23 Janeiro 2019
"Se tivesse tido mais tempo, acredito que um Dietrich Bonhoeffer espiritualmente transformado teria se tornado um extraordinário líder global na promoção do respeito mútuo, da compreensão e do reconhecimento entre cristãos e judeus", escreve A. James Rudin, rabino, conselheiro inter-religioso do Comitê Judaico Americano e autor de “Pillar of Fire: A Biography of Rabbi Stephen S. Wise” (Pilar de Fogo: uma biografia do rabino Stephen S. Wise, tradução livre), publicado pela Texas Tech University Press, em artigo publicado por Religion News Service, 18-01-2019. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Falar do que poderia ter sido é das coisas mais tristes.
Há 80 anos, enquanto pairavam nuvens sombrias da guerra sobre a Europa, o teólogo cristão de 33 anos Dietrich Bonhoeffer, professor do seminário Union Theological Seminary, em Manhattan, retornou à Alemanha após um breve período nos Estados Unidos.
Na época, Bonhoeffer acreditava que a resposta da Igreja a Hitler e o nazismo era marcada pela fraqueza e pela covardia. Ele viu seu país ser consumido por um câncer monstruoso que devorou nações e assassinou milhares de pessoas - quase milhões.
Frustrado e irritado, Bonhoeffer retornou para participar do movimento de resistência política na Alemanha. Para ele, "a liberdade não está no voo dos pensamentos, mas tão-somente na ação. Sai da medrosa hesitação para a tempestade dos acontecimentos.”
Era uma decisão fatídica e, em última instância, fatal. Seis anos depois, em 9 de abril de 1945, um mês antes do final da Segunda Guerra Mundial na Europa, os nazistas executaram Bonhoeffer por sua oposição ao regime.
Antes de vir para Nova York, Bonhoeffer já tinha sido deportado pela Gestapo, e nos seis anos depois de seu último retorno para a Alemanha, ele se tornou a figura dominante da resistência protestante. Apesar de terem se passado mais de sete décadas desde seu enforcamento pelos “crimes antinazistas" que cometeu, hoje há inúmeros artigos, livros, dramas, poemas, óperas, músicas e filmes sobre o jovem pastor luterano que se tornou um santo protestante.
Dietrich Bonhoeffer viveu de 1906 a 1945. Foto cortesia
de Joshua Zajdman | Random House
Antes disso, Bonhoeffer lutou contra o famigerado "Deutsche Christen" ou "Movimento Cristão Alemão”, chamado ironicamente "Igreja Marrom”, porque muitos líderes usavam uniformes milicianos marrons. Os bispos orgulhosamente usavam suásticas nas vestes eclesiásticas e faziam a saudação nazista com o braço publicamente.
Essa Igreja antissemita cedeu ao autoritarismo de Hitler e, por sua ideologia distorcida, exigiu a eliminação de todas as "influências judaicas" do ensino, da liturgia e da pregação. Acima de tudo, o movimento "Deutsche Christen" acreditava em um Jesus ariano, não judeu.
Bonhoeffer considerava o movimento heresia, porque abandonava os profundos fundamentos judaicos da história do cristianismo, rendendo-se toda a sua independência ao sistema de crenças nazista antissemita.
Após o brutal pogrom Kristallnacht - conhecido como a “Noite dos Cristais”, em novembro de 1938, na Alemanha e na Áustria, ele deu sua famosa declaração: “Só quem grita pelos judeus pode cantar o canto gregoriano.” Não surpreendentemente, no mesmo ano, disse aos seminaristas luteranos que "também vale a pena morrer pela liberdade secular".
Como agente secreto e espião da resistência antinazista, Bonhoeffer colocava-se em grande perigo. E, em 1933, transmitiu com exclusividade o que sabia sobre o violento antissemitismo dos nazistas ao rabino Stephen S. Wise, o mais importante líder judeu dos Estados Unidos na época.
Depois de ser preso pela Gestapo e de 1943 e até sua execução, dois anos depois, Bonhoeffer escreveu cartas que revelam um sentido emergente de "realismo cristão", uma ênfase "neste mundo", uma maior valorização das escrituras hebraicas e um conceito original e intrigante de "cristianismo sem religião”.
Suas cartas revelam um significativo crescimento espiritual e pessoal. Aonde será que sua mente brilhante teria o levado se sua vida não tivesse acabado tão cedo?
Ele fez o que muito poucos de seus colegas do clero alemão fizeram: abandonou a resistência ao nazismo puramente espiritual confinada dentro da igreja (em sermões, declarações, artigos e palestras). Com coragem, foi em direção a ações políticas diretas contra Hitler e seu regime criminoso.
Mas (e é um grande "mas") há outro lado do legado de Bonhoeffer que precisa ser avaliado: sua posição diante dos judeus e do judaísmo.
Ruth Zerner, católica apostólica romana e professora da City University, em Nova York, descreveu esse "outro" lado do sistema de crenças de Bonhoeffer:
"Suas observações sobre judeus e sobre as experiências judaicas têm passagens problemáticas, ambiguidades e contradições, [que] só podem ser explicadas pelos cuidados práticos e exigências destrutivas da vida na Alemanha nazista. Não estou sugerindo que Bonhoeffer era antissemita".
"Pelo contrário, como todos nós, ele era em certa medida vítima de seu passado... Seu diagnóstico e prognóstico dos acontecimentos históricos judeus são... inquietantes, típicos do pensamento cristão pré-Holocausto, pré-Vaticano II."
Dietrich Bonhoeffer em imagem sem data. Creative Commons
Ruth Zerner tem razão. Bonhoeffer tinha diversas "ambiguidades" em relação aos judeus. Acreditava que eles eram tanto "pessoas queridas como punidas por Deus". E que somente por meio do batismo os judeus poderiam atingir a salvação. Além disso, defendia fortemente o status dos judeus convertidos na Igreja, mesmo que o rito batismal não significasse nada para os nazistas que assassinavam tanto os judeus que eram fiéis como os que tinham se convertido ao Cristianismo.
Durante os primeiros anos do governo Hitler, Bonhoeffer estava mais preocupado com os esforços dos nazistas para destruir os fundamentos teológicos e a legitimidade do protestantismo alemão do que com os terríveis ataques físicos sobre os judeus, que culminaram no genocídio.
Mas, para ele, “a expulsão dos judeus do Ocidente comportava necessariamente a expulsão de Cristo. Porque Jesus Cristo era judeu."
Durante os anos 30, as visões teológicas de Bonhoeffer sobre os judeus e o judaísmo evoluíram à medida que ele procurava a maneira mais eficaz para combater o nazismo. Em uma conferência da Igreja, um mês antes da Kristallnacht, ele declarou: "... em vez de repetir as mesmas questões de sempre, podemos falar daquilo que realmente está nos pressionando: ... o que dizer sobre a questão da igreja e da sinagoga?"
Assim, Bonhoeffer colocou o judaísmo e o cristianismo em igualdade como parceiros na relação com Deus. Os judeus são "irmãos cristãos" e "filhos da aliança”. Essa era uma posição radical em um período em que tantos líderes cristãos alemães tentaram destruir todas as ligações entre o cristianismo e o judaísmo. Em 1942, observou que havia "uma cristandade profundamente entrelaçada com a culpa".
Victoria Barnett, diretora de Ética, Religião e Holocausto do Museu Memorial do Holocausto dos EUA e especialista em Bonhoeffer, lembra-nos que ele escreveu uma carta para o líder protestante estadunidense Reinhold Niebuhr, em 1939, quando ainda lecionava no seminário em Nova York: "Cheguei à conclusão de que cometi um erro ao vir para os Estados Unidos... Não tenho direito de participar da restauração da vida cristã na Alemanha depois da guerra, a menos que compartilhe das provações da época com meu povo."
A galeria dos mártires do século XX, na Abadia de Westminster, da esquerda para a direita, inclui Elizabeth da Rússia, Martin Luther King Jr, Óscar Romero e Dietrich Bonhoeffer. Foto de Zyllan | Creative Commons
Para mim, Dietrich Bonhoeffer é um peregrino inter-religioso, uma figura de transição.
Ele expressou muitas das opiniões negativas sobre os judeus e o judaísmo que existiam na Alemanha em geral e particularmente em sua igreja. Mas quase no fim da sua breve vida, quando era prisioneiro dos nazistas, parece que Bonhoeffer transcendeu muitos desses ensinamentos hostis e reconheceu que Deus queria que ele ampliasse sua compreensão e compaixão com o povo judeu para muito além da doutrina tradicional da Igreja Protestante alemã. No entanto, ele não teve tempo suficiente para desenvolver plenamente a compreensão positiva dos judeus e do judaísmo.
Ao ser morto na forca, menos de duas semanas depois da Páscoa e da Festa da Libertação, ele claramente entendeu que sua igreja tinha testemunhado o genocídio dos judeus "... .sem levantar a voz em nome das vítimas e sem encontrar modos de estender a mão de forma imediata”.
Se tivesse tido mais tempo, acredito que um Dietrich Bonhoeffer espiritualmente transformado teria se tornado um extraordinário líder global na promoção do respeito mútuo, da compreensão e do reconhecimento entre cristãos e judeus.
Ah, "o que poderia ter sido..."
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Um triste aniversário para Dietrich Bonhoeffer marca o que poderia ter sido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU