “recurso do nosso tempo” e buscar promover um mero “uso positivo” dela não permitem compreender o ambiente digital em sua complexidade, pois a simplificam e a enquadram como um mero instrumento ou ferramenta à disposição da “comunidade humana”.
Se efetivamente podemos falar, como Francisco faz na mensagem, de um “ambiente medial” (a tradução oficial em português de Portugal enfraquece a expressão, ao dizer “ambiente dos mass-media”), que é “indistinguível da esfera da vida cotidiana”, as redes não podem ser vistas somente como algo ao nosso dispor, ao qual podemos “recorrer” (“recurso”) quando necessário. Trata-se de algo mais amplo, que nos envolve e nos transforma: uma ambiência (P. Gomes).
Os dispositivos digitais (em suas virtualidades e potencialidades, assim como em suas materialidades e tecnicidades) não podem ser vistos como meros utensílios a serviço do humano, porque o próprio humano se constitui – especialmente hoje e principalmente em relação à identidade, como afirma a mensagem –, em sua inter-relação com tais dispositivos. Os processos sociodigitais contemporâneos trazem consigo inclusive novas corporalidades e socialidades que geram mundos-espaço e mundos-tempo inéditos na história humana (D. Holmes).
Existe um arriscado hábito, especialmente na reflexão eclesial, de pensar que a influência da tecnologia na vida humana seja somente um problema no “modo de usar” (R. Marchesini). Ao contrário, a tecnologia não é uma “escrava” a serviço do humano, mas é “teleonômica”, ou seja, ressignifica e modifica o próprio humano. Como afirma T. Lenoir, as linguagens, as mídias e as tecnologias podem ser consideradas como “espécies companheiras que dependem de nós, mas também nos moldam poderosamente através de uma espiral coevolutiva”.
No caso do ambiente digital, portanto, as redes não são apenas “fruto” das relações humanas, mas também geram e fomentam relações humanas características da contemporaneidade, que, nesse sentido, também são “fruto” da digitalização. Segundo M. Castells, a cultura digital faz surgir “novas formas de relação social, que são fruto de uma série de mudanças históricas, mas que não poderiam desenvolver-se sem a internet”. Bento XVI já alertava para isso na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2013: “As redes sociais são o fruto da interação humana, mas, por sua vez, dão formas novas às dinâmicas da comunicação que cria relações”. Portanto, é essa complexificação e hibridização humano-digital que merece atenção, na indeterminação e imprevisibilidade de tais processos.
As redes, neste período histórico, estão em profunda inter-relação com a construção de comunidades e com a constituição de um corpo. Rede, comunidade e corpo, hoje, para além das metáforas, se inter-relacionam em um mesmo “multiprocesso retroativo” (E. Morin), em que não há corpo sem relações comunitárias, nem comunidade sem comunicação em rede (seja ela digital ou não).
O mais importante, em termos eclesiais, não é tanto “como” construir relações em rede no ambiente digital – dominar estratégias, linguagens, técnicas, tecnologias. Mas sim “por que”, “para que” e “com quem” construir tais relações.
Uma possibilidade de resposta foi oferecida por Francisco na carta dirigida aos bispos do Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (Celam), por ocasião do jubileu de 300 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida e da celebração dos 10 anos da Conferência de Aparecida.
“Na história de Aparecida (...) Maria aparece onde os pescadores lançam as redes (...) As redes não se encheram de peixes, transformaram-se em comunidade.”
E em outra carta, enviada aos jovens brasileiros no encerramento do projeto “Rota 300”, por ocasião do mesmo jubileu, o papa retomou a mesma reflexão e completou:
“Convido a que vocês também deixem que seus corações sejam transformados pelo encontro com Nossa Mãe Aparecida. Que Ela transforme as ‘redes’ da vida de vocês – redes de amigos, redes sociais, redes materiais e virtuais –, realidades que tantas vezes se encontram dividas, em algo mais significativo: que se convertam numa comunidade! Comunidades missionárias ‘em saída’! Comunidades que são luz e fermento de uma sociedade mais justa e fraterna. Assim integrados nas suas comunidades, não tenham medo de arriscar-se e comprometer-se na construção de uma nova sociedade, permeando com a força do Evangelho os ambientes sociais, políticos, econômicos e universitários!”
Este é o maior desafio: construir um corpo eclesial que não se baseie apenas em “curtidas”, como afirma Francisco, mas sim em um “amém” manifestado com o testemunho de uma vida cristã, especialmente “acolhendo os outros” – nas várias redes das quais fazemos parte.
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Rede, comunidade, corpo: a tríade de Francisco para uma ''Igreja em saída'' no ambiente digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU