30 Outubro 2018
“Pai Estrito”. “Masculinidade”. “Guerra Justa”. “Punição”. “Sucesso”. Como o ex-capitão articulou os valores arcaicos da sociedade brasileira num discurso eficaz.
A esquerda precisa reconstruir seu campo semântico.
O artigo é de Gabriel Bayarri, espanhol, doutorando em antropologia e escritor pela Universidade Complutense de Madri e pela Universidade Macquarie de Sydney., de 2015-2018 foi conselheiro eleito pelo partido Si Se Puede! e integrante do movimento Podemos na Espanha, publicado por Outras Palavras, 27-10-2018.
Uma série de justificativas escondidas em forma de metáforas se reproduziam nas portas da casa de Jair Bolsonaro no bairro carioca da Barra da Tijuca, no domingo 7 de Outubro — primeiro turno das eleições presidenciais.
A Polícia de Choque baixou de um ônibus, ante as palmas e ao grito de “heróis, heróis, heróis”; “vamos acabar com a vagabundagem”; “é o mito, é a nossa última esperança”; “temos que recuperar Brasil”; “venho aqui para defender a família, a honradez, a honestidade frente à violência, a barbárie e a corrupção” ou “viva Sergio Moro”. Atrás erguia-se um enorme pixuleco, boneco inflável de Lula vestido de presidiário, e vendedores ambulantes vendiam o mesmo boneco em dimensões menores como lembrança, junto a cervejas e pipocas. Para cada um destes breves relatos, uma justificativa se configurava: a violência deveria ser combatida com uma política repressivo-punitiva, pois todo infrator da lei tem uma dívida que saldar; e ante a corrupção, a justiça seria a encarregada de realizar o balanço da moralidade.
Explicava o linguista George Lakoff que os marcos são estruturas mentais que conformam nossa forma de ver o mundo, nossas justificações. Estes marcos configuram e ordenam o nosso conhecimento, sistemas de crenças, valores e ações através da linguagem. No contexto político brasileiro atual, o novo uso da linguagem no projeto Bolsonaro oferece uma nova experiência de abstração e interiorização do mundo.
A construção dos marcos desse novo mundo do Universo Bolsonaro violento poderia ser explicada através de uma ampla metáfora que teria três personagens – um vilão, uma vítima e um herói. A trama seria a seguinte: um malvado comete um crime contra uma vítima inocente (um estupro, um assalto, roubo ou sequestro). Existe um desequilíbrio de forças na qual o herói tem que agir pela sua própria conta. O herói atravessa uma dura jornada de viagem, atravessa o espaço inóspito inimigo, onde um vilão essencialmente malvado e monstruoso o aguarda. O herói não pode negociar e deve vencer o vilão para restabelecer a ordem moral e salvar a vítima. O herói é aclamado pela sua vitória, pois agiu movido pela honra e glória.
A metáfora se constrói entre um antagonismo: o herói, representante do Bem e do restabelecimento da ordem frente ao vilão malvado, imagem do diabo, imoral e viciado. Trata-se da Metáfora da Guerra Justa empregada na campanha Bolsonaro, em que poderiam se estabelecer diversos nomes para obter tramas diversas: as Polícias e/ou o Exército (herói), o cidadão de bem (vítima) e o traficante (vilão). Bolsonaro (herói), o cidadão de bem (vitima) e o PT (vilão). As privatizações (herói), o cidadão de bem (vítima) e o Estado (vilão). O Juiz (herói), o cidadão de bem (vítima) e o bandido/corrupto (vilão).
Os simpatizantes de Bolsonaro simbolizam conceitos através da linguagem bélica, se percebem como vítimas, cidadãos de bem que só através da guerra e da vitória heroicas conseguirão restabelecer a ordem moral. Trata-se de uma alteração de marcos de forma generalizada que tem afetado automaticamente a demanda por uma mudança social conservadora com traços militares, um aprofundamento na visão do mundo marcada pela percepção da violência e a resposta na qual o herói deve agir pela sua própria conta.
Após o atentado a Bolsonaro e o seu processo de corporalização, onde o candidato passa a “ser todos nós”, o cidadão de bem adquire também um papel ativo como herói e como vítima frente a todos os vilões citados. Assim, em determinados casos, é também permitido esfaquear o inimigo, como no recente assassinato do mestre capoeirista baiano Moa do Katênde, que expressou seu repúdio ao projeto Bolsonaro. O agitador Bolsonaro mobiliza as metáforas e massas de sentimentos; e as metáforas podem chegar a matar.
Através desses marcos bélicos, o eleitor de Bolsonaro (em suas diversas escalas de aderência ao projeto) estabelece seu pensamento, sua razão. A razão política, além de ser literal, é metafórica e imaginativa. A razão no grave contexto eleitoral não é ausente de paixão, mas emocionalmente comprometida, e se constrói principalmente de acordo com marcos morais como Deus, Pátria e Família.
“Tenho medo de que minha filha seja estuprada”; “querem acabar com nossas famílias”; “agora tratam de esconder o comunismo embaixo da nossa bandeira, mas querem romper nossas famílias”, expressam agitados alguns de seus seguidores.
Tanto as políticas conservadoras como as progressistas têm uma consistência moral básica: fundamentam-se em visões diferentes da moral familiar, que se estendem à política e a outros âmbitos. A família conservadora estrutura-se em torno da imagem do Pai Estrito: o que acredita na necessidade e no valor da autoridade, que é capaz de ensinar a seus filhos a se disciplinar e lutar num mundo competitivo onde triunfarão se forem fortes, afirmativos e disciplinados (1). Na metáfora da Guerra Justa o Capitão Bolsonaro apresenta-se como um cara duro, viril e militar, um cowboy à brasileira que pratica rodeio em público e que, como o Exterminador Schwarzenneger na Califórnia, declarou Guerra ao terror e à violência de forma interminável.
Trata-se de um Pai Estrito, que percebe o mundo como um lugar violento e perigoso, como um lugar onde exercer a autoridade e a obediência formam parte da justificativa moral. A moral familiar que tem se articulado em torno desta figura responde de forma eficaz à metáfora da Guerra Justa. Representa um universo masculinizado, onde o pai é o chefe da família, um universo onde o pai inspira e organiza o quebra-cabeça das correntes conservadoras, desde as correntes evangélicas, grupos financeiros ou a indústria agropecuária, aos coletivos como Vem Pra Rua, Movimento Brasil Monárquico, Direita Já, Brasil 200, os Templários da Pátria, o Movimento Brasil Conservador ou o Movimento Brasil Livre.
O Pai Estrito Bolsonaro oferece uma Guerra contra a corrupção, a violência e “pela defesa dos valores tradicionais”, e se propõe como herói na metáfora que ele mesmo tem construído e apresentado: a metáfora da Guerra Justa.
Este projeto moral entende o mundo como um lugar de ganhadores e perdedores, em que o Bem e o Mal são conceitos absolutos, e onde dialogar com o vilão nos debates televisivos programados pouco serve, pois a vitória deve ser absoluta e sem diálogo — um extermínio completo. Paralelamente, a família e seus valores tradicionais devem ser protegidos neste mundo perigoso, em que os valores do Pai Estrito estão sendo ameaçados com políticas de legalização do aborto e com formas variadas do casamento civil. O herói deve agir, tem que reagir contra os vilões que querem destruir uma série de valores tradicionais entendidos como direitos. Trata-se de um mundo difícil que deve ensinar para as crianças a diferença entre o bem e o mal, que necessita fortalecer sua moralidade, não permitindo que uma “manipulação” de sua interpretação sexual nas escolas debilite sua bondade e pureza. À criança se exige obediência, pois o pai é uma autoridade moral que distingue o bem e o mal, e merece respeito. “Estamos perdendo o respeito a tudo, à família, a nossos valores”, exclama nervoso um votante do Bolsonaro. A criança progredirá de acordo com essa disciplina, que lhe permitirá se enriquecer e se defender. O modelo de Pai Estrito é militar, associa a moral e a disciplina com prosperidade e segurança, um cidadão de bem que deve combater o vagabundo e o bandido, armando-se se necessário. O pai explica as regras, e a punição se produz quando a criança se comporta mal. “Bandido deve estar na prisão ou embaixo da terra!” gritava Flávio Bolsonaro num dos seus atos de campanha.
O medo e o desespero são ativados na metáfora bélica da Guerra Justa, e tendem a provocar o apoio ao modelo de Pai Estrito em cada um de nós. Para que exista uma ordem moral é necessário defender a soberania de instituições como o Exército.
Observamos como a família Bolsonaro, liderada por Jair Messias, utiliza a metáfora da Guerra Justa tratando de se consolidar como “família com Pai Estrito”, herói que através da aplicação de uma série de práticas pós-fascistas (2) vencerá aos vilões. Em definitivo, trata de se consolidar como autoridade moral do campo conservador atraindo com seus marcos de Pai Estrito ante a Guerra Justa praticamente metade do eleitorado brasileiro. Em sua visão, o mal “anda solto pelo mundo”, conspirando, e o Bem tem que demonstrar que é forte e destruí-lo, pedindo castigo e vingança. Aí reside uma vantagem do campo conservador, pois ainda que se exija por parte do campo oposto “justiça e não vingança”, foram capazes de reconstruir esse princípio, normalizando a ideia de que “o castigo é a justiça”, cuja representação metafórica mais relevante é a prisão do ex-presidente Lula.
O modelo do Pai Estrito não significa que os milhões de pessoas que votam no Bolsonaro sejam menos democráticos, mas que encontraram neste modelo a forma mais eficaz de vencer na metáfora da Guerra Justa, detectando de forma mais nítida uma série de narrativas conservadoras que permeiam a cultura brasileira.
Desde o campo progressista urge a necessidade de adotar marcos conceituais coerentes que permitam definir os valores e sentimentos em disputa através da linguagem. É necessário entender a atual arena política como um espaço de interpretação metafórica, onde os enunciados são enquadrados pelo contexto de mediatização confusa, das redes sociais e das fake news.
Ante os tempos difíceis que virão, cabe ao campo progressista a árdua tarefa de reconstruir seu campo semântico num projeto político claro e firme, ganhando nos próximos anos ao verdadeiro vilão desde a imaginação: a ilusão e a sedução das nossas metáforas.
(1) LAKOFF, G. 1996. Moral politics. Chicago: University of Chicago Press.
(1) LAKOFF, G. y M. JOHNSON. 1980. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press.
(1) LAKOFF, G. y M. Johnson. 1999. Philosophy in the flesh. The embodied mind and its challenge to western thought. New York: Based books.
(2) TAMAS, G. M. 2000. ‘On post fascism’, Boston Review, Summer.
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Os valores e metáforas do universo Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU